Entrevistei o pensador Paul Virilio, filósofo e urbanista, no ano de 2000, numa longa e agradável conversa em um de seus bares preferidos de Paris. Há alguns anos, telefonei para sua casa, na cidade de La Rochelle, na costa atlântica do sudoeste da França, solicitando um novo encontro. Ele foi, como sempre, muito simpático, mas recusou meu pedido, argumentando que estava atravessando um delicado período de saúde e que sua recuperação seria bastante longa. Mas não me desencorajou de todo, e disse que tentasse novamente em um ano.
Neste 18 de setembro, foi anunciada sua morte. Paul Virilio faleceu no dia 10, vítima de um ataque cardíaco. Segundo seu desejo, os funerais ocorreram na intimidade familiar, no dia 17, e o falecimento divulgado um dia depois. De acordo com sua filha, Sophie Virilio, ele estava preparando mais um ensaio e uma nova exposição.
Em homenagem, reproduzo aqui um trecho de nossa entrevista, feita na época para a hoje extinta revista República, e depois publicada na íntegra no primeiro volume do meu livro “Entre Aspas”.
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A velocidade é um imperialismo tirânico, dominadora da organização social e do controle político. Uma nova democracia virtual, cibernética, ameaça a liberdade por meio do reflexo condicionado. As sondagens substituirão a eleição. O homem-prótese se alimentará de comida energética e criará um novo gênero humano. A bomba atômica, a bomba informática e a bomba genética, vaticinadas por Einstein, estão no meio de nós. É imperativo estabelecer uma inteligência política do tempo. O acidente integral é a nova arma fatal, global, ambicionada pela grande potência – os Estados Unidos. Os alertas, quase infindáveis, provêm do francês Paul Virilio, urbanista de formação e, sem dúvida, um dos pensadores mais originais, ousados e corajosos da paisagem intelectual francesa. Autor do ruidoso livro “Velocidade e política”, de 1977, Virilio vem desenvolvendo seus estudos sobre o que denominou de “dromologia” (ciência da velocidade) e suas variantes em inúmeras obras: “Estratégia da decepção”, “A máquina da visão”, “A bomba informática” ou “O espaço crítico e as perspectivas do tempo real”. Habituado à catilinária de seus opositores, que o acusam de “apocalíptico e fatalista” ou reduzem seu inimitável currículo intelectual às alcunhas de “pensamento-óvni” ou “teólogo da Idade da Mídia”, Virilio não desarma sua vigilância diante de nenhuma provocação. Sua missão no campo das ideias se impõe também como estratégia quase militar. “Sou um resistente”, diz, com a determinação de quem conhece a iniquidade da guerra, as preferências da mídia e as intemperanças do pensamento único.
Numa longa conversa, assentado num de seus bistrôs favoritos no boulevard Raspail, em Paris, Paul Virilio fez a retrospectiva e a predição de suas inquietantes teses. Ao término do encontro, após nossas despedidas na calçada, enquanto já caminhava distante alguns passos, ele girou o corpo repentinamente para pronunciar uma derradeira frase, gravada pela fina chuva que caía com a noite: “Sejamos resistentes!”.
O senhor se refere constantemente ao imperialismo da velocidade. Diz que lutamos contra a tirania do tempo real. Como foi que chegamos a esse estágio ou a esse fim?
Todo mundo é consciente de que há uma economia política da riqueza. O poder está ligado à riqueza. Mas esquece-se de dizer que a riqueza está ligada à velocidade. Na época greco-latina, os banqueiros eram cavaleiros ou navegadores. A mais-valia estava ligada à velocidade dos navios no Mediterrâneo – reler Fernand Braudel – ou à velocidade dos cavaleiros, aqueles que levavam as mensagens, transportavam as ordens. Quando se diz que tempo é dinheiro, quer-se dizer que a velocidade é poder. Desde os anos 1960, me interesso por essa ciência – ainda não é ciência, mas poderá tornar-se uma – que chamei de dromologia. Dromos vem do grego e significa “corrida”. Durante 25 anos tentei mostrar como, por meio da velocidade dos transportes, a velocidade fez história da mesma maneira que a riqueza. Não se pode separar as duas. Evidentemente, há também a velocidade de transmissão: o telégrafo, o telefone, a telegrafia sem fio, enfim, o rádio, a televisão e, hoje, da Internet. A velocidade dos transportes foi ultrapassada por uma velocidade absoluta, de ondas eletromagnéticas, que possibilitam a telecomunicação, o teletrabalho, a teleatividade e também a estratégia.
