FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – Não seria surpresa se, certa manhã, Vitor Dias Tarli despertasse de seus sonhos transformado em uma gigantesca barata, a exemplo do personagem Gregor Samsa na célebre obra “Metamorfose”, clássico da literatura de Franz Kafka. Vitor convive com baratas diariamente. Mais do que isso: estuda-as com paixão e afinco. O paranaense, de 29 anos, é um dos raros especialistas brasileiros em baratas, e atualmente desenvolve uma pesquisa de doutorado sobre o tema no Museu Nacional de História Natural, em Paris. A instituição francesa de pesquisa e de difusão da cultura científica naturalista, fundada em 1793, possui uma das maiores coleções de baratas do mundo.
Repulsivas para a grande maioria da população, as baratas são um verdadeiro objeto de adoração para o dedicado pesquisador. Quando debutou na faculdade de Biologia do Centro Universitário Filadélfia (UniFil), em Londrina (PR), antes de se tornar mestre em Entomologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA, em Manaus), Vitor queria ter uma barata como animal de estimação, mas seu insólito desejo não obteve a aprovação materna:
– Uma vez falei para minha mãe que ia criar uma barata, mas ela não deixou. “Quando você morar sozinho, pode fazer o que quiser, mas enquanto estiver aqui em casa, não!”, ela me disse. E daí não insisti – conta com naturalidade, assentado em sua sala de trabalho no museu parisiense.
Fanático por futebol, o pesquisador confessa, inclusive, que entre seu incondicional clube do coração, o Palmeiras, e as baratas, não há preferência, o placar está empatado. Sua atração pelos insetos começou na infância, a Biologia foi uma escolha acadêmica natural, e a especial relação com o impopular inseto da ordem Blattaria, surgida na juventude, se perpetua até hoje. Mesmo as baratas urbanas, a que causam nojo aos citadinos, adquirem outros contornos sob sua ótica, tratadas por nomes como Blattella germanica, Periplaneta americana, Supella longipalpa ou Pycnoscelus surinamensis.
– Com as baratas domésticas, tem a questão de higiene e saúde, elas vivem em locais sujos, podem transmitir doenças. Não tenho medo ou pavor delas, mas também nada a favor por causa disso. Mas em relação às baratas silvestres, de florestas, poderia ter uma delas como pet em casa sem problemas – assegura.
Antes de adentrar cientificamente no universo das baratas, Vitor pensava, “como a maioria das pessoas”, que existiam apenas quatro ou cinco espécies a transitar pelos lixos e esgotos das cidades. A realidade, no entanto, é bem mais ampla:
– Quando você começa a estudar, se dá conta de que há 5 mil espécies de baratas conhecidas no mundo, de um total estimado em cerca de 20 mil. No Brasil, são 720 espécies descritas, de um total avaliado em torno de 4 mil. É um dos países que mais tem tipos de baratas. Há esta enorme diversidade, e os diversos locais que ocupam, florestas, desertos. Isso é bem legal. A reação é sempre de surpresa quando digo que estudo baratas. Mas daí tento explicar o que pesquisamos.
Na literatura brasileira, a protagonista de “A paixão segundo G.H.”, de Clarice Lipector, mergulha em questionamentos existenciais ao se deparar com uma barata em sua casa. As preocupações do pesquisador, no entanto, são mas telúricas. Baratas silvestres têm um papel importante como polinizadoras, também são indicadoras da qualidade de florestas, e podem ser utilizadas ainda para estudos de mudanças climáticas.
– Quanto maior a diversidade de baratas encontradas em florestas, maior é a qualidade ambiental e a preservação da mata – observa.
Para desenvolver sua tese sobre a evolução e distribuição de baratas no Brasil, Vitor foi a campo durante um mês e meio coletar amostras no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
– A gente sai procurando mesmo, caminhando, e onde vê um tronco em início de decomposição pode encontrar baratas escondidas embaixo dele. E quando a casca começa a se soltar da árvore, elas também podem se infiltrar ali – explica ele, que já tinha experiência de coletas quando estudou no INPA.
Em seu trabalho na França, o pesquisador já revisou a descrição de três espécies de baratas e descreveu outras cinco novas, descobertas na Mata Atlântica, e que deverão ser oficializadas em breve na revista científica Zootaxa, especializada em taxonomia (ciência que lida com a identificação e classificação dos organismos).
No Museu Nacional de História Natural francês, que possui uma coleção de 60 mil baratas, Vitor tem como orientadora de tese a também brasileira Roseli Pellens, responsável pela dinamização das pesquisas em macroecologia na instituição. Nascida em Santa Catarina e formada em biologia e em ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com vários trabalhos sobre baratas no currículo, Pellens se mudou para a França em 2007, e hoje define protocolos de pesquisa para as equipes do museu, onde trabalha de forma permanente.
– A barata tem um papel de transportar e dispersar microrganismos, hoje ainda difícil de se precisar. Mas as baratas estão sumindo, como tudo. Se você tira a floresta, elimina os habitats, elas desaparecem. E quando você faz uma simulação com mudança climática, nossos modelos mostram que as espécies têm dificuldade em sobreviver – alerta Pellens, que é casada com o francês Philippe Grandcolas, especialista em baratas de reputação internacional.
Se dependesse de sua vontade, haveria mais brasileiros estudando no museu francês, mas a atual conjuntura brasileira, segundo ela, não colabora:
– Nos últimos dois anos, ouço colegas dizendo que estão sem dinheiro para pesquisa, com muitas coisas estagnadas. Candidatos sempre há, só não tem vindo mais gente para cá porque não há mais bolsas e recursos.
Vitor encerra seu período de pesquisas no museu no início do ano que vem, quando retornará ao Brasil, mas diz que, se pudesse, estenderia sua estada na França.
– Gosto do trabalho de campo, e neste sentido o Brasil é melhor, há uma vasta área de biologia, de florestas, a parte ambiental faz uma diferença. Mas, hoje, há toda a questão da crise no país, com dificuldades de oportunidades e de recursos para pesquisa, é uma situação bem complicada. Se desse, ficaria por mais uns anos por aqui, mais pelo contexto atual do Brasil.
O pesquisador só tem uma certeza: onde estiver, continuará fiel ao estudo de seu inseto preferido.