O desenhista Albert Uderzo, cocriador com o roteirista René Goscinny das célebres aventuras de Astérix & Obélix, morreu esta manhã, aos 92 anos, em sua casa nos subúrbios de Paris, vítima de um ataque cardíaco. Tive a oportunidade de encontrá-lo para uma entrevista, em 2009, em sua residência. Reproduzo aqui nossa conversa, realizada na época para a hoje extinta revista Personnalité, e depois publicada na íntegra no segundo volume do meu livro de entrevistas “Entre Aspas” (L&PM).
OBS: Por coincidência, os roteiristas do álbum “Astérix e a Transitálica” (2017), Jean-Yves Ferri e Didier Conrad, incluíram na trama o vilão mascarado chamado “Coronavírus” e seu fiel companheiro “Bacillus”. Desta vez, não foram os Simpsons a anteciparem o futuro.
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PARIS – “Estamos em 50 anos A.C.. Toda a Gália está ocupada pelos romanos… Toda? Não! Uma aldeia povoada de irredutíveis gauleses resiste ao invasor”. A observação legenda a ilustração de uma enorme lupa que revela em um canto do mapa da França, na região da Bretanha, a diminuta e insolente aldeia gaulesa, motivo de incessante fúria do conquistador Júlio César, imperador dos romanos. Assim começam, invariavelmente, as inesquecíveis aventuras do pequenino Astérix e de seu inseparável companheiro de confissões e bravatas, o gordo e simpático Obélix. A dupla de intrépidos gauleses, criação do roteirista René Goscinny e do desenhista Albert Uderzo, diverte há mais de meio século crianças e adultos com sua infinita resistência, suas memoráveis surras nas legiões romanas, suas trapalhadas, seu sentimentalismo, suas viagens pelo mundo, suas poções mágicas, menires e suculentos javalis.
Com a morte repentina de Goscinny em 1977, vítima de um ataque cardíaco, Albert Uderzo é o único remanescente da dupla original de criadores. O futuro desenhista nasceu em 1927 com seis dedos em cada mão. A malformação, corrigida posteriormente por uma cirurgia, parecia prenunciar uma excepcionalidade futura. Seu pai, imigrante italiano, tentou por tudo que aprendesse a manejar com destreza o acordeão. Apaixonado por carros, a mecânica de automóveis apontava como sua primeira escolha profissional. Mas foi o daltônico desenhista que, com lápis e pincéis, revelou e exprimiu seu talento e construiu sua vida. “Astérix & Obélix” se tornou um fenômeno mundial das histórias em quadrinhos. Os números comprovam o sucesso. Desde 1961, seus 34 álbuns, traduzidos em 107 línguas e dialetos, venderam cerca 325 milhões de exemplares em todo o planeta.
O desaparecimento prematuro de René Goscinny prenunciou o fim dos célebres personagens. Mas passado o período de luto, Uderzo decidiu dar uma sobrevida à dupla de gauleses: montou a editora Albert-René e passou a criar sozinho novas histórias. Mais recentemente, admitiu pela primeira vez que Astérix e Obélix continuassem suas aventuras pelas mãos de outros autores.
Apequenado, bigode espesso e rebelde, nariz proeminente, Astérix está distante dos ídolos convencionais das histórias em quadrinhos de aventura. Anti-herói por excelência, o personagem de Goscinny e Uderzo goza ainda hoje de plena saúde e comemora com inabalada popularidade seus mais de 50 anos (sua primeira aparição ocorreu em 29 de outubro de 1959, no jornal Pilote). Sua curiosidade além-fronteiras extrapolou o limite do espaço dos quadrinhos e adentrou os debates contemporâneos. Astérix alcançou o estatuto de mito, o que lhe rendeu a atenção de sociólogos, historiadores, políticos, semiólogos e pesquisadores em geral. Na sua já longa carreira de embates contra as legiões romanas e de andanças pelo mundo, nunca o diminuto gaulês teve sua imagem tão fortemente evocada como exemplo e referência quanto neste início do terceiro milênio.
O mito é um conto fundador que fala no passado e vive no presente, explica Frédéric Maguet, autor, junto com Henriette Toullier, do livro Astérix, um Mito e suas Figuras (ed. Puf). Não por acaso, embora contra o desejo de seus progenitores, o herói tem sido apropriado por aqueles que tentam abordar politicamente os problemas contemporâneos. Para muitos, a luta de sobrevivência da solitária aldeia gaulesa frente ao insaciável império de Júlio César representa a oposição do pequeno ao grande, a resistência do local ao globalizante. “Oposição entre esta aldeia na qual todo mundo se conhece, e este vasto império que não consegue se impor”, escreve Frédéric Maguet.
Paradoxalmente, Astérix defende sua cultura e habitat em uma aldeia cercada, mas não hesita em correr o mundo ao lado do amigo e guardião Obélix, descobrindo modos de vida diversos da sua origem gaulesa. René Goscinny era mestre em temperar com humor os contrastes de costumes e culturas, e também em acrescentar elementos modernos às dificuldades impostas aos dois heróis, ao fazer, por exemplo, Astérix e Obélix enfrentarem engarrafamentos na Via Romana n° VII ou se perderem em uma burocracia pública infernal de intermináveis guichês, formulários e funcionários inoperantes. Alheios ao sucesso e às teses políticas e acadêmicas sobre seu comportamento, Astérix e Obélix, Idéfix, Panoramix, Abracurcix e toda a família gaulesa da pequena aldeia sitiada na Bretanha só temem uma coisa: que o céu caia sobre suas cabeças. Até lá, fastuosos banquetes continuarão animando suas noites de lua cheia.
Por causa de uma malformação, você nasceu com seis dedos em cada mão, o que foi logo reparado por uma cirurgia. Mas você tem problemas para desenhar com a mão direita.
