FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – O Museu do Louvre acolherá nesta segunda-feira uma cerimônia rara: a restituição de um quadro certificado como espoliado pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. O tríptico “A Crucificação”, atribuído ao pintor renascentista flamengo Joachim Patinir (1480-1524), será entregue pelas mãos da ministra da Cultura francesa, Françoise Nyssen, aos descendentes de Henry e Hertha Bromberg.
Em 1938, perseguido pelo regime nazista, o casal de judeus alemães se instalou em Paris. No ano seguinte, viu-se obrigado a se separar da tela para financiar sua viagem de exílio nos Estados Unidos com os quatro filhos. O novo proprietário revendeu o quadro a um emissário nazista encarregado de constituir acervo para o gigantesco museu que Hitler ambicionava construir em Linz, sua cidade natal, na Áustria.
Após a guerra, em 1950, considerada como arte espoliada, “A Crucificação” foi destinada ao Museu do Louvre. Classificada como MNR (na tradução, Museus Nacionais Recuperação), sigla conferida às obras pilhadas pelos nazistas à espera de restituição, a tela estava até então sob a guarda do museu Crozatier, em Puy-en-Velay, sudeste da França.
Resgate ainda que tardio
O evento terá um significado especial, pois será seguido de uma visita às duas salas do Louvre dedicadas exclusivamente a obras MNR, inauguradas em dezembro. Ao lado da galeria Rubens, uma das mais frequentadas do museu, o espaço, com 31 quadros, foi criado como forma de atrair a atenção do público para a questão das obras confiscadas pelos nazistas, explica Sébastien Allard, diretor do departamento de Pinturas do Louvre.
— A ideia com estas salas visa à difusão da informação e à sensibilização do público — conta. — Aqui, o visitante recebe também a indicação, por meio de um painel na entrada, do site Rose-Valland (base de dados das mais de duas mil obras MNR sob custódia dos museus franceses). E há um aspecto também memorial sobre o que se passou na Segunda Guerra em relação à espoliação.
Nas galerias do museu, há obras MNR de Eugène Delacroix, Théodore Géricault e François Boucher. Nas duas salas recentemente inauguradas, estão expostas telas como “La Source du Lison”, de Théodore Rousseau, “Portraits des demoiselles Duval”, de Jacques-Augustin Pajou, e “Portrait de l’artiste en cuirasse coiffé d’un béret à plume”, de Pieter Potter.
— Temos vários quadros aqui nestas salas que foram confiscados ou comprados por Ribbentrop, ministro das Relações Exteriores da Alemanha nazista, como este Pajou — aponta Vincent Delieuvin, conservador do Louvre. — É um pouco assustador para nós, amantes da arte, pensar que por trás destas obras existe este terrível personagem. Mas, hoje, isso faz parte da história destes quadros.
Para a historiadora especializada na espoliação de arte pelos nazistas e ex-senadora ecologista Corinne Bouchoux, a iniciativa do Louvre é bem-vinda, embora tardia.
— É tarde, é verdade, mas tendo em vista a lentidão que houve na França, é importante que se fale disso — afirma. — Por muito tempo, talvez por má consciência em relação ao governo de Vichy e a forma como policiais franceses ajudaram na deportação de judeus, por falta de vontade dos museus e por negligência, pouco se fez na França em relação às restituições. Mas, hoje, se avança nesta questão, e vejo um maior interesse dos jovens e do grande público pelo tema. O obstáculo é mais prático, financeiro, do que político.
Como parlamentar, Bouchoux fez várias proposições para impulsionar o trabalho de pesquisa para descobrir as famílias judias a quem pertenciam os quadros. Seu sonho é que cada museu com obras MNR organize uma exposição, e que conservadores e genealogistas, auxiliados por estudantes voluntários, dediquem-se a procurar as origens familiares por trás de cada obra
Período de ambivalência
Para Jean-Jacques Neuer, advogado internacional especializado em questões de arte, a exposição no Louvre não vai, obviamente, reparar o crime contra a Humanidade cometido pelos nazistas, mas revela a disposição do governo e das instituições em promover uma atitude proativa para a restituição das obras.
— Nem sempre foi o caso — ressalta Neuer. — Houve um período de ambivalência. Para os conservadores, restituir uma obra exposta nas paredes de seu museu é algo sempre doloroso. Nem sempre mostraram uma real vontade de fazê-lo. Mas isso é passado. Hoje, penso que o governo francês procura ativamente restituir estas obras.
Na parede da memória
Além das 31 telas expostas no espaço exclusivo para obras espoliadas durante a ocupação nazista, o Louvre apresenta 76 outros destes quadros em suas salas permanentes. Entre 1940 e 1945, cerca de cem mil bens, incluindo numerosas obras de arte, foram pilhados pelos nazistas ou vendidos sob coerção e transferidos para a Alemanha.
A criação da Comissão de Recuperação Artística, em 1944, possibilitou o retorno para a França de mais de 61 mil objetos, dos quais 45 mil foram restituídos a seus antigos proprietários ou descendentes. Cerca de 13 mil bens não reclamados foram vendidos em leilões, e outros 2.143 registrados em inventários especiais. O Louvre abriga 1.752 obras de arte espoliadas, sendo 807 correspondentes a pinturas. Apenas 296 delas são conservadas no local. As demais foram distribuídas em outros museus do país.
Hoje, um grupo de trabalho, formado pelo Ministério da Cultura em conjunto com a Comissão de Indenização das Vítimas da Espoliação, está encarregado de rastrear a origem das obras e identificar seus proprietários no momento da espoliação, para poder restituí-las aos respectivos herdeiros.
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