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Biografia define os paradoxos de Lutero, pai da Reforma Protestante

Lutero retratado por Lucas Cranach, em 1529.

FERNANDO EICHENBERG / FOLHA DE SÃO PAULO

PARIS – Católicos e evangélicos lembram neste ano o quinto centenário do começo da Reforma Protestante, movimento que dividiu o cristianismo ocidental e provocou guerras civis na Europa a partir do século 16. Em 31 de outubro de 1517, o teólogo Martinho Lutero (1483-1586) pregou na porta principal da igreja e da Universidade de Wittenberg, no nordeste da Alemanha, suas célebres “95 Teses”, texto deflagrador do cisma cujas consequências se estendem até o presente. Naquele compêndio, Lutero contestava práticas da Igreja Católica de Roma, sobretudo o comércio de indulgências (perdão de pecados) —estimulado à época para financiar a construção da basílica de São Pedro—, e afirmava a crença de que a salvação era obtida exclusivamente pela graça de Deus (por meio da fé em Cristo), sem necessidade de mediação da igreja. Terminaria excomungado pelo papa Leão 10º e banido pelo imperador Carlos 5º, em 1521.

Entre os principais lançamentos em torno da efeméride da Reforma Protestante está “Luther” [Fayard, 25 euros], biografia de quase 700 páginas escrita por Matthieu Arnold, professor de história do cristianismo da Universidade de Estrasburgo. Ele pesquisa a trajetória do “papa de Wittenberg” há 30 anos e é coeditor de suas obras na reputada coleção Pléiade.

No livro, Arnold delineia as nuances do personagem, acusado por detratores de ser antijudeu e de se portar como capacho da nobreza, mas considerado por outros um homem e um teólogo moderno, bem mais complexo do que a imagem unidimensional de rígido opositor do papado que lhe foi colada.

Folha – O que sr. descobriu sobre o homem e o teólogo nestes anos mergulhado na vida de Lutero?

Matthieu Arnold – Para mim, Lutero é um homem de contrastes. É alguém que consegue confortar as pessoas ao proclamar a mensagem do Evangelho com as tonalidades mais suaves e calorosas, ao mesmo tempo em que, ao perceber ameaças a essa mensagem, pode defendê-la da forma mais polêmica que seja. É um paradoxo que permanece até o final de sua vida.

No segundo aspecto, a violência de sua linguagem lhe valeu o epíteto de Rabelais alemão, numa referência aos excessos do escritor francês François Rabelais (1494-1553).

É algo redutor. Para mim, “Rabelais alemão” quer dizer, sobretudo, alguém que usa da ironia, da grosseria e da sátira. Mas a obra de Lutero não pode ser comparada à de Rabelais neste sentido. É uma obra propriamente religiosa, “Rabelais alemão” rende justiça apenas a uma parte da obra de Lutero.

O sr. insiste que Lutero deseja antes de tudo corrigir erros da igreja oficial, e não provocar a ruptura.

Em relação às indulgências, seu primeiro combate se refere à penitência. E é nisso que a pregação de [Johann] Tetzel [monge dominicano alemão conhecido pelo comércio de indulgências] é escandalosa. Infelizmente, a igreja rejeitou um debate profundo com Lutero. A discussão foi logo deslocada para a questão da autoridade e do poder da igreja. Disseram a ele: “Se você condena as indulgências, condena o papa. E quem é você para condená-lo? Você é um simples monge, e o papa não se engana”. É uma pena que a igreja, por questões teológicas e também, sem dúvida, financeiras, não tenha ouvido Lutero. Ele foi levado em conta depois, mas já era tarde.

Lutero é criticado por agir de forma autoritária em relação aos adversários e por ter buscado o apoio da autoridade política dos príncipes.

Os políticos desejavam, já no fim da Idade Média, ocupar-se mais das questões da igreja, pois achavam que não eram tratadas de forma correta pelo clero. É verdade que Lutero, em 1520, com seu apelo à nobreza, conclamou-os a assumir as rédeas. Por outro lado, sempre distinguiu o que tem a ver com a política daquilo que se relaciona com a pregação. O poder político assegura a paz e também está a serviço de Deus, e a esfera religiosa anuncia o Evangelho.

O senhor acha correto apontar Lutero como precursor do iluminismo ou da modernidade? 

Desconfio um pouco quando dizem isso, porque os iluministas não colocavam Deus no centro. Mas é verdade que Lutero inicia uma abordagem crítica, argumenta a partir da Bíblia, diferenciando o contexto de diferentes épocas. Ele dava grande importância à razão, mas só em relação ao que não diz respeito à salvação. Do ponto de vista terrestre, a razão é o maior bem. No domínio da fé, diz que as coisas têm a ver com o mistério. Ele procurava ter um discurso razoável na interpretação da Bíblia, mas preservava sempre uma parte de mistério.

Em que medida se pode dizer que ele antecipou a laicidade?

O problema é que há muitas definições de laicidade. Hoje, na França, diz-se que é a exclusão da religião da esfera pública. Evidentemente, nesse caso, Lutero não é precursor, bem pelo contrário. Isso não seria possível em sua época. Mas pode-se argumentar que o tenha sido ao dizer, em 1520, que os poderes temporais não podem mais ser submetidos ao papado, como era o caso na Idade Média. Desse ponto de vista, ele insiste numa autonomia do político, distingue claramente as competências das duas esferas, pública e religiosa, mas sem reduzir o religioso à intimidade do indivíduo.

