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Mariame Tighanimime conta como levou APENAS CINCO minutos para colocar o véu islâmico e CINCO anos para retirÁ-LO

Mariame Tighanimine é doutoranda em sociologia no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po). ©Patrice Normand

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Aos 10 anos de idade, Mariame Thiganimine, francesa de família muçulmana originária do Marrocos, passou a portar diariamente o véu islâmico, o hijab. Dezoito anos depois, aos 28, retirou-o definitivamente. Hoje, aos 33, lançou um livro-testemunho no qual conta como levou “cinco minutos” para colocar o véu e “cinco anos” para se desfazer da peça de tecido que se tornou motivo de inúmeras polêmicas nas sociedades modernas. Em “Dévoilons-nous” (Desvelemo-nos, ed. l’Olivier), Mariame narra sua experiência íntima, dirigindo-se tanto a defensores como a críticos do véu, condenando a forma como a questão é tratada pelos poderes públicos, políticos e parte da sociedade. Liberta do hijab, não se livrou de toda forma opressão: se diz hoje vítima de racismo e sexismo. 

Atualmente doutoranda em sociologia no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), instituição que integrou então com os cabelos ainda encobertos, Mariame relata ter adotado o véu pela primeira vez, ainda na infância, por “mimetismo” e não por “convicção”, como chegou a acreditar no passado. Educada na fé islâmica, em uma família praticante, ela herdou o hijab como uma tradição religiosa passada a cada geração.

Em 2007, ainda velada, criou o blog Hijab and the City, em que assumia o véu “sem orgulho nem vergonha”, rejeitava estigmas e procurava abrir um canal para as mulheres muçulmanas exporem seus problemas. Em 2017, já desvelada, lançou o livro de crônicas “Différente comme tout le monde” (Diferente como todo mundo, ed. Le Passeur), defendendo a emancipação pela superação dos estereótipos. Nessa época, passou a receber depoimentos de muçulmanas interessadas em seu abandono do véu de forma serena a pacífica.

– Demorei para perceber que não estava sozinha. Falar sobre retirar o véu também é importante agora, à medida que os indivíduos e as sociedades mudam. Em todo o mundo, mesmo dentro das teocracias, os muçulmanos estão se secularizando. Mais e mais mulheres estão abandonando o hijab. Algumas são conhecidas, como a ensaísta e feminista Asma Lamrabet no Marrocos, a blogueira Dina Tokio no Reino Unido ou a cantora Mennel na França. Vemos mais e mais instagrammers e tiktokers com grandes comunidades removendo o véu. E a cada vez essas mulheres são insultadas, especialmente por homens, ou por mulheres que nunca usaram o véu por um minuto sequer em suas vidas.

Mariame Tighanimine relatou em livro sua experiência pessoal com o véu islâmico, o hijab.

Para Mariame, o hijab se assemelha a um meme na Internet: a memética permite o estudo de mitos, práticas e ideias presentes em diferentes culturas, pois se propagam, diz, citando a alegoria do dilúvio ou a prática da mumificação, encontrada tanto na América Latina quanto na África.

– Memes são elementos culturais que se disseminam por meio da imitação. Este é o caso do véu. Não é exclusivo dos muçulmanos. É até anterior ao Islã. Pode ser encontrado entre os gregos, os bizantinos, os persas. Ele percorreu o mundo até chegar à Península Arábica, berço do Islã. Como um meme na Internet, o véu viajou, foi retomado, disseminado, politizado, despolitizado, modificado, adaptado, a ponto de esquecer suas origens, suas interpretações e pesos simbólicos, políticos e morais.

Sete versículos

A palavra “hijab” é citada em sete versículos do Alcorão, aponta ela, e em nenhum momento significa “véu”, mas “muro”, “obstáculo” ou “barreira”. Na sua opinião, o hijab subsiste até hoje porque se tornou um meme recuperado no século XX pelos grupos islamistas dirigidos pela Irmandade Muçulmana (fundada em 1928 no Egito), e utilizado como ferramenta política de islamização das sociedades: as mulheres veladas serviriam como uma medida do islamismo das comunidades.

Durante o período em que portou o véu na França, Mariame afirma ter sofrido violências e humilhações, impedida de acesso a “locais de conhecimento e lazer” e agredida por “estar cobrindo o cabelo”. Ela assegura nunca ter assumido uma atitude de proselitismo para tentar converter alguém a sua religião. “Era uma praticante no meu canto”, garante.

– Não entendia ser atacada fisicamente ou verbalmente porque estava cobrindo meu cabelo. Duas categorias de grupos me agrediam, seja na rua, na escola ou na sala de espera de um médico. O primeiro era formado por quem desejava sinceramente me libertar da alienação religiosa. O segundo, de pessoas que se escondiam atrás da crítica à religião e da defesa do secularismo para expressar seu racismo. Os dois têm maneiras comuns de fazer as coisas que só embruteceram e ofenderam a criança, depois a adolescente e por último a jovem que fui. 

