FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – Apoiada em uma murada da Pont Neuf, a parisiense Virginie Bastier, 55 anos, não continha as lágrimas diante das chamas que consumiam o telhado e as entranhas da catedral de Notre-Dame, no início da noite de ontem.
O incêndio que devastou a secular catedral em plena Semana Santa, apesar de ter destruído dois terços dos telhados, preservou a estrutura principal e as duas grandes torres de sua fachada, um alento na perspectiva de sua reconstrução. O pináculo em forma de agulha, uma marca da Notre-Dame, desabou completamente, em uma imagem que percorreu o mundo. O presidente francês, Emmanuel Macron adiou, em cima da hora, a alocução televisiva em que deveria anunciar medidas para atender às reivindicações do movimento dos “coletes amarelos”, e prometeu todos os esforços para a reedificação do emblemático monumento:
– Notre-Dame de Paris é nossa História, nossa literatura. É o epicentro de nossa vida. É tantos livros e pinturas. É a catedral de todos os franceses, mesmo daqueles que nunca a visitaram. Nós faremos apelo aos maiores talentos e reconstruiremos Notre-Dame, pois é o que esperam os franceses, é o que nossa História merece, é nosso profundo destino – disse Macron, ao lado do premier Édouard Philippe e da prefeita de Paris, Anne Hidalgo.
A Fundação do Patrimônio francesa lançou uma campanha de coleta de fundos para financiar a futura reconstrução da catedral, monumento histórico mais frequentado da Europa, com mais de 13 milhões de visitantes anuais. Ao longo da noite, dezenas de internautas providenciaram, via plataformas online, iniciativas semelhantes de arrecadação de recursos. A família Pinault, do grupo de luxo Kering, foi a primeira a nunciar uma diação, no valor de € 100 milhões, para ajudar na reedificação. Na opinião de Eric Fischer, diretor da Fundação da Obra Notre-Dame, da Catedral de Strasbourg, segundo os estragos “consideráveis”, serão necessárias “décadas” para a reconstrução da catedral.
180 anos de construção
Deflagrado por volta das 18h50m (13h50m horário de Brasília), o braseiro se propagou rapidamente por causa da ampla e inflamável estrutura superior formada por antigas vigas de madeira, em um “incêndio difícil”, na definição das autoridades, por causa da complexidade de intervenção no histórico prédio, cuja construção iniciou em 1163 e levou 180 anos para ser concluída. Recorrer ao despejo de água por meio de helicópteros ou aviões Canadair – como foi sugerido pelo presidente americano, Donald Trump, via Twitter – não era uma opção viável segundo a segurança civil, por causa do alto risco de efeitos colaterais na estrutura da edificação. A Justiça francesa abriu um inquérito por “destruição involuntária por incêndio” para determinar as causas do incidente. Uma das hipóteses é a de que o fogo tenha começado no canteiro de obras de restauração do telhado, então em curso. Já na madrugada de hoje, operários que trabalhavam no local começaram a ser ouvidos no âmbito da investigação. Pelo momento, a possibilidade de que tenha sido um incêndio criminoso não é a primeira alternativa considerada pelas autoridades.
Uma parte das obras conservadas no interior da catedral puderam ser extraídas. Dezesseis estátuas já haviam sido retiradas no último dia 11, para restauração.
– Creio que salvamos a coroa de espinhos, a túnica de São Luís, alguns cálices, e o penso que o tesouro também não foi atingido. No interior, foram salvos também alguns quadros – declarou o reitor da catedral, monsenhor Patrick Chauvet.
A medida que a noite adentrava, uma multidão em recolhimento, incrédula e entristecida se aglomerava no entorno do incêndio, em um silêncio somente interrompido por um canto espontâneo de “Ave Maria” e outras preces. Franceses e turistas se mostravam ao mesmo tempo solidários e impotentes face ao esforço dos cerca de 400 bombeiros mobilizados para conter o fogo, segundo os números do Ministério do Interior. Por volta das 00h30, quando finalmente as chamas começavam ser controlodas, o numeroso grupo que ainda pemanecia em frente à catedral proporcionou uma salva de palmas ao corpo de bombeiros.