Operei as duas mãos (mostra as cicatrizes). Mas tenho este outro problema, porque tenho 67 anos de desenho, com uma mão que certamente não foi feita para desenhar. Como me disse um osteopata: “Você é talhado como um lenhador e quis fazer um trabalho de ourives!”. É verdade que minha mão não era de todo feita para este tipo de trabalho. Eu forcei para poder desenhar o traço que desejava, e com isso minha mão se tornou mais indócil, difícil. Mas continuo a desenhar, e sempre da mesma maneira. Como não posso mais desenhar com tinta preta, com pincel, como fazia antes, delego este trabalho para alguém. E para que ele entenda bem meu desenho, sou obrigado a fazer um desenho muito limpo e claro. Se faço um rascunho com três traços no mesmo lugar, ele não saberá qual deles utilizar. Portanto, sou obrigado a fazer um desenho à lápis muito preciso.
Segundo você, a única verdadeira revolução na reprodução do desenho, em 30 anos, foi o surgimento do scanner.
O scanner melhorou sobretudo para as cores. É prodigioso. Isso me ultrapassa, porque não saberia como fazê-lo. Já tenho dificuldades para enviar um email.
Você descobriu sua aptidão para o desenho e também o daltonismo quando teve de ilustrar, na escola, a fábula “O Lobo, a Cabra e o Cabrito”, de La Fontaine. Como foi isso?
Deveria ter uns sete anos de idade, ainda não sabia ler e escrever. A professora nos contava uma fábula de La Fontaine e pedia que ilustrássemos. Era uma forma inteligente de fazer as crianças apreenderem a fábula pelo desenho. Isso me marcou profundamente, porque ganhei a primeira caixa de lápis coloridos. E foi assim que se descobriu que eu era daltônico, pois fiz um desenho com a grama vermelha, e minha mãe ficou um pouco surpresa (risos).
O fato de ter feito um belo desenho não o marcou?
Não tinha consciência se desenhava bem ou não. Meu irmão mais velho, que tinha sete anos a mais do que eu, desenhava. Como ele era bastante agitado, minha mãe fazia com que desenhasse para se acalmar. Ele desenhava o que via. Havia uma antiga série, chamada Gédeon, criada por Benjamin Rabier (1864-1939), um grande desenhista francês. Eu observava meu irmão copiar estes desenhos. É uma memória de infância. Mas meu irmão não pensava em fazer do desenho uma profissão, ele era apaixonado por mecânica, e foi ele que me inculcou o gosto pelos automóveis.
Como você viveu com o daltonismo?
Vivi de uma forma inconsciente. Frequentemente me esquecia que era daltônico. Por vezes, desenhava cavalos verdes, o que fazia as pessoas rirem ao meu redor, e elas me perguntavam: “Mas por que você desenhou um cavalo verde?”. Eu achava que elas estavam brincando. Eu respondia: “Mas ele não é verde, é marrom!”. Neste momento, comecei a compreender que seria preciso contratar um colorista (risos).
Em 1934, você descobriu as histórias de Mickey. Sua vontade de desenhar personagens vem das HQ de Walt Disney, mas, na época, sem imaginar que poderia se tornar uma profissão.
Eu gostava dos filmes de Disney. Nas sessões de cinema da época, havia a projeção de dois filmes longos e, no meio, a exibição de um noticiário, um documentário ou um desenho animado. Havia muitos filmes de Disney, que me marcaram muito. Nos jornais, lia as tiras de Mickey, que até hoje tenho na memória e que me incitaram, pelo prazer, a contar histórias por meio de personagens que eu mesmo criava, sempre com narizes enormes (risos). Mas tudo sem maiores pretensões. Na época, era uma profissão desconhecida. Ninguém sabia o que era história em quadrinhos, exceto aqueles que começaram a fazê-la. Mas eu mesmo não sabia que poderia ser uma profissão.
Foi o seu irmão Bruno que percebeu o seu talento e deu um empurrão na carreira.
É verdade. Só entrei neste meio porque, durante as férias, meu irmão mais velho me disse: “No lugar de ficar vagando na rua, vai ver se consegue algo na área da edição”. Ele sentiu que eu tinha algo. Bruno foi ao mesmo tempo um irmão e um pai para mim, tenho até hoje sua foto na minha mesa de trabalho. Tive dois pais na minha vida. O verdadeiro era um homem obrigado a trabalhar tão duro que não tinha muito tempo para se ocupar do ensino de seus filhos, e para ele era ainda mais difícil porque conhecia mal o idioma. Meu irmão me ajudava nos deveres escolares, e eu o seguia por todo o lado. E foi assim que entrei numa editora, eles se surpreenderam com a qualidade do meu desenho, e me mantiveram lá por um ano e meio. Depois veio a guerra, a ocupação alemã, a fome em Paris. Os nazistas impunham um serviço obrigatório, que obrigava os jovens franceses, e mesmo pessoas de mais idade, a irem trabalhar nas fábricas alemãs. Para fugir disso, meu irmão foi se esconder numa fazenda na Bretanha. Como eu já não tinha quase o que comer em Paris, ele mandou que eu fosse para lá também. Foi assim que conheci a Bretanha, que se tornou a terra que me alimentou. Eu tinha 14 anos, e nesta idade temos muita fome.
Um de seus primeiros trabalhos foi como “repórter-ilustrador” no jornal France Dimanche. Você conta que uma vez chegou a desenhar por 36 horas ininterruptas. Como era este trabalho?
