FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – Para o filósofo francês Geoffroy de Lagasnerie, a queda do Muro de Berlim frustrou as expectativas de uma abordagem mais global dos problemas do mundo, favorecendo, na contramão, um pensamento de âmbito nacional, sob a tutela do liberalismo dominante. O pensador defende a superação do modelo da democracia liberal, que já teria comprovado sua incapacidade de vencer as injustiças e desigualdades, por um novo regime político a ser inventado.
Com o olhar de hoje, como o senhor vê esse momento histórico da queda do Muro há 30 anos?
A queda do Muro foi o fim de algo que dividia o mundo em dois grandes blocos, o comunista e o liberal ocidental, e penso que isso poderia ter sido ser o ponto de partida para a renovação de um pensamento em caráter mais internacional, mundial. Mas, paradoxalmente, foi o ponto de partida de uma certa forma de renovação do pensamento nacional e de nacionalismos. Não foi cumprida a promessa de refundar uma forma de pensamento do mundo em sua globalidade, para fenômenos como o clima, a geopolítica da energia, a imigração. Para mim, a queda do Muro foi uma oportunidade perdida. Em vez de resultar em uma forma de renovação da capacidade de questionar mundialmente os problemas, foi o momento em que o internacional rimou com o liberalismo autoritário.
A queda do Muro suscitou uma euforia e esperanças não somente para a Alemanha reunificada, mas para a Europa e para uma nova geopolítica mundial. Como o senhor analisa as mudanças ocorridas nestes 30 anos em relação às expectativas da época?
Uma das críticas ao modelo soviético se referia à burocracia e ao poder de Estado extremamente forte, e que isso se opunha a uma utopia liberal, descentralizada e pluralista de mercado. Paradoxalmente, o modelo que substituiu é também amplamente burocrático: a burocracia liberal capitalista. Não se constituíram Estados fracos, menos poderosos. Surgiram Estados autoritários, com uma outra lógica. Não se levou a sério a crítica da URSS para se fazer uma crítica da burocracia e do poder de Estado, que se reforçou por todo o lado. E penso que, hoje, há uma luta importante entre quem porta as ideias internacionais e nacionais. A Europa, por exemplo, deveria ser capaz de superar os particularismos e colocar os problemas de forma continental. Dois movimentos tentaram repensar uma forma de global: WikiLeaks, na questão de transparência internacional e na aliança de cidadãos de diferentes países; e, pelo lado negativo, o terrorismo, com o Estado Islâmico, por uma guerra mundial. Ao mesmo tempo em que os grandes problemas se tornam internacionais, o espaço de pensamento se torna nacional. Para mim, esta é a maior tensão contemporânea, e que predispõe uma lógica de direita no mundo. A imigração é outro exemplo, com fluxos migratórios enormes, e não há nenhuma instância que se encarrega disso de um ponto de vista mundial. Cada Estado reage sobre os efeitos e nunca sobre as causas.
O fim da Guerra Fria e do comunismo soviético decretaram o fim da bipolaridade EUA-URSS. Hoje, potências como EUA e China se disputam, mas em um outro contexto. Como o senhor vê isso?
Não diria que há um conteúdo de oposição tão intenso entre os EUA a China. São dois países parceiros, que comercializam entre si, mesmo com conflitos. Não se pode pensar na China como um contramodelo dos EUA. São dois Estados autoritários liberais que se afrontam por parte de mercados. Não são dois modelos de sociedade que se combatem.
Há 30 anos, o cientista político americano Francis Fukuyama apontou o “fim da História” com a supremacia da democracia liberal no mundo. O senhor concorda?
Acabo de publicar um livro, “A consciência política”, no qual defendo que é preciso inventar um regime pós-democracia liberal. É verdade que chegamos ao fim da História em termos de modelo. Compreendo que seja difícil imaginar algo além dos modelos da democracia, do parlamento, do voto, da independência da justiça. Mas, se observarmos o que passa concretamente em escala mundial, vemos que esse modelo não promove a liberdade, a racionalidade ou a justiça, mas produz Donald Trump, Boris Johnson, Bolsonaro, Viktor Orbán, Matteo Salvini ou os fascistas na Áustria. Paradoxalmente, democracias liberais resultaram em governos eleitos, com uma legitimidade do voto, mas que são contrários a todos os valores do liberalismo, de justiça, de igualdade, da proteção de minorias e mesmo de uma decência mínima no tratamento das pessoas. Todos esses elementos que vemos no mundo devem nos estimular a pensar em regimes políticos além da democracia liberal. Não se pode mais suportar que alguém, pelo fato de ter sido majoritário em uma eleição, possa impor um poder fascista, desmontar a proteção ao meio ambiente, dar todo poder à polícia, suprimir direitos sociais ou livrar os imigrantes ao mar. Devemos encontrar um meio de sair disso, é preciso privilegiar o direito e a justiça sobre a democracia. Penso, contrariamente a Fukuyama, que o modelo da democracia liberal nos mostra que não é justo, não leva a resultados racionais, a discussões serenas, à proteção das minorias. Para mim, 1989 não é o fim, mas o começo da História. Fomos governados pela ideia de que a democracia liberal seria o fim, mas é a maneira pela qual podemos, hoje, reinventar um modelo político totalmente diferente que se torna urgente. A democracia não existe. Sempre foi pensada em oposição à ideia de aristocracia ou de colônia, isto é, um povo que se governa a si mesmo. Mas um povo é um espaço de afrontamento, de tensão, e o voto é sempre um momento em que uma parte da população utiliza o Estado para impor suas vontades a outros. Quando se vê a diferença entre os habitantes de um território, que têm direito ao voto, que estão inscritos para votar e quem ganha, ao final é sempre uma minoria de uma minoria que domina os demais. A democracia é uma fantasia de autorrepresentação.