Estratégia em que sentido?
Minha consciência da velocidade é devida ao fato de eu ser o que se chama na França de um “intelectual de defesa”. É uma denominação bem francesa para dizer que há civis que possuem um conhecimento e uma cultura militar que lhes permite dialogar de igual para igual com generais e almirantes. Minha compreensão da velocidade se fez também porque sou um warchild, um filho da guerra. Vivi as blitzkriege (velozes ataques aéreos nazistas). Era criança na Segunda Guerra Mundial, mas consciente da rapidez da ameaça da ocupação. Me dei conta de que não se podia compreender a história econômica nem a história estratégica sem a força da velocidade. A velocidade da cavalaria fez história desde Gengis Khan. Sem esquecer “Meu reino por um cavalo”, de Ricardo III, de Shakespeare. O preço de um cavalo de corrida na Idade Média, de um cavalo de guerra, equivalia ao preço de uma província. Por quê? Porque a velocidade é o poder. A cavalaria representou esse poder antes da chegada dos tanques soviéticos ou dos aviões de combate da Segunda Guerra Mundial. A dromologia se dá entre a economia política – não somente da riqueza, mas também da velocidade -, a geoestratégia e geopolítica. Não se possui um território se não se é capaz de percorrê-lo o mais rápido possível.
O senhor diz que atingimos o limite, o muro da velocidade.
Conquistamos a velocidade da luz, a velocidade absoluta. Todas as revoluções anteriores trataram da velocidade relativa. As velocidades do cavalo, do trem, do avião e mesmo a do supersônico são relativas. Com as transmissões eletrônicas ao vivo alcançamos o muro da velocidade, o muro da luz. Lembre-se de que há três muros: do som – ultrapassado nos anos 1950 -, o do calor – a velocidade de liberação, ultrapassada pelos foguetes a 28.000 km/h, e a velocidade de escape, a 40.000 km/h, que permite ir a Lua -, e, por fim, o muro da luz, as ondas eletromagnéticas. A única coisa que ainda não atingiu a velocidade de ondas eletromagnéticas é o cálculo do computador. Os computadores eletrônicos ainda são muito lentos. Por isso que se tenta inventar computadores quânticos. A velocidade de cálculo não esta à altura da velocidade de transmissão. O dia em que tivermos um computador que calculará a velocidade da luz, sua potência será infinita. A revolução não é apenas industrial, mas também dromológica, revolução da velocidade.
Qual é o limite?
Atingimos o limite num planeta reduzido; o planeta Terra é pequenino. A velocidade da luz no universo não é nada: são necessários muitos anos, mesmo à velocidade da luz, para ir ao fim do universo. Mas o mundo, nós o reduzimos. A globalização é uma clausura. Somos hoje como peixes numa redoma, numa terra extremamente pequena. Para as telecomunicações, a Terra é muito pequena. Tudo vai muito rápido. Hoje há duas ecologias: a ecologia verde, que se interessa pela poluição das substâncias – do ar, da água, da fauna e flora -, e a ecologia cinza, que se preocupa com a poluição das distâncias, a redução das distâncias no mundo a nada. Ora, o homem não vive somente de ar puro, de água, de carne, nós vivemos também de distância. Temos necessidade de distância, senão é o encarceramento, o sentimento de aprisionamento. Michel Foucault disse que o século 18 era o século do grande aprisionamento. Não é, pois ele ainda está diante de nós. Amanhã, a humanidade vai se sentir aprisionada numa Terra infinitamente pequena, sabendo que não há nenhum planeta habitável em volta. Esse sentimento corre o risco de ser um dos dramas do futuro, um tipo de claustrofobia da humanidade. Não somos apenas animal, mas também geometral. Somos proporções. As proporções fazem parte da vida, tanto geográficas como humanas, fisiológicas. O fato de ter atingido a velocidade da luz nos coloca numa situação do peixe contra o vidro da redoma.
Com essa revolução da velocidade, como fica o tempo da história?
A partir do momento em que atingimos a velocidade da luz, o live (ao vivo) se torna o tempo de referência da história, o tempo real. O live, a instantaneidade, o imediatismo, a ubiquidade se tornam o espaço-tempo da História. Não vivemos mais o tempo local. A história do Brasil não é a história de Paris. A história se escreve no tempo local,
A teoria diz que o progresso da velocidade técnica deveria ser acompanhado pelo progresso da democracia. Como é na prática?
