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15 PERGUNTAS PARA O MÉDICO FRANCÊS PHILIPPE JUVIN, QUE REGISTROU ENFRENTAMENTO À PANDEMIA EM DIÁRIO

©Thomas Samson/AFP

FERNANDO EICHENBERG/ REVISTA ÉPOCA

PARIS – Entre janeiro e maio de 2020, o médico francês Philippe Juvin, diretor do serviço de emergência do Hospital Europeu Georges Pompidou, em Paris, manteve um diário sobre a pandemia, recém-lançado lançado em livro: “Je ne tromperai jamais leur confiacce” (Jamais trairei sua confiança, em tradiução livre), pela editora Gallimard. O livro traz suas preocupações e reflexões cotidianas como médico e homem público durante a crise, incluindo suas mensagens via Telegram com o presidente Emmanuel Macron (que hoje já não lhe responde mais). Há mais de 30 anos trabalhando na medicina de emergência, ex-deputado europeu e atual prefeito de La Garenne-Colombes (nos arredores de Paris), Juvin conversou com ÉPOCA em seu gabinete no conceituado hospital parisiense.

A vida poderá voltar ao normal no curto prazo?

Se todo mundo se vacinar, poderemos voltar a viver normalmente. Será preciso se vacinar novamente quando a imunidade não será mais eficaz. Se não nos vacinarmos, não solucionaremos isso sozinhos. A menos que surjam medicamentos eficazes, o que hoje não temos. Idealmente, devemos vacinar o mais rápido possível, e continuar a desenvolver medicamentos para tratar aqueles que têm a doença.

As vacinas são eficazes?

Na França, temos por enquanto a vacina da Pfizer/BioNTech, com eficácia comprovada de 95%. Ainda não se sabe ao certo quanto tempo dura a imunidade. E, evidentemente, os efeitos colaterais após os dois ou dez anos não são conhecidos. Mas os virologistas consideram que os efeitos graves começam a aparecer após quatro meses, e já temos mais de cinco meses passados em certos pacientes.

As mutações do vírus recentemente descobertas no Reino Unido, no Brasil ou na África do Sul preocupam?

Certamente. Em Londres, no fim de setembro, 22% do coronavírus em circulação correspondiam à variante. Em dezembro, o índice subiu para 66%. Na Irlanda foi ainda pior. Há uma multiplicação muito rápida, e uma mutação da proteína spike (que permite a entrada do vírus nas células humanas). Hoje, as vacinas continuam a reconhecer a proteína, apesar das mutações. O temor é que se deixarmos o vírus se multiplicar sozinho, sem o muro da vacina, em algum momento haverá uma modificação da proteína spike de forma que não será mais reconhecida pela vacina. Há uma obrigação de vacinar muito rapidamente para conter este fenômeno.

Como médico, qual sua opinião sobre os chamados tratamentos precoces, como a hidroxicloroquina e a ivermectina?

O verbo crer é raiz latina de credo: eu confio. Eu olho os fatos. Na há ensaios terapêuticos que me provem que estes medicamentos sejam eficazes. O que se sabe é que se deve dar corticoides nas formas graves, o que diminui o número de pacientes que passam para a UTI. É preciso prescrever anticoagulantes, porque há tromboses e embolias pulmonares que matam os pacientes. É preciso vacinar, porque é eficaz. E há um certo número de estudos em curso, à espera de confirmação, que testam anticorpos ou soros humanos e que estariam dando resultados positivos.

O senhor diz que esta crise mudou nossa relação com o mundo. De que forma?

Antes de tudo, lembrou a nós, médicos e enfermeiros, que somos mortais. Quando fazia meus estudos de medicina, havia uma placa no hospital com os nomes do médicos mortos de infecção, de difteria. Nos lembrou também que face às grandes dificuldades é preciso ser ágil, assumir decisões que fogem ao contexto habitual. E, além disso, liberdades tiveram de ser freadas e limitadas, e é muito importante que, a cada vez que forem restringidas, sejamos conscientes da gravidade do que fazemos. Uma liberdade amputada por vezes é difícil de ser reestabelecida em sua totalidade. Essas são, para mim, as três lições principais desta crise.

Para o senhor, o mundo não estava preparado para esta pandemia.

O mundo subestima os perigos. Há provavelmente uma relação direta entre a deflorestação, principalmente na América do Sul, e o fato de que animais que viviam distantes dos humanos estejam, hoje, em contato. Nos próximos anos, devemos prever novas transmissões de vírus de animais para nós. Devemos tirar também uma lição em relação ao meio ambiente nesta crise. Um grande artigo publicado na revista Science explica isso, a ponto que cientistas estimam entre 631 mil e 827 mil o número de vírus capazes de passar do animal ao homem se não atentarmos para a gestão do meio ambiente. Isso ainda não acabou.

O senhor acusa a inércia e falta de reação do Estado: “para situações de guerra é preciso uma logística de guerra”.

