FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – Eugène Delacroix (1798-1863), um ilustre desconhecido? Essa é a questão que permeia a grande retrospectiva do célebre pintor francês em cartaz no Museu do Louvre, em Paris. Ao reunirem mais de 180 obras do artista em um mesmo espaço, os curadores pretendem revelar facetas menos perceptíveis do autor de “A liberdade guiando o povo”, a mais icônica de suas criações, inspirada na revolução parisiense de 1830 e simbolizada por uma mulher de seios nus empunhando a bandeira francesa em meio a uma cena de barricada.
Para Sébastien Allard, um dos curadores da exposição, faltava para a atual geração esta visão global do artista em quatro décadas de carreira, desde seu começo em 1822, no Salão parisiense (exposição bienal dedicada a artistas contemporâneos), até sua morte, em 1863.
– Delacroix é muito conhecido e, ao mesmo tempo, desconhecido. Ele pintou mais de 800 obras, fez milhares de desenhos, escreveu milhares de páginas. Construiu uma obra extremamente importante, de uma grande diversidade. É a razão pela qual reunimos na primeira sala da mostra as grandes telas mais conhecidas, suas obras-primas de juventude. Depois que o visitante já viu a “A liberdade guiando o povo”, tem o espírito livre para descobrir outras coisas. Esta visita é uma descoberta e uma releitura de Delacroix – define.
Além de “A liberdade…”, a exposição inicia com os emblemáticos quadros “Massacre de Quios”, “A barca de Dante” ou “A batalha de Nancy”, obras de grande formato e conhecidas do repertório do autor. Já um de seus mais famosos quadros, “A morte de Sardanapalo”, que provocou escândalo no Salão de 1828 – por sua violência, erotismo e “violação das regras da arte”, segundo um jornal da época -, não foi deslocado para o espaço da exposição por causa de suas enormes dimensões (3,92m x 4,96m), mas pode ser apreciado em sua localização original no Louvre, no primeiro andar da ala Denon. O mesmo, aliás, ocorrerá na grande exposição consagrada pelo museu, em 2019, a Leonardo Da Vinci: a Mona Lisa não mudará de lugar.
Passada a primeira sala, Delacroix é exposto em toda sua multiplicidade menos familiar, com suas coloridas telas de buquês de flores neobarrocas, bucólicas paisagens, litografias inspiradas em escritos de Dante e de Shakespeare, obras originadas de sua viagem ao Marrocos ou as sombrias pinturas religiosas de seus últimos anos.
Órfão e caçula de uma família arruinada aos 17 anos, famoso aos 25 anos, considerado como referência do Romantismo (e depois admirado por Cézanne e Picasso), o pintor insistirá em experimentações artísticas até morrer de tuberculose, aos 65 anos. Côme Fabre, o outro curador da retrospectiva, ao realizar o trabalho se disse surpreendido pela infinita “curiosidade” de Delacroix.
– Não tinha consciência de que as telas de temática de flores, por exemplo, eram tão importantes para ele. Nem que sua pintura religiosa era levada tão a sério. Pensava que ele fazia isso para rivalizar com Rubens e Caravaggio, mas há uma real emoção que transborda destes quadros. O mais surpreendente são as obras do período final, com temas pouco conhecidos, inspirados de romances de capa e espada da Idade Média e da Renascença, com cavaleiros, castelos, fadas, príncipes. É um universo quase infantil, em florestas mágicas ou mares azul turquesa. Delacroix não é apenas sangue, a revolução, a ferocidade, o realismo, há também toda esta parte encantada.
Fabre salienta ainda a relação privilegiada que o pintor tinha com o modelo de atelier, principalmente o feminino.
– Era uma apreensão artística bastante erótica e sensual. Aliás, quem conhece seus diários da juventude sabe que Delacroix tinha relações sexuais com suas modelos. Mas sua apropriação do corpo, da carne, da pele, está na raiz da reforma fundamental que promoverá na história da pintura de seu tempo.
A mostra contempla também o Delacroix escritor, na exposição e transcrição de trechos de seus diários, correspondência, críticas e ensaios. A escrita é elemento permanente de seus dias e complementar de sua arte. Delacroix publica artigos atacando críticos de arte, troca cartas com seus amigos escritores Charles Baudelaire ou Georges Sand, e filosofa em seus diários sobre o íntimo ou a relatividade do belo na pintura, em notas embrionárias de seu nunca concluído “Dicionário de belas artes”. A primeira página de seu diário foi inaugurada em 3 de setembro de 1822, data de aniversário da morte de sua mãe: “Coloco em execução o projeto tantas vezes elaborado de escrever um diário. O que desejo mais vivamente é não perder de vista que o escrevo somente para mim; serei, portanto, verdadeiro. E me tornarei melhor”.
A mostra permanecerá em exposição no Louvre até 23 de julho, e depois seguirá para o Metropolitan Museum of Art de Nova York.
OBRAS DO MASP FICARAM DE FORA
Para montar a exposição Delacroix, o Louvre contou com obras de seu próprio acervo e com empréstimos de outros museus franceses e também estrangeiros. Do exterior, vieram obras dos Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Holanda, Bélgica, Suíça, Hungria, Canadá ou México. As últimas quatro obras pintadas pelo artista, no entanto, estão ausentes da grande retrospectiva. As telas “O outono – Baco e Ariadne”, “O inverno – Juno implora a Eolo a destruição da frota de Enéas”, “A primavera – Eurídice colhendo flores é mordida por uma cobra (A morte de Eurídice)” e “O verão – Diana surpreendida por Acteão”, pintadas entre 1856 e 1863, pertencem desde 1952 ao Museu de Arte de São Paulo (Masp), e não viajaram até Paris.
– Não as trouxemos por questões de custo – explica o curador Sébastien Allard. – E também porque são obras enormes, e temos um espaço limitado na exposição.
O Masp nem chegou a ser consultado pelo Louvre, mas, se fosse o caso, não veria problema em fazer o empréstimo.
O também curador Côme Fabre acrescenta outro motivo ao impedimento:
– Elas medem quase dois metros de altura, e colocá-las no avião desde São Paulo até Paris seria um tanto perigoso para as próprias obras. Mas pensamos realmente em trazê-las, pois são telas que perseguiram Delacroix por muito tempo, e ainda estavam em seu atelier quando morreu.
Os quadros, de 197,5cm x 166cm de dimensão, foram uma encomenda do rico industrial e colecionador de arte Frédéric Hartmann (1822-1880) sobre o tema das quatro estações, e permaneceram inacabados por Delacroix.
Para Allard, o tema é apenas um pretexto para a pintura:
– Vemos nestas telas suas formas coloridas, que não estão totalmente finalizadas. Delacroix está mais velho e cansado, mas há uma forma de essência da pintura nestes quadros. O tema passa em segundo plano em relação à pintura. Ele alcança algo essencial, e um certo tipo de abstração, um pouco como o último Picasso.