Era uma profissão um pouco singular. France Dimanche era um jornal que hoje chamamos de “people” (revista de celebridades), e que por vezes produzia informações a partir de poucos elementos. Eu lhes servia, de alguma maneira, como fotógrafo. Quando se tratava de uma informação que não se podia fotografar, mandavam que eu a desenhasse. Eu era um tipo de repórter-fotógrafo. Era uma tarefa bastante dura, porque eles esperavam até o último minuto por uma informação interessante. O jornal fechava a edição na terça-feira. Na segunda-feira, eu trabalhava o dia inteiro e a noite toda, e no dia seguinte eles mandavam buscar meus desenhos. Uma vez trabalhei 36 horas sem interrupção, sem dormir, só parando para comer um sanduíche. Mas eu era jovem, e quando se é jovem, dá para fazer isso. Era muito bem pago, bem mais do que nos meus primeiros trabalhos, depois, na HQ. Mas não era uma profissão apaixonante. Eu fazia porque precisava ganhar minha vida, e isso me permitiu comprar meu primeiro carro, um Simca 5, que na Itália se chamava Topolino. Simca era da marca Fiat. O Simca 5 tinha cinco cavalos e rodava até 80km/h, exceto quando o vento era de frente (risos). Mas foi meu primeiro carro, aos 21 anos, e ficava feliz em poder passear nele com meus amigos, numa época em que não havia carro algum em Paris. Era o deserto total. Fui um privilegiado. Morava num bairro popular em Paris, no 11° distrito, na rua de Montreuil, em que não havia nenhum automóvel. Quando comprei meu carro e estacionei na frente de casa, todos os vizinhos desceram à rua para admirar (risos). Para eles, era algo extraordinário. São lembranças que guardo, porque a Paris de hoje não tem mais nada a ver com a Paris daquele tempo.
Você prefere a Paris de outrora?
Ah, sim. Eu vivi em um outro planeta, que nada tem a ver com o que conhecemos hoje. Sem dúvida, as coisas progrediram suavemente para se chegar até aqui, e ainda não terminou. Novas mudanças virão. Mas quando volto no tempo das lembranças e penso no que conheci, no que vivi, a vida era muito diferente. Não tínhamos muito dinheiro, mas vivi uma infância particularmente bela, porque meus pais não tinham nenhum receio de ver seus filhos na rua. Com meus amigos, íamos vagar nos bosques do subúrbio onde morei antes de me mudar para Paris, a quinze quilômetros de distância da cidade. Hoje, Clichy-sous-Bois (no subúrbio) é reconhecido como um lugar perigoso, onde se queimam muitos carros. Mas naquela época era tranquilo, havia pequenas casas, as crianças brincavam na rua. Eu passava meus dias no bosque. Hoje, você não pode deixar uma criança passear assim.
Você sente uma certa melancolia?
Quando se conhece uma época como a que eu vivi, temos todos um sentimento de melancolia, sabemos que as coisas não podem voltar a ser como antes. O progresso está aí, a vida social mudou. Eu conheci uma vida social bastante difícil. Em 1936, me lembro das pessoas desfilando na rua com o punho cerrado para cima, cantando a Internacional e gritando: “Trabalho ou pão!”. Hoje, não se reclama pela mesma coisa, todos querem trabalhar menos e ganhar mais, não é “trabalho ou pão”. Era diferente, a vida era excessivamente dura. Meu pai era um bravo homem que tinha cinco filhos para criar. Meu irmão começou a trabalhar aos 12 anos. Hoje, quando vejo uma criança de 12 anos, penso: “Não é possível que meu irmão já trabalhasse nesta idade”. Eu fui beneficiado com um ano a mais, porque foi instituída uma lei que só autorizava o trabalho a partir dos 13 anos. Depois se passou para 14 anos, 15, 16… para possibilitar às crianças um tempo escolar mais longo.
Em 1951, você conheceu René Goscinny, recém-chegado de Nova York. Você tinha 24 anos e, ele, 25. Uma cumplicidade instantânea se criou entre vocês. Como você mesmo disse: “Nós queríamos refazer o mundo com toda a nossa inconsciência e toda a audácia de nossa juventude”.
Não queríamos refazer o mundo todo, mas ao menos o mundo da história em quadrinhos, porque era, sobretudo na França, um mundo muito pobre. Havia alguns grandes desenhistas, como um que conheci quando tinha 14 anos e de quem tenho um desenho original ali na parede, que se chamava Calvo (Edmond François, 1892-1958). Era um homem extraordinário, mas que tinha dificuldade em se sustentar, porque era muito mal pago. Mas havia muito poucos desenhistas, porque não era uma profissão reconhecida. E o nosso desejo era fazer uma história em quadrinhos um pouco menos óbvia. Mas não tínhamos a pretensão de fazer um humor que interessasse aos adultos. Queríamos, sobretudo, nos divertir. Fazer o humor “torta de creme”, usado nas histórias em quadrinhos feitas para as crianças, não era engraçado. E foi assim, desenhamos para nós, para nos divertir, com o humor que tinha Goscinny e com o meu estilo de desenho grotesco, que não agradava a todos os editores. Diziam do humor de Goscinny que era muito intelectual e, de mim, que meu desenho era demasiado grotesco. Obtivemos sucesso por causa de nossa responsabilidade de criar um novo jornal, o Pilote, em 1959. Do contrário, ninguém nunca teria aceito Astérix. C’est la vie.
Você definiu Goscinny como gênio do humor em seu trabalho de roteirista, mas também na vida real. Ele era na verdade engraçado pessoalmente?
Era realmente uma doença nele. Ele não podia contar algo sem enfeitar com coisas engraçadas. Muitas vezes, inclusive, contava coisas que havíamos vivido juntos, mas que eu não reconhecia, porque ele enfeitava tanto, de uma forma tão engraçada, que criava uma nova história. Era a sua natureza. Para ele, bastavam duas pessoas para que pudesse soltar seu humor. Ele nasceu assim, e não se muda a natureza das pessoas. Ele soube aproveitar isso muito bem, porque fez disso sua profissão. Mas, ao mesmo tempo, foi algo bastante duro para ele. Juntos, comemos o pão que o diabo amassou. Isso aproxima as pessoas.
