FERNANDO EICHENBERG/ ZERO HORA
PARIS – Quando ainda vivia em Porto Alegre, certa vez recebi Luis Fernando Verissimo e sua inseparável Lúcia para jantar em minha casa. Na época, morava num apartamento na rua Filadélfia, em um terceiro andar sem elevador. Ao me mudar para Paris, meu status subiu: desembarquei em um sexto andar sem elevador. Na calçada, diante da porta de meu prédio parisiense, Verissimo olhou para o alto, colocou a mão sobre meu ombro, e ainda com a mirada nos céus, confidenciou: “Acho que a minha amizade contigo só vai até o terceiro andar”.
Anos depois, troquei minha morada para um outro sexto andar, mas desta vez com elevador até o quinto piso, e finalmente pude receber ele e Lúcia em várias ocasiões em meu novo endereço. Verissimo se sentava sempre no mesmo canto do sofá. Por vezes, se erguia, dava uns passos até a janela, e permanecia estático com o rosto colado ao vidro, as mãos entrelaçadas por trás das costas, observando longamente, em admirativo silêncio, os telhados de Paris. Agora que estou novamente sem elevador, não recebo mais a visita do querido casal em meu lar, mas continuamos nos encontrando por aí, no rés do chão da cidade.
Luis Fernando Verissimo pisou pela primeira vez em Paris em 1959, aos 22 anos, em uma viagem na companhia dos pais, Érico e Mafalda. Era também a estreia do autor de O tempo e o vento no continente europeu. “Era o grande sonho da vida dele (o pai) conhecer a Europa. Ficamos quatro meses rodando, e um mês inteiro em Paris”, contou em conversa com Chico Buarque, quando reuni a dupla num bate papo na capital francesa para um programa de tevê (o vídeo pode ser assistido aqui).
Sua primeira lembrança parisiense? A repentina visão ao sair dos subterrâneos do metrô para a superfície e se deparar a sua frente com a avenida de Champs-Elysées. Sobre esta primeira experiência na Cidade Luz, resumiu: “A sensação de estar numa ideia diferente de cidade e de civilização”, me disse, quando o entrevistei aqui uma outra vez.
Verissimo e Paris nunca mais se separaram. A cidade se tornou ao longo dos anos um tipo de porto seguro, onde se refugia – sempre na na companhia de Lúcia – para frequentar boas mesas da capital da gastronomia, visitar exposições e livrarias, assistir a shows de jazz e concertos de música clássica ou simplesmente flanar pelas ruas e fazer repousantes sestas no sofá de seu apartamento, próximo à praça Trocadéro.
O escritor mantém uma relação dicotômica com a cidade: como um habitué, conserva a fidelidade a conhecidos endereços; e como um curioso aventureiro, está sempre disposto a explorar novos destinos. Quase invariavelmente, seu primeiro reflexo após deixar as malas em casa é fazer uma parada no restaurante Laurent, na avenida Gabriel, na parte ajardinada de Champs-Elysées. Uma mesa que, segundo ele, mereceria seis estrelas no reputado Guia Michelin (a classificação máxima é de três estrelas). “Não há melhor programa em Paris do que almoçar no seu terraço, desde que haja sol e a temperatura permita. A pedida é salada de lagosta, um peixe branco e um Sancerre sincero”, aconselha.
Na lista de preferências do incansável gourmet estão ainda o “imbatível” steak tartare do Bar du Théâtre, nas proximidades do Théâtre des Champs-Elysées; o arenque do tradicional Chez Georges, perto da Place des Victoires; o Taillevent, na rua Lammenais, do saudoso Jean-Claude Vrinat; o L’Ambroisie, na Place des Vosges, da talentosa e acolhedora família Pacaud, ou o assediado L’Astrance, na rua Beethoven, do chef Pascal Barbot, quando é possível obter uma reserva.
Sua livraria na cidade é anglófona: a charmosa Gagliano, sob arcadas da rua de Rivoli. Pelo menos uma visita a suas estantes é indispensável a cada vez que vem a Paris. Na música, possui um “amor antigo”, o compositor Michel Legrand; mas cultiva também amantes literários, como “o velho Camus”, e cinematográficos, como “o velho Belmondo”.
Verissimo não perde as exposições em cartaz, seja no Grand Palais, no Centro Pompidou, no Palais de Tokyo, no Museu Jacquemart-André ou em qualquer outro espaço de arte da cidade. E sempre que pode dá uma passada em uma loja Fnac para comprar algum CD, na seção de jazz de preferência. Numa outra entrevista, perguntei o que andava escutando naqueles dias, e ele respondeu: “Eu tinha um vinil de dez polegadas do Oscar Peterson cantando, e me lembrava de como gostava deste disco. E agora encontrei aqui em Paris o CD, e comprei, para me lembrar daquela época. Engraçado que o Oscar Peterson tem o mesmo tipo de timbre de voz do Nat King Cole. Continuo ouvindo bastante jazz, também muita música brasileira, alguma música erudita, principalmente Bach e Villa-Lobos. Ouvi uma bela missa do Beethoven agora aqui em Paris, na Salle Pleyel, um espetáculo”.
Como passeio, diz se inspirar no filósofo flâneur Walter Benjamin (1892-1940), “que gostava de andar pelas galerias”. Já o escritor Guy de Maupassant, lembra ele, dizia que a melhor vista de Paris era da Torre Eiffel, porque não se via a Torre Eiffel. “Mas na sua época ainda não existia a inexplicável Torre Montparnasse”, acrescentou, com toda razão.
Mas em termos de ângulos e perspectivas, o escritor tem um local especial seu na cidade: “Um ponto no Quai de la Tournelle, em que você tem os fundos da Notre-Dame a sua esquerda, e a Île Saint-Louis a sua direita”.
Quando lhe indaguei sobre “um desejo”, replicou de pronto: “Voltar a Paris com a minha neta”. Mas de lá pra cá, o avô escritor ganhou também um neto, e o comboio para a capital francesa vai aumentando.
São inúmeras as histórias e momentos que compartilhamos nestes anos todos na capital francesa. No entanto, muitos deles, para não envergonhar nossas biografias, convém deixar no esquecimento. Como aquela noite em que jantamos nós três – eu, ele e Lúcia – no estrelado restaurante gastronômico de um grand palace parisiense e… Bom, esta história deixarei para contar quando nosso aniversariante homenageado comemorar seus 90 anos de vida. Quem sabe aqui mesmo em Paris, com seus filhos e netos reunidos, o Michel Legrand como trilha sonora, e uma boa garrafa de Saint-Estèphe, como ele aprecia, para o brinde.