Como superar a democracia de hoje?
É preciso pensar que a história humana foi feita de invenções. Quando se vivia sob a monarquia absoluta, a ideia de se pudesse criar um sistema no qual as pessoas votassem devia ser considerada como uma loucura. No entanto, aconteceu. Não podemos pensar que, hoje, o que nos parece uma loucura não possa jamais ser inventado. Creio que, hoje, há germes disso em instâncias supraestatais.
O fracasso da democracia liberal apontado pelo senhor não poderia abrir espaço para a criação de regimes autoritários?
O problema é que os desvios autoritários já estão presentes. Se observa, hoje, que a forma como funciona a democracia inclui os desvios autoritários. Não se pode opor a um outro modelo, porque já está incluído.
Como o senhor analisa este momento do mundo com protestos das populações no Chile, Equador, Bolívia, Hong Kong, Iraque, Líbano, Argélia, Egito ou Guiné?
Vejo um ponto comum na reação dos Estados. Se viu na França com o coletes amarelos e no Chile ou no Líbano, que quando as pessoas descem às ruas, o primeiro reflexo do Estado é atirar contra elas para que voltem para casa. Nunca é o de resolver o problema, saber se as pessoas estão realmente podendo comer, se exprimir, se têm onde dormir. Não se pensa nas pessoas que protestam, em seus problemas, mas no Estado como instrumento de dominação.
Como vê o governo Bolsonaro neste contexto mundial?
Comparado a Trump ou a Boris Johnson, penso que Bolsonaro tem algo a mais, em sua relação com o Exército, com a imprensa, sua violência verbal. E enquanto as esquerdas se encontram, hoje, isoladas e têm dificuldade em se organizar, as extremas direitas se apoiam muito internacionalmente. Mas Bolsonaro se inscreve na história do que chamamos de democracia, foi uma eleição. Não se deve pensá-lo como uma aberração, mas como algo que é possível em nosso sistema. No caso de se querer combatê-lo, se deve também combater o que o tornou possível. Trump chegou ao poder com um Estado de poderes executivos que haviam sido reforçados por Barack Obama, principalmente nas questões da polícia e da imigração. Deve-se tornar o Estado o mais fraco possível, para que quando os extremismos estejam no poder não possam causar muitos danos. É preciso constitucionalizar mais direitos.
O Estado mínimo é um dos preceitos neoliberais…
É um erro quando se diz que vivemos em um mundo neoliberal. Reformas bancárias ou do serviço público são lógicas neoliberais. Mas quando se lê os teóricos neoliberais, a maioria é favorável à abolição da prisão, pois pensa que não cabe ao Estado prender as pessoas e defendem que os crimes devem punidos com indenizações individuais. São pela legalização das drogas, os direitos das minorias e contra a discriminação. Há todo um universo do neoliberalismo que não é a favor de um Estado punitivo, carcerário e de guerra às drogas. Os neoliberais são favoráveis à imigração incondicional, dizem que o Estado não deve controlar os movimentos das pessoas, e mesmo que sair de um país deveria ser um direito do homem. Friedrich Hayek disse isso, Robert Nozick e Gary Becker idem. Não se pode dizer que vivemos em uma sociedade muito laxista em termos de imigração. Vivemos em um mundo bem mais heterogêneo do que parece. Não penso que vivemos em uma sociedade neoliberal. Neoliberalismo não é uma palavra adequada, pois dá a impressão de unidade ao mundo caótico em que vivemos.
Qual seu balanço do mundo desde a queda do muro?
É um bom sinal quando as coisas são dramáticas, significa que não se têm a grade para pensá-las. A invenção pode ser aterrorizadora, mas também positiva. Há ocasiões históricas a não serem perdidas. Em resumo, se pode dizer que a extrema direita foi mais inventiva do que a esquerda nestes últimos tempos. Fez, por exemplo, um melhor uso do poder de Estado e das redes sociais. Soube captar as transformações para solidificar seu poder. A esquerda não fez este trabalho, não produziu novos instrumentos de pensamento, não se reinventou. É preciso se apropriar deste momento para sair da depressão. Todos meus amigos estão deprimidos. Não falam de amor, de amizade, de rir, só de Trump. Meus amigos alemães estão petrificados com a AfD (Alternativa para a Alemanha, partido de extrema direita). A extrema direita conquistou uma forma de paralisia de nossas faculdades mentais e nos coloca em um tipo de angústia permanente. É preciso ser mais inventivo do que ela, sair do pessimismo e passar a uma fase mais experimental. Portugal, por exemplo, hoje é um país que experimenta um governo de esquerda em vários temas, na questão do orçamento, dos direitos de imigrantes, dos transgêneros. Há coisas acontecendo.