Em seu livro “A estranha derrota”, o pensador francês Marc Bloch explica como em 1940 o exército francês, considerado como um dos melhores, foi superado pelos alemães em quarenta dias. Uma das explicações de Bloch é que o Estado-Maior francês era de paz e não de guerra. Hoje é o mesmo, não estamos armados para esta guerra. Isso pôde ser visto nas questões das máscaras, dos testes, dos medicamentos, da vacinação, da organização geral das relações humanas, do tratamento reservado aos idosos. Trabalhamos sem margem de manobra. Não sabemos que o mundo é trágico.

Como o senhor vê as atitudes negacionistas dos governos Bolsonaro e Trump em relação à pandemia?

Eu os vejo como a caricatura do que denuncio no meu livro. Quando se diz que não há problema, e que todo mundo vê que há um problema, a palavra pública não pesa mais nada. E a partir deste momento é a porta aberta a tudo e a todas as loucuras. Os homens públicos têm um papel principal: a exemplaridade e a coesão do corpo social. Que as pessoas pensem de forma diferente, que gostem ou não de Bolsonaro e sejam contra ou a favor de sua política é normal. Por outro lado, no dia que o presidente ou o primeiro-ministro é pego em repetidos flagrantes de mentira, não há mais elo. O que está em jogo é a solidez do corpo social. Por isso que me preocupo com a situação no Brasil e nos Estados Unidos. A invasão no Capitólio americano é uma consequência do fato de que o país não tem mais coluna vertebral. E a coluna vertebral é fundamental. A rainha da Inglaterra se vacinou.

Umas das principais consequências desta crise, na sua opinião, foi provocar um dano duradouro na confiança da população em relação a dirigentes políticos.

Há uma relação direta entre a verdade, a confiança e a autoridade. Perguntaram ao prefeito de Seul como fez com que funcionassem os testes, as máscaras, o lockdown. Ele respondeu: a confiança. Se pode recuperá-la reconhecendo os erros e dizendo o que se vai fazer para não errar mais. É complicado dizer a verdade brutalmente, mas não impossível. Trump poderia tê-lo feito. Veja Boris Johnson (premier britânico). No início, era como Trump. Mas ficou doente do vírus, e reconheceu: “Eu errei, é preciso levar isso muito a sério”. Aqui na França, pelo menos não temos o negacionismo de Estado, o que é um ponto importante.

O aumento da desinformação, de fake news e teorias conspiratórias, ilustrado pelo sucesso do documentário francês “Hold-up”, preocupa?

O governo não cessa de dizer que tudo vai bem e que foi feito da melhor maneira, mas as pessoas veem que isso não corresponde à realidade. É isso que alimenta “Hold-up”. Para contrabalançar, é preciso dizer o contrário: a verdade. Se a verdade não é dita, as pessoas não sentem mais confiança, e vão acreditar no que mostra “Hold-up”. O exercício da verdade é uma virtude.

Como médico e como prefeito, o senhor lamenta a politização desta pandemia?

Isso foi uma catástrofe. A ciência não deve ser politizada. Não há uma verdade de direita e outra de esquerda na ciência. Há verdades científicas. É algo contra o qual luto.

O lockdown era a solução ser aplicada quando surgiu a pandemia?

Creio que era o que tinha de ser feito, porque não havia outra solução. Churchill dizia que democracia era o pior dos sistemas à exceção de todos os outros. O lockdown é o pior dos sistemas à exceção de todos os demais.

O toque de recolher aplicado na França, das 18h às 6h, é eficaz para conter a circulação do vírus?

Se verificou que o toque de recolher, provavelmente, melhora a situação. Dois estudos franceses foram feitos, mesmo que imperfeitos, mas parece que é algo eficaz. Quando vejo os ingleses e os alemães, me digo que seria extraordinário que não sejamos obrigados a reconfinar na França. O problema do confinamento é que se for feito de forma muito antecipada, mata a economia, e se for decidido demasiado tarde, deve ser estendido por mais tempo. É uma decisão complicada de se tomar.

Por que a campanha de vacinação atrasou na França?

Isso é menos compreensível, diferente de ser surpreendido com o surgimento da crise em março. Já se sabe há seis meses que as vacinas iriam chegar. O que ocorreu é um mistério para mim. O mesmo em relação às máscaras. Há dez anos, a França tinha quase dois bilhões de máscaras em estoque. E por razões que não são muito claras, o estoque desapareceu. O jogo teria sido muito diferente se tivéssemos no início dois bilhões de máscaras, porque a população poderia ter sido melhor protegida.

A União Europeia agiu corretamente nesta crise?

Houve do bom e do medíocre. O bom é que o Banco Central Europeu fez um esforço financeiro ao mutualizar as dívidas dos estados. A economia não afundou graças à União Europeia. Por outro lado, penso que na escala europeia poderíamos ter mutualizado bem mais coisas, como médicos, enfermeiros, leitos, respiradores, máscaras. Os estados foram muito egoístas no começo da crise.

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