O sr. se detém sobre a defesa que Lutero faz da instrução para mulheres.

Matthieu Arnold © Claude Truong-Ngoc

Nesse ponto ele se distingue, inclusive dos humanistas. Na maioria dos tratados humanistas, a instrução se refere apenas aos meninos, e Lutero assinala também a educação para as meninas. Em seu tratado de 1524 sobre a abertura de escolas, se veem ilustrações de classes de meninos e de meninas. Ele valoriza a instrução feminina. E chega até a dizer que, na ausência de homens competentes, uma mulher pode pregar publicamente, o que já era muito para a época.

Apesar de ter enfrentado a oposição de Estados centralizados, onde fracassou, o protestantismo conseguiu se impor em outras áreas. Como isso se deu?

Até hoje, a influência maior de Lutero é na Alemanha. Mas ele contribuiu para mudar a face da Europa no plano político. Os historiadores por vezes dizem que os teólogos superestimam a influência de Lutero, argumentando que os movimentos de emancipação de príncipes teriam se produzido sem ele. Eles têm razão em dizer que não há só teologia. Mas sem Lutero não teria havido essa divisão religiosa, com a reorganização da Europa.

Os escritos de Lutero sobre os judeus são polêmicos. Em 1523, ele publica “Jesus Nasceu Judeu”, em que adota certa distância em relação ao antijudaísmo da época. Mas, em 1543, “Dos Judeus e de Suas Mentiras” exorta ao ódio e mesmo à queima de sinagogas.

Diria que seu texto de 1523 é quase excepcional para a época, ao defender a convivência com os judeus. Já em 1543, Lutero vai pedir exatamente o contrário, ou seja, a segregação, até mesmo a expulsão. Pede que sejam destruídos os locais onde praticam seus cultos. Não há nenhuma explicação satisfatória para essa reviravolta. Lutero muda. Em 1523, ainda acredita no poder da palavra, no Evangelho. Espera que alguns judeus se convertam ao cristianismo. A primeira explicação clássica é sua decepção com a não ocorrência da conversão. Mas isso não basta. A única coisa que digo é que é preciso ler os escritos de 1543 ao lado de seus outros textos daquele momento, contra seus adversários, contra o papa, que são até mais violentos, pois ele pensa que o fim do mundo está próximo.

Como o sr. analisa a apropriação do discurso antijudeu luterano pelo nazismo e ainda nos dias atuais?

Não emprego o termo antissemita para Lutero, pois tem uma conotação racial. Não se trata de desculpar Lutero, mas de ser preciso na terminologia. Ele não prega um antissemitismo racial ou racista, como foi o caso nazista. Permanece na esfera do antijudaísmo cristão, mesmo que se expresse de forma extremamente violenta. Os nazistas não eram forçosamente crentes, tinham uma fé um pouco pagã, e não precisavam de Lutero para defender suas abomináveis medidas. Mas havia pastores que estimavam que a religião deveria se aliar ao nazismo, e foram eles, mais do que os nazistas, que avaliaram que se deveria reeditar os escritos de Lutero.

Lutero era assombrado pela noção de diabo, chegando a ver nas manobras de seus adversários obra de Satã.

As noções de diabo e do dualismo de forças existem nos escritos fundamentais do cristianismo. Ainda hoje os evangélicos dizem que o diabo existe, não é só um símbolo. Lutero, como seus contemporâneos, insiste bastante na ideia de diabo. O problema é ele encarar seus adversários como instrumentos de Satã. Quando os diaboliza, tira-lhes a humanidade e defende medidas ainda mais duras contra eles. Por outro lado, penso que hoje não se reconhece mais o mal. Quando o Estado Islâmico ou outra organização comete um atentado, as pessoas dizem que é obra de desequilibrados. Para mim, trata-se de uma forma de negar o mal. A força de Lutero está em reconhecer que existe o mal. E a fraqueza, em dizer “nós somos instrumentos de Deus, e os outros, de Satã”.

O que mudou para que católicos e protestantes celebrem em conjunto os 500 anos da Reforma?

Há uma comemoração comum, mas, evidentemente, as ênfases são um pouco diferentes. Os católicos não se alegram forçosamente pela divisão. Os protestantes também não, mas sim pela contribuição dada por Lutero ao cristianismo. Os católicos têm hoje, mais do que antes, tendência em dizer que Lutero era também um homem de fé. Certamente houve excessos, sua mensagem teve consequências que ele próprio não desejava, mas hoje católicos e protestantes estão mais próximos do que antes.

O que provocou essa aproximação?

Há um progresso do diálogo ecumênico. Em 1999, assinou-se a declaração comum sobre a justificação pela fé, que já mostrava que, no fundo, os dois lados concordavam. Esse diálogo ecumênico avança em paralelo ao progresso nas pesquisas sobre Lutero.

A percepção de Lutero hoje mudou?

Penso que a percepção hoje sobre ele é mais nuançada, como procurei demonstrar na minha biografia. Os protestantes não vão mais dizer que é o seu herói sem medo, sem defeitos e sem reprovações. Os católicos não o consideram mais como um herético e conseguem enxergar suas intuições teológicas fundamentais, o lugar que acorda ao Cristo.  Ao mesmo tempo, há sensibilidade a seus excessos. Há declarações do protestantismo sobre a visão de Lutero acerca dos judeus.

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