Segundo você, o humor dele escondia uma extrema timidez, sobretudo com as mulheres.
Ele tinha um complexo. Era judeu de origem, e você sabe que a guerra, infelizmente, deixou rastros difíceis. Mesmo nos Estados Unidos ele sofreu, mas nunca falava disso. Ele se servia do humor para se comunicar com as pessoas. Mas com as mulheres era excessivamente tímido, e usava o humor para fazê-las rir, era algo mais forte do que ele. Mas nunca ia mais longe do que isso. É só ver que ele se casou aos 40 anos. Foi preciso trombar com uma mulher que o forçou um pouco… (risos).
Em uma carta enviada de Nova York, em 1953, Goscinny escreveu: “Nós temos um métier de malucos”.
Na época, era uma verdadeira profissão de loucos. Hoje proliferou, com muitos desenhistas, editores, talvez também graças ao sucesso de Astérix. Não fomos os primeiros, porque Hergé, com Tintin, já tinha números de venda extraordinários. Mas no caso dele, foi algo à parte. Quando entramos nesta profissão, não esperávamos chegar a sua altura. Fazíamos esta profissão pelo prazer, ganhávamos mal nossa vida. O autor não era reconhecido pelo editor, era o desenhista que recebia o prêmio e distribuía o que achava que deveria dar ao autor. O autor não tinha nem mesmo o seu nome inscrito numa história em quadrinhos. Para ver como as coisas evoluíram. Goscinny dizia que era uma profissão de malucos porque não havia nenhuma consideração pelo nosso trabalho. Mesmo se as pessoas percebiam o humor, mesmo se apreciavam no início, quantas vezes me perguntaram: “Mas qual é a sua verdadeira profissão?”. Hoje, as pessoas sabem que a HQ é uma profissão, alguns a chamam inclusive de “a nona arte”. Eu nunca me considerei como um artista, mas como um artesão. Eu tenho respeito pelo trabalho que fazia meu pai, que se tornou artesão quando se aposentou, aos 65 anos. Era um excelente ebanista. Aprendeu a fazer ótimos violões, que vendia a um comerciante de instrumentos musicais, que se chamava Paul Beuscher. Eu tive de fazer com que ele parasse de trabalhar aos 80 anos.
Você descobriu Laurel e Hardy (O Gordo e o Magro) em 1936. A famosa dupla americana de comediantes foi um elemento importante na sua cumplicidade com Goscinny. Por quê?
Nós dois admirávamos Laurel e Hardy, que para mim eram deuses vivos. Éramos como duas crianças a contar um para o outro as piadas dos filmes que conhecemos – ele, nos EUA e na Argentina, e eu, na França. Isso nos aproximou ainda mais. Não é preciso muita coisa para criar uma cumplicidade num trabalho que não tinha nada a ver com o que faziam Laurel e Hardy. Mas tínhamos uma admiração por eles. Poderíamos ter sentido a mesma admiração por Charles Chaplin, conhecíamos a grande arte de Chaplin. Mas, para nós, em Laurel e Hardy havia este diálogo entre os dois personagens, enquanto que Chaplin era solitário. Aliás, é curioso, porque quando criamos Astérix, ele deveria ser um personagem solitário. Por fim, eles se viram a dois. É a história de Laurel e Hardy. Sem querer, fizemos os nossos Laurel e Hardy na história em quadrinhos.
Vocês, inclusive, na vida pessoal adotaram a expressão de Laurel e Hardy “Well, well, alright, hmmm, hmmm” como um tipo de sinal secreto.
Foi uma expressão que notamos nos papéis deles. Um dia escutei a versão original, por atores que falavam um inglês normal, e era menos engraçado. A sorte foi que, na França, eles dublaram utilizando o sotaque americano. A forma como eles falavam nos divertia. Era o nosso “toque de chamada”. Quando nos correspondíamos, sempre terminávamos a carta com “aaall-right”. Verdadeiras crianças (risos).
Em 1976, Goscinny não pôde participar da turnê francesa de lançamento do filme Os Doze Trabalhos de Astérix, mas escreveu uma carta sensível, que você lia antes de cada primeira projeção. No texto, ele dizia que vocês eram “intercambiáveis”. Esta carta sempre mexeu muito com você.
Nós produzimos um filme de animação, e Dargaud (o editor francês Georges Dargaud) quis exibi-lo em todos os grandes cinemas das grandes cidades da França. Dargaud, apesar de ser bastante avaro no plano da comunicação, alugou um jet Falcon e fizemos todas as grande cidades, Marselha, Bordeaux etc. Eu deveria ler esta carta de Goscinny, pela qual ele se fazia perdoar por sua ausência, por causa do câncer de sua mulher – acabou que foi ele que partiu bem antes dela. É verdade que tudo isso foi tocante, porque era alguém com muito sentimento, que se escondia atrás de seu humor. Ele me considerava um pouco como seu irmão menor. Quando eu fazia alguma besteira, ele dizia: “Eu sempre te disse para nunca sair sem mim!” (risos). Era a sua frase.
Vocês criaram Astérix e Obélix em clima de pânico, no estúdio em que você morava em Bobigny, com a ajuda de muitos pastis e cigarros, em quinze minutos.