Não há democracia automática. Mesmo a democracia direta, nos cantões suíços, é uma democracia feita por meio da reflexão comum. Depois da reflexão, as pessoas se reúnem na praça da aldeia e levantam a mão para votar a favor ou contra. Hoje, tenta-se implantar uma democracia virtual, equivalente às sondagens da televisão: o voto será substituído pelas pesquisas. A reflexão em comum será substituída pelo reflexo condicionado. Chegaremos a uma democracia ultrarrápida, de resultado imediato, mas não será uma democracia. Será uma democracia cibernética. O reflexo é algo que condiciona a opinião. Vê-se isso muito bem nas pesquisas de opinião, que não têm nada a ver com a sofisticação da inteligência democrática; é um fenômeno publicitário, teleevangelista. Como nos programas de auditório: “Vocês são a favor de Milosevic? A favor do genocídio? Não?”. Isso é uma negação da democracia. Há, hoje, a ameaça de substituição da democracia por uma democracia virtual, isto é, uma democracia de reflexos condicionados. A palavra grega kybernos quer dizer comandar; a cibernética é a ciência da máquina, da interface homem-máquina. Isso é maravilhoso, como provam o piloto-automático e tudo mais. Mas o inventor da primeira cibernética, Norbert Wiener, nos anos 1940 e 1950, dizia que seu uso na política seria um horror. Hoje, por meio da Internet, estamos dizendo que será bom. Sei, como Norbert Wiener, que será uma tirania cibernética.
O senhor denuncia as bomba atômica, informática e bomba genética, que Albert Einstein chamou de demográfica.
Pouco antes de sua morte, Einstein disse que existem três bombas. A primeira é a bomba atômica. É a dissuasão nuclear, a política de blocos, o equilíbrio do terror, o complexo de destruição mútua assegurado. Vivemos durante 30 anos sob a ameaça da destruição pela bomba atômica. A segunda, diz Einstein, é a bomba da informação. A palavra “informática” não existia na época. Einstein diz: “Quando todo mundo souber tudo, será terrível”. Não podemos saber o que isso significa: a possibilidade de uma informação mundial, e não simplesmente de uma informação local, ligada a uma classe política, a uma nação, a uma elite, religiosa ou civil. Por fim, ele diz que a terceira será a bomba demográfica. Ora, estamos entrando na era da terceira bomba. A bomba informática está explodindo por meio da Internet, em particular, e por meio da globalização. Quando o computador foi inventado, ele serviu às pesquisas militares sobre a bomba atômica. Bomba atômica e bomba informática se reforçaram mutuamente. Por que hoje, a parte Índia e Paquistão, não se fazem mais explosões atômicas? Porque podemos simular num computador o resultado de uma explosão nuclear. Ao mesmo tempo, a bomba informática prepara a terceira bomba, a bomba genética. Einstein via a possibilidade de uma demografia galopante. O que vejo é a ameaça de decodificação de milhares de genes que integram a árvore da vida, o DNA, e a possibilidade de uma biotecnologia do ser vivo. A bomba informática permitirá, no futuro, a industrialização, a programação do ser vivo. As três bombas de Einstein já estão entre nós.
Como se desenvolvera a terceira bomba, a genética?
É muito simples. A ameaça demográfica é uma realidade. Não se pode entender a seleção genética sem a vontade de haver uma eugenia que permita eliminar os menos bons. A seleção natural é Darwin, e a seleção artificial é Galton (Francis Galton, cientista e explorador inglês cujos trabalhos sobre hereditariedade conduziram ao desenvolvimento da eugenia). Não podemos interpretar as pesquisas genéticas, as experiências transgênicas a não ser como uma forma de eugenia artificial, de seleção. Chegamos a um ponto no qual, diante de um aumento demográfico, da bomba demográfica, a possibilidade de uma seleção dos melhores e da eliminação, entre aspas, dos ruins está de novo em pauta. É um novo tipo de seleção. Não mais racista, no sentido de raça, mas no sentido de gênero humano. Se continuarmos com a bomba genética teremos diferentes gêneros humanos. No momento, temos várias raças, mas só um gênero humano. Nenhum racista diria que um negro não é um homem. Ele pode dizer que ele é ruim, ele é negro, mas é um homem. Quando tivermos seres originados da mulher e seres fabricados em laboratório, teremos dois gêneros humanos. Estamos bem no meio das três bombas de Einstein, e a informática foi o meio para tudo isso. Referi-me à potência de um computador. Um computador é a sua potência de cálculo, e, dito de outra forma, sua velocidade. Estamos entrando num novo século inquietante, porque depois da industrialização dos objetos, no século 19, prepara-se a sucessão para a industrialização da vida. Conheço o doutor Jacques Testard, um dos pioneiros nas pesquisas com bebês de proveta, in vitro. O primeiro bebê de proveta foi feito para ajudar a procriação de casais que não podiam ter filhos. Mas um dia ele viu chegar jovens saudáveis que disseram: “Queremos um bebê”. Ele respondeu: “Mas vocês não têm nenhum problema. Basta uma cama, e pronto”. “Mas não é a moda”, retrucaram os jovens. E ele parou de fazer pesquisas genéticas.