Marina Legrand, 72, estava em sua casa, nas proximidades, quando foi avisada por uma amiga do incêndio e desceu à rua para testemunhar a tragédia.
– As pessoas estão sideradas. É uma ferida muito profunda. É um dos maiores símbolos de Paris e da França que parte em fumaça. E, pelos tempos que correm, temos de reconhecer que não se trata de algo anódino. Mas, a exemplo de outras catedrais, vamos reconstruir tudo isso. Eu, certamente, não verei a nova Notre-Dame, mas os jovens, sim.
Comoção mundial
Líderes e personalidades de diferentes países – o próprio Trump, a chanceler alemã Angela Merkel, a premier britânica Theresa May ou o ex-presidente Barack Obama – manifestaram sua “tristeza” e “solidariedade” aos franceses. O presidente Jair Bolsonaro declarou seu “profundo pesar pelo terrível incêndio que assola um dos maiores símbolos da cultura e da espiritualidade cristã e ocidental”. A Unesco se prontificou a estar “ao lado da França para salvar e reabilitar este patrimônio inestimável”. Os jornais franceses desta terça-feira dedicam a integralidade de suas primeiras páginas à tragédia: “Notre-Dame des larmes” (Notre-dame das lágrimas), titulou Le Parisien; “Le coeur em cendres” (o coração em cinzas, La Croix, ou “Notre-Dame: le désastre” (Notre-Dame: o desastre), Le Figaro.
As irmãs Helga, 27, e Nara Pérez, 25, turistas espanholas, estavam em seu segundo dia de férias parisienses e pretendiam visitar a catedral nesta manhã.
– Estávamos na Torre Eiffel quando nos informaram do incêndio e na hora ficamos sem saber o que fazer. Podia ser um atentado. Foi um momento de completa incerteza. Vamos ter de esperar cinco ou dez anos agora, até ser reconstruída, e certamente nunca mais poderemos visitar a Notre-Dame como era antes. Foi algo realmente terrível.
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Incêndio é nova tragédia a golpear Paris após terrorismo e violência em protestos
PARIS – No final de tarde de céu azul de uma primavera ainda incipente, a célebre Cidade-Luz não esperava ser iluminada pela triste claridade das chamas em um de seus maiores símbolos, deixando sua população chocada diante da desoladora paisagem de uma Catedral de Notre-Dame destruída pelo fogo. Paris, campeã do turismo mundial, reconhecida pelos guias de viagem como cidade romântica e capital da gastronomia, futura sede dos Jogos Olímpicos, foi, mais uma vez, palco de uma inesperada tragédia de repercussão internacional. Desta vez, a vítima foi um emblema da História da França e um tesouro da arquitetura gótica.
Os parisienses levaram algum tempo, mas conseguiram, não sem muito esforço, se recuperar dos mortíferos atentados de 2015 e da permanente tensão provocada pela constante ameaça terrorista. Mais recentemente, a cidade se tornou cenário de consecutivos sábados de violência e de vandalismo, protagonizados por black blocs e manifestantes mais aguerridos no combate iniciado pelos chamados “coletes amarelos” por mais justiça fiscal e social, em verdadeiras cenas de batalha urbana e confrontos com as forças de segurança.
Minutos antes de o presidente francês, Emmanuel Macron, anunciar medidas que visavam responder às reivindicações da população por maior poder de compra e tentar apaziguar os protestos em Paris e pelo país, densas nuvens de fumaça provocadas pelo voraz incêndio na catedral prefiguraram o anoitecer. O pronunciamento televisivo do chefe da nação foi cancelado, e a cidade mergulhou, estarrecida, em mais um acontecimento sombrio.
Mas entre o espanto e a solidariedade, enquanto choram por sua obra-prima em cinzas, os franceses não perderam tempo em lançar uma vasta campanha de reconstrução do eterno monumento. A cada 00catástrofe, a cidade sofre, mas parece reforçar sua resiliência.