Nós nos lembramos de tudo isso, mas não da data exata. Sabemos que fazia muito calor, era pleno verão, havia muito sol. Eu tinha este pequeno apartamento em uma habitação popular de Bobigny. Nos reunimos lá porque ele ainda não era casado, morava com a sua mãe, e para trabalhar era mais fácil na minha casa. Estávamos um pouco em pânico, porque o jornal sob nossa responsabilidade deveria sair em 29 de outubro de 1959, e nós havíamos começado com uma ideia que já havia sido usada por alguém, então precisamos recomeçar do zero e tentar achar algo que pudesse convir. Deveria ser algo que relatasse um pouco a cultura francesa. Foi assim que começamos, no plano histórico, a falar dos gauleses. Parecia-nos que os gauleses jamais haviam sido utilizados com humor. Pensamos em pegar o contrapé da história e usar o humor. Se mostrássemos os gauleses derrotados pelos romanos, não seria engraçado. Tudo partiu daí. Era preciso fazer rápido, por causa dos prazos do jornal. Meu desenho ainda não estava bem formatado. Goscinny tinha o essencial do texto, mas não todo o seu humor. A construção da aldeia ainda não estava bem feita, foi sendo aperfeiçoada à medida que os álbuns progrediam. Quando revejo meus primeiros desenhos, fico horrorizado. Gostaria de refazer os primeiros álbuns, mas sempre me disseram o contrário. Quando encontro pessoas que leram os álbuns na época, aos dez anos, e que hoje estão com 60 anos, elas me dizem que preferem guardar a imagem primeira do que conheceram. Se mudar, irei desfazer suas recordações. Portanto, não poderei redesenhar os primeiros álbuns. Azar o meu (risos).
Goscinny queria Astérix como anti-herói solitário. Você lhe impôs Obélix e, mais tarde, Idéfix.
São coincidências. Cada um dava suas ideias. Eu havia entendido mal o que ele queria. Por que ele queria um anti-herói? Porque havíamos trabalhado pela demanda de diferentes jornais da época, que desejavam todos um herói à imagem de Tintin, que fosse aceito pelas crianças e que se parecesse com elas. Por isso eu tinha dificuldade em encontrar trabalho, pois quando mostrava um personagem com um nariz enorme, era automaticamente recusado (risos). A ideia de Goscinny, bem como a minha, era fazer um anti-herói, alguém não obrigatoriamente bonito, mas solitário. Não queríamos entrar no estilo de Hergé, que havia criado um personagem principal, Tintin, e um personagem secundário, o capitão Haddock, com um cachorro que segue atrás. Quisemos sair disso. Ele começou a escrever o primeiro roteiro, e eu a desenhar o primeiro personagem, à imagem de como os franceses veem Vercingétorix (líder gaulês, 72-46 A.C.), grande e forte. Goscinny viu e disse: “Não é isso, ele é muito atleta, prefiro um personagem pequenino, magrinho, não obrigatoriamente inteligente, mas esperto”. Recomecei e desenhei o personagem mais ou menos como Astérix é hoje.
E como surgiu Obélix?
Era preciso colocar personagens na aldeia. Goscinny me disse: “Você instala a aldeia onde quiser, para mim o essencial é que seja perto do mar”. A única região que eu conhecia com mar era a Bretanha, e decidi localizá-la lá. A Bretanha é bastante conhecida pelos menires, os dólmens. E fiz um personagem que adorava os menires, portava um nas costas. Goscinny disse: “Olha só, este personagem pode ser mesmo engraçado”. Ele o utilizou no primeiro Astérix, mas não de forma completa. Depois, teve a ideia de que Obélix fosse forte porque caiu no caldeirão do druida, e que seria algo permanente, não poderia mais tomar a poção mágica. Tudo acabou sendo feito assim, pouco a pouco, não em bloco, mas acrescentando-se elementos.
E depois veio Idéfix.
Para o cãozinho, foi igual. Nunca perguntei a Goscinny por que ele me pediu para desenhar um pequeno cão na porta de uma salsicharia. Porque depois o cachorro desaparece. E foi aí que eu lhe disse: “Quero fazer uma piada, fazer com que ninguém veja o cachorro de tão pequeno que ele é, e assim ele segue os personagens…”. E é verdade que o cão teve sucesso, os leitores queriam revê-lo, saber seu nome. Fizemos um concurso junto aos leitores para a escolha do nome, recebemos milhares de cartas, e cinco delas sugeriram Idéfix.
Era também o que dizia Goscinny, que havia entendido a importância deste personagem. Era o que chamamos de um faire-valoir, aquele que, como na dupla Laurel e Hardy, não compreende tudo. Há aquele que dirige a história, e o outro, que a segue sem a compreender, mas que mesmo assim ajuda em sua concretização. Este personagem, que é um pouco ingênuo, logo conquistou a simpatia do público, sobretudo das crianças. E a nossa também. Eu gosto muito de desenhar Obélix, porque ele tem sempre uma atitude um pouco particular, enquanto Astérix é alguém sério. Quando todo o mundo na aldeia briga com golpes de peixes, há apenas dois personagens que não entram na disputa, o druida e Astérix. Eles ficam observando seus companheiros e se dizendo: “Francamente, são todos de mentalidade reles”. Isso criava um equilíbrio entre os dois personagens, que hoje não podem mais ser separados. Se Obélix desaparecesse, seria um escândalo, o leitor não me perdoaria.
O leitor influenciava o trabalho de vocês?
O leitor solicita coisas. Foi o caso, por exemplo, da piada dos piratas, que criamos a partir de uma série realista de Pilote, que se chamava O Demônio do Caribe, feita por amigos. Por meio do jornal, tínhamos uma relação com o leitor bastante viva e profunda. E muito rápida. Como era um semanário, e como fazíamos o trabalho com pouco adianto, tínhamos quase instantaneamente a reação dos leitores. Fomos praticamente obrigados a sempre colocar nas histórias o banquete final, as brigas com os peixes como porretes e, sobretudo, os piratas, que receavam por seu barco. Eles se tornaram um gimmick, parte integrante das aventuras de Astérix.
