Ícone do site Fernando Eichenberg

A história da ribeirinha Cacau, do rio Javarizinho, nos confins da Amazônia, para Paris e o mundo

Cacau em Paris, um sonho realizado. Fotos: © Arquivo pessoal

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Aos sete anos de idade, a pequena Cacau indagou a sua mãe o que havia para além do rio Javarizinho, nos confins da Amazônia, onde morava com a numerosa família em uma cabana sem água corrente e eletricidade. “Pra lá do rio, é o mundo”, foi a lacônica – e poética – explicação materna. Dias depois, sua mãe a avistou nadando ao longe, já bem distante da margem e, às pressas, pulou em uma canoa para resgatar a filha.

– Ela me puxou pelos cabelos, meu deu uns tapas, e perguntou para onde estava indo. Respondi: “Quero conhecer o mundo” – conta Cacau dos Santos, acomodada no club-restaurante Matignon, nas proximidades da avenida Champs-Elysées, na capital francesa.

Caçula de 13 irmãos, dos quais três morreram de sarampo quando a família ainda vivia na floresta do Acre, Cacau cresceu nos arredores de Benjamin Constant, na fronteira do Amazonas com o Peru. Em sua primeira morada, feita de ripa de madeira paxiúba e coberta de palha, caminhava por duas horas para chegar até a escola da cidade. Hoje, mora em Paris, se tornou uma influencer digital com 114 mil seguidores no Instagram (@cacausitruk) e leva uma vida de viagens, eventos, restaurantes e hotéis de luxo. Entre os dois extremos, sua trajetória é uma epopeia de aventuras e reviravoltas. Não por acaso, a atriz Mariana Ximenes, sua amiga, diz querer protagonizar um filme inspirado em sua vida.

– Posso ter dúvidas para onde vou, mas nunca na vida vou esquecer de onde venho – garante Cacau, que criou a associação Parisienne d’Amazonie (Parisiense da Amazônia), para ajudar crianças de sua região.

Cacau, hoje, à beira do rio Javarizinho, onde tudo começou.

Fugidos do sarampo, seus pais se mudaram do Acre para a Amazônia em 1976, em busca de uma vida melhor. Dois anos depois, ela nasceu. No início, a família ganhou um pedaço de terra nas redondezas de Benjamin Constant, onde plantava mandioca, cana, banana e mamão. Passados alguns anos, a mãe e os filhos se mudaram para a beira do rio.

– Do contrário, não conseguiríamos estudar. Pelo menos, de lá era apenas meia hora a pé até a escola – explica. – Também não tinha água encanada nem luz na vida de ribeirinha. O banheiro era atrás da casa. Por vezes, o rio transbordava e inundava tudo. Minha mãe fazia salgados para meus irmãos venderem no colégio. À noite, ela vendia cachaça na taberna, e sempre a acompanhava, tinha medo de deixá-la sozinha com os bêbados.

Uma das poucas imagens de sua infância ( a segunda da direita para a esquerda).

Mas as visitas do pai nos fins de semana foram rareando – “ele começou a ficar safado”, diz. Sua mãe passou a beber álcool além da conta, e, certo dia, sem avisar ao marido, decidiu abandonar tudo e partir com os filhos para Manaus. Viajaram por oito dias de barco, alojados no porão com as mercadorias, porque não tinham dinheiro suficiente para pagar as passagens. Três meses depois, o pai, arrependido, se juntou à família.

– Tinha 15 anos, estava feliz da vida que ia para a cidade grande. Uma de minhas irmãs, que já estava lá, havia se inscrito no programa do governo de moradia para pobres. Mas era no bairro de Santa Etelvina, a uma hora do centro de Manaus, e ainda não estava pronto. Tínhamos uma casa improvisada de 30m2 para dez pessoas. Não tinha luz nem água, e o banheiro era na rua. A gente descia um barranco onde tinha um igarapé, e ali tomávamos banho, lavávamos roupa e louça. No começo, era como se vivesse na Amazônia, mas fora do meu habitat natural.

Na escola de Manaus, a perspectiva do mundo se concentrou em um primeiro alvo. Certa vez, em sala de aula, a professora mostrou uma imagem da Torre Eiffel e, pela primeira vez, ouvir falar em Paris. Foi o bastante para se tornar uma obsessão.

– Era muito sonhadora. Passei a falar que iria para Paris. Minha mãe queria me dar uns tapas, dizia que ninguém me aguentava mais com isso. Na vizinhança, era conhecida como “a doida que vai para Paris”.

Aos 16 anos, obteve um emprego como garçonete em um café regional de Manaus, para o qual tinha de despertar às 4h da manhã. Seu pai faleceu no ano seguinte. Aos 20 anos, passou a trabalhar como organizadora de eventos. Dos seus salários, economizava o que podia na compra de material para construir uma casa de alvenaria para sua mãe.

– Com 25 anos, arranjei meu primeiro namorado e perdi minha virgindade. Sempre fui ativa, danada, mas não muito de namorar. O menino, por quem era apaixonada, veio na minha casa me pedir em casamento. Mas disse para ele, na frente da minha mãe: “Não posso, porque vou para Paris”. Minha mãe me levou para o quarto para me dar uns tapas. Mas eu dizia: “Não vou morrer aqui sem conhecer o mundo”.

Quatro anos depois, sua mãe, que era tudo para ela, morreu. Cacau tinha 29 anos. Uma amiga que vivia na Espanha lhe disse que havia um emprego de babá, em Santander, por 800 euros mensais. Comprou a passagem, mas com uma escala em Paris. Foi a primeira vez que entrou em um avião. A ideia era permanecer cinco dias na casa de uma amiga que morava na capital francesa. Ao desembarcar, em outubro de 2008, após pagar o táxi do aeroporto até a cidade, lhe sobraram 40 euros.