Será a revolução do homem-prótese?
Depois da revolução industrial e da revolução de transmissão, prepara-se a revolução de transplantação – a possibilidade de anexar próteses ao corpo do homem por meio de transplantes de órgãos animais, mas também outros, como estimuladores cardíacos. E logo virão aceleradores, memórias adicionais e computadores implantados atrás da orelha. O estimulador cardíaco foi feito para os doentes, e agora preparamos estimuladores para sermos mais fortes, mais Rambo, rápidos e mais interativos com a máquina. No futuro, o homem também será alimentado pela comida energética ou eletrônica. Estamos nesse caminho. É uma ameaça para o ser, o homem de carne e osso, o homem, entre aspas, natural, em proveito do mito do super-homem, mito fascista por excelência. Cada vez que falamos de um homem superior, o fascismo retorna. O fascismo está ligado à vontade de poder do Ocidente, à performance e à potência puras. Não enxergamos o que há de profundamente contemporâneo no fascismo. Não tem nada a ver com Hitler e a cruz gamada. É pior, pois vem de todo lado, por meio da performance técnica. É o que se vê hoje na engenharia genética, nessa ideia de uma humanidade superior melhorada pela ciência, o retorno do eugenismo. É uma das ameaças do século 21.
O que é “o acidente integral, geral”, que o senhor considera outra grande ameaça para o homem desse novo milênio?
A interatividade está para a informação como a radioatividade está para a energia na bomba atômica. O feedback da informação em escala mundial é um potencial comparável à radioatividade da arma atômica. Uma energia colossal. É por isso que Einstein tem razão ao usar o termo bomba. Com relação ao acidente, é preciso dizer que não há ganho sem perda. Cada vez que se inventa um objeto técnico, inventa-se um acidente. Quando inventamos o navio, inventamos o naufrágio. Todos os navios são passíveis de afundar, porque flutuam. É o Titanic. Os aviões comportam a potencialidade de cair. É inevitável. Inventar hoje um avião de mil lugares é inventar um acidente de mil mortos. Não sou pessimista, é uma realidade. Se amanhã inventássemos um avião que pudesse transportar 6 bilhões de passageiros, a população da Terra, o acidente seria o acidente da humanidade. Quando inventamos o trem, inventamos o descarrilamento. Se houve um progresso do trem é porque criamos uma lógica do trajeto, a engenharia de tráfego. No século 19, os trens descarrilhavam seguidamente. Em 1890, foram reunidos em Bruxelas os responsáveis das companhias ferroviárias europeias, e eles inventaram o bloc system, o sistema de sinais que organiza a circulação dos trens. Com isso foi possível desenvolver a velocidade dos trens e construir uma rede ferroviária. Inventou-se algo extraordinário: o tráfego. Até então, o tráfego não existia. Só existiam viagens. Viajava-se de trem. Mas um trem não é uma viagem. Se você vai a Santiago de Compostela a pé, com seu bastão, é uma viagem. Se você entra num vagão de trem, você não está em viagem, está no tráfego. Se caminho na calçada e esbarro numa mulher, não é um tráfego, é um acidente de circulação, não é perigoso. Mas, se estamos cada um num carro, são duas mortes. Veja até que ponto a velocidade modifica o que não era nada. A velocidade dá uma força dramática ao transporte. Antes tínhamos acidentes locais. O trem descarrilhava em determinado lugar, um navio afundava em outro. Nossa época inventou o acidente global. O acidente pode se produzir de uma só vez, no mesmo instante. O bug, por exemplo, é um erro de programação. Fixamos a data do acidente, e mesmo que não tenham ocorrido maiores estragos, gastou-se bilhões de dólares para evitar uma catástrofe. Hoje, no século 21, entramos na possibilidade de acidentes cibernéticos, que dirão respeito ao mundo inteiro, acidentes integrais. O crack da bolsa é a imagem desse tipo de acidente. Com a recente crise na Ásia, passou-se a falar de risco sistêmico, o efeito de reação em cadeia, interatividade-radioatividade. Não digo isso porque sou apocalíptico ou triste. Digo apenas que os navios afundam, os aviões caem – é de sua natureza. Será preciso efetivar uma inteligência do acidente, que será uma inteligência da velocidade. A velocidade está na base de todos os acidentes.