Você critica o espírito cartesiano francês de sempre querer dar uma explicação a tudo, sobretudo quando se trata de um sucesso. Já se creditou o sucesso de Astérix e Obélix ao fato de a dupla de gauleses cutucar o lado chauvinista do francês, e mesmo de ser inspirada na figura do general de Gaulle. Por que você considera “inútil” perguntar sobre as razões do sucesso de Astérix?
Porque, tanto Goscinny como eu, nunca conseguimos responder a esta questão. Nós não esperávamos de maneira alguma tal sucesso. Mesmo o editor, Dargaud, não imaginava algo assim. Um ano antes de Astérix, havíamos criado um outro personagem, que se chamava Oumpah-Pah, a história de um índio. O humor de Goscinny já se exprimia de maneira bastante forte naquele momento. Mas esse personagem não teve muito sucesso. E o fizemos com a mesma vontade com a qual fizemos Astérix. Por que Astérix fez este sucesso repentino? É o segredo da poção mágica (risos).
Segundo você, o editor Georges Dargaud pouco fez pelo sucesso de Astérix. O que funcionou teria sido, sobretudo, o boca-a-boca, ou, como disse certa vez, o “boca de druida à druida”. Neste aspecto, Astérix, para você, seria um pouco como Harry Potter, cuja criadora, J.K. Rowling, foi surpreendida pelo repentino sucesso.
O sucesso não vem obrigatoriamente de uma ofensiva publicitária ou promocional. Isso pode ajudar para não importa que produto, mas só dura por um tempo. Não é algo perpétuo. O boca-a-boca é formidável. As pessoas falam porque descobriram algo que as diverte, lhes dá prazer. E vai de boca em boca. E, de um álbum a outro, tivemos uma progressão de venda extraordinária. Dargaud nunca fez promoção. Ele não tinha nem a intenção de aumentar a tiragem, mesmo que já estivéssemos em 100 mil exemplares, para ele já era enorme. Eu precisei forçar a mão dele. Ameacei romper o contrato, e ele aumentou a tiragem para 200 mil exemplares, todos vendidos. Depois, subiu para 300 mil. O primeiro álbum foi publicado em 1961. Em 1966, o L’Express (semanário francês) saiu com a capa: “O fenômeno Astérix”.
Eu acabo de receber um livro que não consegui compreender (Tu sais ce qu’il te dit, Môssieu Astérix? – Você sabe o que ele te diz, Môssieu Astérix?, de Bernard Lavillate, ed. Inlibrovéritas). Não sei o que dizer ao autor, porque não entendi nada. Ele mistura Sartre com a psicologia para interpretar Astérix. Há pessoas que pegam Astérix como testemunha para afirmar certos discursos e valores que não são claros para os autores nem para os leitores, exceto para aqueles que desejam absolutamente provar certas coisas, as quais eles são os únicos a compreender.
Em uma Europa cada vez mais unificada e em meio à crescente globalização, Astérix aparece para muitos como um contraponto, um símbolo de resistência à estandardização e à invasão preponderante de certas culturas. Você concorda?
Efetivamente, nós nos questionamos sobre isso. Ocorreu-nos um pouco essa história da revanche do pequeno contra o grande. E todos temos uma revanche contra algo que nos ultrapassa e nos destrói, como alguns políticos que decidem leis nem sempre bem aceitas, mas às quais somos obrigados a nos sujeitar. Penso que por isso houve uma ressonância em outros países, porque é parecido, todos são atingidos por este fenômeno de saber que se está submetido a uma força contra a qual nada se pode fazer. Talvez Astérix tenha servido como um tipo de símbolo ao mostrar que ele, pequeno, podia fazer algo. É um pouco como David contra Golias, não se reinventa a história. E utilizamos um período histórico muito importante, a invasão da Gália pelos exércitos romanos, que eram extremamente fortes, a grande potência mundial da época. Nós cutucamos a história dizendo: “Eles ocuparam o mundo inteiro, exceto uma pequena aldeia…”. É isso que fez com que a maionese desse certo. Mas nós não tínhamos consciência disso.
Astérix resiste em sua aldeia, mas com o espírito aberto. Ele viaja pelo mundo.
Eles não têm a pretensão de reconquistar a Gália, só o que querem é que os deixem em paz. E quando alguém lhes vem pedir ajuda, até o druida diz: “Quero ajudar, mas atenção, só se deve usar a poção mágica em caso de real necessidade, não para atacar outras pessoas”. Porque se sabe que na história as tribos gaulesas lutavam entre si. Aliás, o espírito francês se manteve assim. Há aquela frase do general de Gaulle sobre haver tantos queijos na França quanto o número de dias no ano (a frase “Não se pode governar um país que possui 365 variedades de queijos” é constantemente atribuída a de Gaulle). O que prova que há sempre este espírito um pouco gaulês de querer superar aquele que está ao lado. Não há esta unidade que se vê em outros países. Astérix sensibilizava aquelas pessoas que desejavam reagir. Sei que se pudesse reagir contra certas leis que me irritam, o faria, mas não possuo os meios. Infelizmente, não tenho a poção mágica (risos).
Certa vez, foi feita uma sondagem entre políticos franceses para saber se Astérix era de direita, de esquerda ou de outra tendência política e ideológica. Deu um pouco de tudo: que era de direita, de esquerda, ecologista, machista.
Nunca quisemos fazer política, por uma simples razão: sabemos que é muito perigoso dar ideias políticas às crianças. Penso que se deve deixar à criança a sua liberdade de espírito. Ela deve estudar História, claro, mas não se deve inculcar nela este ou aquele partido político. A criança deve fazer sua vida, e é ela que saberá mais tarde que partido escolher. Nós sempre quisemos ser apolíticos. E não concedo a ninguém o direito de dizer de que partido somos. Mesmo que tenhamos nossas próprias ideias, não as colocamos nas nossas aventuras.
Vocês nunca quiseram infiltrar ideias políticas nas histórias de Astérix, mas divertiram bastante os adultos com críticas da sociedade, da moral e dos costumes.