Mariame levou cinco anos para retirar o véu “intelectualmente” e cinco minutos para removê-lo “fisicamente”. Ao longo do tempo, abandonou a religião e se tornou agnóstica ao “exercitar” seu espírito crítico e “compreender o valor da ciência e dos fatos” e os perigos das “religiões, mitos e quimeras”. Hoje, se diz feliz por contar com “cientistas que desenvolvem vacinas”, em vez de acreditar em “clérigos profissionais que nada mais têm a oferecer que invocações e perigosos remédios caseiros”.

O impulso decisivo para se separar do símbolo religioso ocorreu após uma viagem de um mês nos Estados Unidos, um país estrangeiro onde ninguém a conhecia. Retirar o véu foi, para ela, apenas um gesto final para marcar o fim de seu processo rumo à descrença religiosa.

Com os cabelos a descoberto, sentiu-se, pela primeira vez, livre dos onipresentes olhares exteriores, um sentimento que alega “não ter preço”:

– Nos anos em que usei o hijab quando adulta, houve muitas notícias sobre o Islã, o véu, o terrorismo. Todos esses assuntos foram misturados e instrumentalizados na política e na mídia. Os olhares e reflexões que me dirigiam tinham uma ligação com temas atuais relacionados ao Islã, na França ou no mundo. Os olhares eram, portanto, pronunciados. É por isso que realmente apreciei não os sentir mais em mim.

Na parte prática, passou a ter de cuidar de seu cabelo, o que, ressalta ela, se aprende na adolescência, época em que ainda usava o véu. Resolveu, então, raspar a cabeça.

– Descobri que o cabelo muito curto ficava bem em mim. Também foi muito conveniente, porque tinha começado o jiu-jitsu brasileiro e treinava quase todos os dias.

O hijab se tornou motivo de inúmeras polêmicas nas sociedades modernas . ©Sipa

Vestígios do patriarcado

Ainda com o hijab, Mariame havia iniciado a prática de boxe e a natação. O esporte ajudou a desenvolver uma outra relação com seu corpo, algo que afirma lhe ter sido negado como mulher muçulmana. Ao se desfazer do véu, se viu confrontada ao sexismo, sem se livrar do racismo.

– Quando parei de usar o hijab, o olhar dos homens mudou. Não era mais um “véu sobre pernas”, mas uma mulher como as outras. Foi quando o sexismo me pegou. Os esportes de combate, principalmente o jiu-jitsu, têm me ajudado, pois me armam para enfrentar isso de forma verbal ou física. Mesmo sem o véu, ainda sou uma mulher, de origem imigrante e, para alguns dos meus concidadãos isso é um problema. A sociologia documenta muito bem as diferentes discriminações sofridas pelos imigrantes magrebinos e africanos como um todo.

As leis de 2004, sobre a interdição de “sinais religiosos ostentatórios” nos colégios secundários, e de 2021, “contra os separatismos” – para conter o islamismo político no país –, são vistas com desconfiança por Mariame. 

– A seguinte distinção deve ser feita como pré-requisito para qualquer discussão: o objeto véu de um lado, as mulheres que o usam do outro. Estamos em um momento em que a complexidade do mundo exige que cada um de nós mostre flexibilidade mental diante da novidade. Estamos no meio de uma pandemia, o antivacinismo está causando estragos, há novos dados sobre a emergência climática. Todos esses elementos implicam no abandono de nossas certezas para o nosso bem e dos outros. É realmente urgente que cada um de nós faça pacificamente este exercício para nos emanciparmos, avançarmos e nos tornarmos mais racionais e livres – defende.

Mariame reivindica seu livro como um manifesto antirracista e feminista. Mas um feminismo laico e universalista. Ela denuncia grupos e partidos políticos na França portadores de discursos racistas e ultraconservadores que instrumentalizam a laicidade e o universalismo e desprezam pobres, mulheres, minorias étnicas ou sexuais. Por isso, julga importante abordar questões polêmicas como o véu de maneira “honesta e factual”.

– Não tenho problema em dizer que não uso mais o véu, que considero o vestígio de um passado onde o patriarcado era a norma em todo o mundo. Penso que as crianças e as jovens deveriam ser impedidas de usá-lo, e ao mesmo tempo sou contra o fato de querer proibi-lo a mulheres adultas que dizem adotá-lo por opção. Todos os temas que afetam os humanos e as sociedades são complexos e requerem tempo e nuance.

Também está em seu radar uma maior visibilidade e normalização em parte da sociedade francesde discursos da extrema direita sobre a imigração, os muçulmanos, o Islã e as mulheres, os quais, lamenta, “não são novos na França”:

– Estão só mais visíveis, porque a Internet e especialmente as redes sociais lhes dão uma caixa de ressonância incrível. Além disso, muitos outros países na Europa e em todo o mundo estão vendo partidos conservadores ou de extrema direita chegando ao poder ou às portas do poder, o que é um perigo para as democracias, mulheres, minorias e pobres. Mas penso que não devemos entrar em pânico, e sim ter a cabeça fria para enfrentar as forças que podem desestabilizar nossas democracias. E isso requer um bom diagnóstico.

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