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Retorno de suspeitos de jihadismo se torna um dilema para a Europa

Estrangeiros suspeitos de integrarem o Estado Islâmico presos em uma cela em Hasaka, Síria: países não os querem de volta. ©Goran Tomasevic/Agência O Globo

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A derrocada do califado do Estado Islâmico (EI) gerou um problema até agora não resolvido pela comunidade internacional: como e onde julgar os milhares de jihadistas atualmente detidos em prisões curdas e iraquianas? As opções sobre a mesa se resumem a promover os julgamentos nos territórios onde os crimes foram cometidos, repatriar os criminosos estrangeiros aos seus países de origem ou recorrer à solução de uma instância jurídica internacional. Em um debate que se eterniza em meio a questões jurídicas e interesses políticos divergentes, o consenso está longe de ser alcançado.

As estimativas curdas indicam cerca de 12 mil combatentes do EI detidos no Nordeste da Síria, de variadas nacionalidades. As autoridades de Bagdá e as Forças Democráticas Sírias (FDS), lideradas pelos curdos, exigem o repatriamento dos jihadistas estrangeiros — calculados entre 2,5 mil e 3 mil, fora os iraquianos — aos seus países de origem, o que até agora vinha sendo recusado pela maioria dos governos, principalmente europeus, temerosos do retorno de potenciais terroristas a seus países, capazes de doutrinarem nas prisões e de agirem se absolvidos ou uma vez libertos após o cumprimento da pena.

França, Alemanha, Reino Unido, Bélgica, Holanda, Suécia e Dinamarca entabularam negociações visando a criação de um tribunal penal internacional no Iraque para julgar os jihadistas estrangeiros. A ideia é também defendida pelo advogado britânico Karim Khan, conselheiro especial da Organização das Nações Unidas (ONU) que dirige a investigação sobre os crimes do EI, na forma de um tribunal “como o de Nuremberg”, que julgou os nazistas ao final da Segunda Guerra Mundial. A iniciativa é igualmente apoiada no âmbito da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (APCE) e por diferentes ONGs.

O conflito deflagrado entre as forças turcas e curdas, bem como as recentes desavenças entre o Iraque e os Estados Unidos no caso da crise iraniana, alteraram o cenário. A França admitiu, pela primeira vez, a hipótese de repatriamento de seus cidadãos presos na região.

— Até as recentes evoluções, pensávamos na possibilidade de um tribunal misto no Iraque — disse, em janeiro, a ministra da Justiça, Nicole Belloubet. — Se não é mais possível julgar no local, não vejo outra solução que repatriar essas pessoas para a França. Não podemos assumir o risco de uma dispersão: ou se vai repatriá-los, pois se considera que é melhor que estejam sob controle francês, ou eles somem no ar.

Para o jurista Nicolas Bauer, do European Centre for Law & Justice (ECLJ), organização internacional dedicada à promoção do direito e da justiça no mundo, associada à ONU, o repatriamento parece ser, hoje, a solução que restou pela falta de opções viáveis.

— A impressão é a de que não há escolha. Houve um momento de pressão internacional para que os julgamentos ocorressem na Europa, principalmente por parte do presidente [dos EUA] Donald Trump, mas os países europeus alegavam que não poderiam fazê-lo. Ao mesmo tempo, a ministra Belloubet anunciou que há jihadistas já presos na França que serão liberados ao longo deste ano e de 2021. Muitas ações terroristas que ocorreram na Europa foram feitas por jihadistas que retornaram, caso de Abedelhamid Abbaoud, envolvido no atentado [em Paris] de 13 de novembro de 2015, que esteve na Síria. E sabe-se muito bem que os jihadistas não se arrependem de suas ações, e que, hoje, não há um sistema judiciário que permita mantê-los presos por mais tempo.

O ideal, segundo o jurista do ECLJ, seria que os réus fossem julgados nas localidades onde seus eventuais crimes tenham sido cometidos, uma forma de fazer processos mais justos, pela maior facilidade de coleta de provas e de convocação de testemunhas.

— Os tribunais penais internacionais do passado, principalmente o TPI instalado para as guerras na ex-Iugoslávia (1993), não se revelaram tão neutros assim. E a lentidão dos processos e das sentenças faz com que o papel do julgamento como uma reparação necessária para a sociedade tarde a ocorrer. Nós da ECLJ, bem como parlamentares da APCE, lutamos para que os crimes cometidos pelo EI sejam reconhecidos como genocídio, principalmente em relação à minoria yazidi e a cristãos.

Na contramão da morosidade dos tribunais internacionais, a Justiça iraquiana tem, até aqui, sido criticada por promover processos demasiado expeditivos, sem respeitar os direitos de defesa dos acusados e com a possibilidade de condenação à pena de morte. Para Bauer, um “bom compromisso” seria acrescentar magistrados estrangeiros aos julgamentos.

— Neste caso, seria mais uma questão de política do que de direito, pois atinge a soberania do Iraque. Entra-se na jurisdição penal internacional. Teria de haver uma negociação política.

O Tribunal Penal Internacional (TPI), corte permanente criada em 2002 para julgar violações do direito humanitário, não poderia julgar os crimes do EI, pois o estatuto exige que os delitos tenham ocorrido em território de um Estado membro, o que não é o caso da Síria e do Iraque. Os governos de Damasco e Bagdá poderiam, em tese, dar competência ao TPI, por um determinado período, para atuar em seus países. Camille Cressent, especialista em direito internacional da Universidade de Lille, não tem dúvida, no entanto, de que se trata de uma alternativa irrealizável.

— Iraque e Síria não deixarão jamais que os investigadores internacionais façam este tipo de trabalho no quadro do TPI. Haveria o risco de que as enquetes pudessem encontrar elementos que incriminassem os dois países. O presidente sírio, Bashar al-Assad, nunca permitiria isso — assegura.

Cressent defende a instituição de um tribunal penal internacional independente para julgar os jihadistas, embora aponte obstáculos praticamente intransponíveis para sua concretização. Segundo ela, seria a única chance de haver um direito uniforme e mais justo para os réus.

— Se poderia instituir um TPI misto entre os direitos anglo-saxão e romano-germânico, os dois sistemas mais representados no mundo, e com juízes de vários países, não somente europeus. Seria um bom começo. Mas seria necessária validação unânime do Conselho de Segurança da ONU, e com o jogo de alianças políticas é complicado. Rússia e China nunca seriam a favor. E Washington e Moscou igualmente têm posições discordantes e não possuem os mesmo aliados na região.

Para Bauer, a Justiça Internacional é uma solução pensada por “pessoas que querem se desresponsabilizar”:

— É legítimo querer se desresponsabilizar. É compreensível que os curdos, que mantêm os prisioneiros e os julgam penosamente, sem que tenham um Estado reconhecido, peçam um TPI. E há políticos franceses que, preocupados com suas popularidades, não querem eles próprios administrar o problema.

Já para Cressent, França e demais países europeus procuram “ganhar tempo”, adiando a questão.

— Os Estados não sabem o que fazer com os jihadistas, não os querem em suas prisões. Mas, com o tempo, serão obrigados a repatriá-los.

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