Mas isso não é a política da politicagem, é a vida de todo dia, porque, evidentemente, nos servimos do cotidiano dos franceses para adaptá-lo às aventuras gaulesas. Se tivéssemos feito verdadeiras aventuras gaulesas, seria muito menos engraçado. Os gauleses eram guerreiros sanguinários. Diz-se que quando faziam prisioneiros, cortavam-lhes a cabeça e as penduravam em postes fincados em suas cabanas, para mostrar que eram fortes. Era dramático. Isso era o que contavam os romanos, que queriam mostrar que os gauleses eram bárbaros. Descobrimos hoje muitas coisas que demonstram o contrário, que os gauleses possuíam uma certa civilização. Mesmo se havia divergências entre as tribos, eles tinham uma forma de viver bastante realista, não estavam todo o tempo brigando entre si. Eles inventaram uma máquina agrária extraordinária, um tipo de ceifadeira, puxada por animais, usada para cortar o trigo mais facilmente. Como os gauleses não registravam por escrito a sua forma de viver, foram outros que deram as suas versões. Júlio César queria mostrar ao Senado romano que havia vencido tribos de selvagens, e que era uma glória ter transmitido um tipo de civilização romana. O que, aliás, foi feito, a Gália se romanizou. Mas nós temos um enorme orgulho de saber que foram os gauleses que inventaram o barril! (risos). Eles não eram seres brutos, só com um sabre e uma espada para bater na cabeça das pessoas. Eles tinham uma forma de cultura, que infelizmente não se propagou, porque só os druidas tinham a distinção intelectual, o gaulês simples não escrevia e não podia transmitir o que tinha em sua cabeça.
Seu pai teve um sério desentendimento com os irmãos dele no início dos anos 1920, o que provocou a partida dele e de sua mãe para a França. Ao longo de sua vida, você enfrentou diferentes processos na Justiça e, hoje, talvez viva o mais doloroso deles, a ação judicial que opõe você e sua filha única, Sylvie, contrária ao novo controle acionário majoritário das edições Albert-René pelo grupo Hachette, uma decisão sua e de Anne Goscinny (filha e herdeira de René Goscinny). Como você se sente com isso?
Infelizmente, há hoje esse problema sabido de todos, mas do qual não quero falar, se você me permitir. Espero que um dia tudo seja resolvido. Pode-se esperar tudo na vida, mesmo para alguém da minha idade, para quem o tempo passa muito rápido. Mas não quero falar disso. É algo muito difícil para mim.
Com a morte repentina de René Goscinny, em 5 de novembro de 1977, foi decretada pela crítica em geral a morte do “pai de Astérix” e também a do próprio personagem. Você sofreu por ter sido ignorado naquele momento?
O autor estava morto, Astérix estava morto, não se falava do desenhista, então significava que ele estava morto também. Isso foi muito duro de suportar. Vivi mal a morte do meu amigo, que aconteceu de uma forma brutal, ninguém esperava, nem mesmo ele. Levei muito tempo para assimilar isso. É verdade que, para mim, Astérix estava morto. Mas passei dois anos escutando as pessoas dizerem que aquele que retomasse Astérix fracassaria, que seria impossível depois de Goscinny. Ninguém falava de mim, eu não existia. Meu orgulho reagiu de uma forma completamente extravagante. Já que era assim, decidi que não iria somente escrever eu mesmo o roteiro de um novo álbum, mas também que eu mesmo iria editá-lo, algo insensato. Mas fiz e não me arrependo, porque deu certo. Obrigado à imprensa que me esqueceu, obrigado àqueles que negaram o fato de que eu pudesse um dia fazer algo. Ainda hoje há críticas duras, mas o público não segue os críticos, isso que é bom.
Você sempre disse que Astérix desapareceria depois da morte de seus dois criadores. Mas, hoje, mudou de ideia, e deseja que a aventura continue quando não estiver mais neste mundo. Por quê?
Mudei de ideia por várias razões, que estão relacionadas, justamente, a este problema que vivo hoje em dia (o processo judicial entre ele e sua filha). Quis mudar as regras. E depois me perguntei: “Por que um autor desejaria que um personagem morresse com ele?”. É um tipo de egoísmo. No final das contas, se os leitores ainda demandam o personagem, então que seja feito por outro, e caberá a este outro provar que o sucesso persiste. É uma aposta no futuro. Aquele que assumir terá um trabalho considerável para não desanimar o leitor. Eu não posso proibir isso, assim como tampouco fizeram todos os meus colegas – como Franquin, com Gaston Lagaffe; ou Maurice, com Lucky Luke -, que permitiram que se desse continuidade aos seus personagens. Apenas um recusou: Hergé. Mas se trata de egoísmo puro e simples. Quando não estivermos mais aqui, não importa. Não sei se poderemos ver algo lá do alto do céu.
Você ainda acompanha a HQ?
Um pouco, mas não muito. Por razões práticas. Eu me digo que se um dia ler uma história em quadrinhos, reter uma ideia, e então que eu mesmo esqueça que tirei essa ideia de lá e a projete numa das aventuras de Astérix, isso pode ser muito grave. Para evitar ser influenciado, leio pouco. Mas leio algumas, como Titeuf, personagem criado por Zep, um jovem de muito talento, reconhecido como alguém que trouxe algo novo. Há ainda outras séries e autores de talento, mas li tantas histórias em quadrinhos na minha vida…
Quais são os seus álbuns preferidos de Astérix e por quê?