No último dia em Paris, conheceu um jovem francês que se encantou por ela e insistiu para que não partisse para a Espanha. Os dois conversaram via o tradutor do Google. Ela argumentava que não tinha dinheiro nem morada, mas ele disse que poderia ficar em sua casa. Na manhã seguinte, desistiu da viagem e aceitou o convite para morar com ele.

– Era meu último dia na cidade, encontro este menino, bonito, parecia gentil. Não tinha nada a perder, a não ser o emprego na Espanha. Liguei para ele de manhã e falei: “Vem me buscar, vou ficar”. Na cara e na coragem. E foi a melhor coisa que fiz na vida. Segui minha intuição. Pensei como a minha mãe, que dizia que nada era por acaso. Mas durante três meses ele foi apenas meu amigo, nunca encostou em mim. Só depois fui me apaixonar, começamos a ter um relacionamento e nos casamos. Trabalhava como babá e também, sem meu marido saber, faxineira, para poder mandar dinheiro todo mês para os meus irmãos. Andava sempre a pé para os trabalhos, para não pagar ônibus ou metrô, por isso que, hoje, conheço toda Paris. Limpava a casa do Anthony Vacarello (estilista belga, diretor artístico da Saint Laurent), e hoje, quando nos encontramos, ele diz: “Puxa, você viaja mais do que eu” (risos).

Há quatro anos, às vésperas de Natal, seu marido anunciou a separação. Na época, o casal já trabalhava junto no mercado de pulgas de Saint-Ouen, onde ele atuava como marchand de arte. De um dia para o outro, ficou sem trabalho, sem casa, sem dinheiro, e foi morar com uma amiga em um apartamento de 17m2. De última hora, conseguiu um emprego de hostess no Matignon, onde, graças ao seu lado desenvolto e comunicativo, ampliou suas relações e também se tornou amiga de famosos, como a atriz Adèle Exarchopoulos, de “Azul é a cor mais quente” (vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2013).

– Na semana que vem, vou visitar a Adèle para ver o filho dela. Quando era casada, à noite fazia o curso Florent de teatro, para poder conhecer franceses e aperfeiçoar o idioma. Já atuei em curta-metragem, peça de teatro, interpretei a Eva Perón. E outro dia passei a noite aqui dançando com a Madonna. Ficava me dizendo: “Menina, estou dançando com a Madonna” (risos).

Em 2015, chegou a acumular dois empregos e trabalhava diariamente das 9h à meia-noite, exceto aos domingos. Com o crescente sucesso de seu perfil Instagram, a dedicação se tornou exclusiva à rede social. Hoje, possui contratos anuais com cinco grandes marcas e passou a fazer o que ambicionava aos sete anos: conhecer o mundo. Sua agenda é repleta de viagens e momentos ainda hoje impensáveis para a menina do rio Javarizinho.

– Aos oito anos, em Benjamin Constant, entrei pela primeira vez em uma casa de alvenaria, da Mari, filha do então prefeito da cidade, e que até hoje é minha amiga. Ela me mostrou garfo e faca, não sabia o que era aquilo, pois a gente só comia com a mão e colher. De repente, me vejo, hoje, em um jantar privado de gala no meio do Museu do Louvre, sentada ao lado da Natalia Vodianova, com menu do chef Alain Ducasse, apresentação da Ópera de Paris. Não acreditava. Não sou de fingir, não consigo me acostumar que isso é minha vida.

Os alunos da Escola Municipal Rogério Prado Leite, em Benjamin Constant, com os uniformes providenciados pela Parisienne d’Amazonie.

Há dois anos, se enamorou de um francês, e os dois, hoje, vivem juntos. No início, costumavam comer em algum lugar barato perto de onde ela morava e dividiam a conta. Depois, tomavam chá no modesto e diminuto apartamento dela. Nove meses depois, quando realmente começaram um relacionamento, ele finalmente a convidou para conhecer a casa dele:

– Ele me disse que era um pouquinho maior do que a minha. Chegando lá, tinha uns 200m2. Disse para ele: “Você está rindo da minha cara, né? Quem mora de verdade aqui?”. E era ele mesmo. Me escondeu que tinha dinheiro. Contou que tivera uma experiência muito ruim com a namorada anterior, muito interesseira. Na hora, fiquei danada da cara, mas depois pensei que pelo menos assim ele sabia que não gostava dele pelo dinheiro.

Em uma de suas visitas à Amazônia.

Seu novo par possui “uma posição de vida muito boa”, diz, mas garante que, hoje, teria condições de se sustentar sozinha. No ano passado, foi indicada ao prêmio Influencer Awards, em Mônaco. No mês que vem, será nomeada embaixadora de uma revista feminina francesa, que organizará um jantar de arrecadação de fundos para a Parisienne d’Amazonie. Em julho, viajará para sua terra natal com Pauline Ducruet, filha da princesa Stéphanie de Mônaco.

– Ela quer conhecer a associação. Já consegui arrumar a escolinha, fazer uniforme para as crianças, comprar sapatos, porque elas iam para a aula descalças. Meu sonho desde meus sete anos era conhecer o mundo e ajudar minha família. Nunca perdi a fé em mim. Mas não a fé de que vai dar certo, mas sim de que você terá de buscar o que está procurando. Minha mãe sempre me dizia: “Você sonha, mas tem de levantar do sofá e ir atrás, porque a única coisa que cai do céu é a chuva”.

Mariana Ximenes, segundo ela, já escolheu o título do filme de sua vida: “Ribeirinha”.

Sair da versão mobile