Já disse que talvez tenha apreciado mais um álbum do que outro, embora goste de todos, sobretudo dos álbuns escritos por Goscinny. Mas há um que me divertiu muito, que é “Astérix entre os Bretões”, porque Goscinny transpôs o vocabulário inglês em francês, e achei isso extraordinário. Foi algo muito engraçado e muito inteligente, ninguém havia tido essa ideia. Tenho um amor especial por este álbum. Não é em relação ao meu trabalho, mas ao de Goscinny. Em todo caso, não tenho nenhum arrependimento em relação ao que fiz, amo todos os meus álbuns, os meus filhos, mesmo aqueles que fiz sozinho.
Você se arrepende de algo em sua vida?
Não. Teria dificuldade em me arrepender do que quer que seja. Penso ter sido bem-sucedido na minha vida. Minha vida profissional, minha vida familiar – à parte esta “pequena coisa” (o processo jurídico movido por sua filha). Vou festejar este ano 56 anos de casamento com minha esposa, o que revela uma vida bem-sucedida e tanto. Surpreendemos muita gente quando falamos disso. Um dia recebi uma medalha de Comandante das Artes e das Letras, que me foi concedida pelo então ministro da Cultura francês, Jacques Aillagon, junto com um diretor e um ator de cinema. Todos fizeram seu discurso, eu fui o último. Não sabia que teria de fazer um discurso. Havia festejado 50 anos de casamento com a minha mulher, e então disse: “É um ano extraordinário para mim, não apenas recebo uma distinção muito importante, mas, além disso, festejei as Bodas de Ouro com minha esposa”. Quando disse isso, houve gritos na audiência, repleta de gente do cinema. Nunca tive tanto sentimento de simpatia por parte das pessoas do cinema como nesse momento (risos).
Você tem medo da morte?
Sou como todo o mundo. Não tenho medo da morte, mas medo de não mais viver. Estou habituado a isso, pois perdi todos os meus companheiros de viagem. A maioria destes que você vê na parede já partiu (aponta para os quadros com fotos e/ou desenhos de diferentes autores de HQ). Eram pessoas da minha geração. Nos conhecíamos enormemente, formávamos um tipo de francomaçonaria. Mas éramos desconsiderados pelo mundo exterior, e tentávamos nos aproximar, belgas como franceses. Era uma época que não existe mais. É a evolução da vida, as coisas são tão diferentes hoje. Não reconheço mais essa profissão. Criei minha empresa há 30 anos, não tive mais vivência com editores externos, não sei mais como funciona.
Seus pais nasceram na Itália, foram naturalizados franceses em 1934. Você é francês de nascimento. Que relação você tem hoje com suas origens italianas?
Meus pais chegaram na França em 1923. A Itália foi o país deles, mas não é mais o meu. Ainda tenho muitos parentes lá, primos. Certa vez, uma prima me convidou para ir à Itália com a minha família. Achei que seria recebido por três ou quatro pessoas, mas, quando chegamos, eles eram quarenta primos! (risos). O fato de eu falar pouco o italiano tornou a nossa comunicação um pouco difícil, mas foi, mesmo assim, um encontro extremamente simpático.
Você nunca quis aprender o italiano?
Meu pai falava francês muito mal, mas queria falar o francês o tempo todo. Ele falava em italiano com a minha mãe, por isso tenho a música da língua na memória. Compreendo bem o italiano, mas falar é difícil para mim. Não tenho nenhuma prática. Seria preciso viver uns seis meses na Itália e falar apenas o italiano, desse modo aprenderia rápido, porque quando se conhece uma língua em criança, mesmo que não a pratiquemos depois, guardamos sempre na cabeça o que chamo de “música da língua”. E como se trata de uma bela língua, me arrependo de não tê-la aprendido.
Você já esteve algumas vezes no Brasil. Quais as suas lembranças destas viagens?
Fui três vezes ao Brasil, sendo que viajamos duas vezes ao Rio, de Concorde, passando por Dakar. Estive pela primeira vez em 1971, com a minha mulher e a minha filha. Fomos visitar minha irmã, que estava instalada no Rio. Meu cunhado era militar, foi enviado ao Rio. Minha irmã nos convidou para ir ao Brasil ver o Carnaval. Assistimos a este extraordinário Carnaval, que acontecia em uma avenida hoje não mais utilizada para os desfiles. Em outra vez que retornamos, o Carnaval já ocorria em outro local, era um pouco diferente, mas continuava extraordinário. Fomos recebidos pelo nosso editor brasileiro (Alfredo Machado, fundador da Record, já falecido).
O que o Brasil evoca em você?
Antes de tudo, me evoca um país extremamente belo. Tivemos o prazer de ir até a capital, Brasília, com construções ainda inacabadas. Era relativamente deserto. Eu me lembro de ficar surpreso na visita a um grande centro comercial, pois não havia quase ninguém, mas uma loja tinha os álbuns de Astérix à venda. Saber que estávamos tão longe de casa e ver os álbuns lá me deu obviamente prazer, e me emocionou o fato de saber que o trabalho que fazíamos podia ser apreciado em locais tão longínquos. Não visitei as favelas, porque era algo um pouco delicado de organizar, mas queria tê-lo feito. Havia uma favela ao lado de Brasília, ocupada por pessoas que trabalharam na construção da cidade, mas não pudemos colocar os pés lá. Fora isso, é um país extremamente colorido. A imagem que guardo do Rio e de seu Carnaval é evidentemente fantástica. Fomos convidados aos bailes. As fantasias, as belas mulheres…
Astérix também tem uma história de sucesso no Brasil.
Fico contente de saber que é um personagem que agrada no Brasil. Uma coisa surpreendente é que somos, em geral, bem-recebidos na América do Sul – Brasil, Argentina, Chile e outros países -, mas na América do Norte é o contrário. Os americanos nos fecham as portas. É um país de democratas, mas com uma democracia bastante singular. Tudo o que fazem, projetam no mundo inteiro. Mas eles mesmos não recebem nada deste mundo inteiro. São portas fechadas. Podemos viver sem os americanos.