Como deverá ser essa inteligência da velocidade?
Será preciso entrar numa inteligência política do tempo. O tempo está na base da história, mas o tempo cronológico, não o tempo da aceleração. O live, o tempo real, é a aceleração da realidade histórica. Não é mais a história do passado, do presente e do futuro que é acelerada, mas a própria realidade. Atingimos o estágio de necessidade de uma economia política da velocidade. Essa inteligência é um trabalho a ser feito no espaço-tempo. A relatividade de Einstein, que era uma visão astronômica, terá de ser estudada em nível físico, da vida cotidiana. Como uma ciência política da aceleração. Aprendi a dirigir no serviço militar, num caminhão. Comecei com 30 km/h e, pouco a pouco, aprendi a velocidade. E evitava os acidentes. Conduzir, pilotar, nada mais é do que evitar acidentes. Como evitar acidentes? Aprendendo a conduzir não apenas carros e caminhões, mas também relações sociais. Mais um exemplo: a revolução industrial promoveu a estandardização dos produtos e também das opiniões. À revolução informacional, vemos acrescentada a sincronização: o tempo foi estandardizado, industrializado, por meio da sincronização. O tempo das relações foi estandardizado.
O senhor não trata do sujeito ou do objeto, mas do trajeto.
Há dois aspectos importantes na filosofia: o sujeito e o objeto, objetividade e subjetividade. Nenhum dos dois é completo sem o trajeto. O trem e a via férrea não são tudo: o essencial é o trajeto. Ser humano é ser trajeto. Ao lado da subjetividade e da objetividade deve emergir o que chamo de “trajetividade”. Nesse momento, poderemos ter uma inteligência do ser vivo, que será uma inteligência dromológica. Um cavalo em si não é um trajeto. Quando Ricardo III diz “Meu reino por um cavalo”, não é o animal que ele quer, mas o trajeto; um cavalo que corra, um cavalo de guerra. Somos vivos e somos velocidade. Nosso trajeto se liga à nossa vida, nossa vivacidade.
O mundo virtual não acabou com o trajeto?
A realidade é composta dos dois, do virtual e do real. Não se pode colocá-los em oposição. Há uma virtualidade nos meus sonhos, no meu pensamento, que faz parte da minha realidade. A oposição é entre o real e o atual. O atual é a passagem ao ato. A novidade, hoje, é que tentamos construir um mundo virtual, uma realidade virtual, ao lado da realidade atual. A realidade, até o presente, falava de sonhos, da virtualidade, mas o essencial da vida ocorria na atualidade, na passagem ao ato. Hoje, a indústria cibernética inventou instrumentos que fazem com que o virtual se desenvolva em concorrência com o atual. Vamos em direção a uma “estéreo-realidade”. Temos os graves e agudos, o hi-fi, a alta-fidelidade. De um lado, o mundo atual, dos graves, que continua a existir, é o mundo da geografia, da política, da vida. E, de outro, o mundo dos agudos, a realidade virtual. Algumas pessoas são capazes de viver no equilíbrio dos dois, estão no eixo entre os graves e agudos. Outras são completamente atraídas pelo virtual e adoecem de IAD, Internet Addiction Desorder (Desordem do Vício da Internet). Esse mundo da realidade virtual não vai desaparecer. Será necessário pilotá-lo, criar um tipo de equilíbrio entre os graves e os agudos.
O senhor diz que os poetas, artistas, cineastas souberam ser homens de divergência e que a dúvida hoje é se os cientistas também saberão ser críticos.
Se não há ganho sem perda, não há progresso sem crítica. Aquele que critica é, na realidade, um inovador, um homem que favorece o progresso. É o caso do bloc system. Se os engenheiros não tivessem feito a crítica do tráfego, não teríamos o trem a grande velocidade, o TGV. Não sou pessimista, como muitos dizem. Sou um adorador da técnica. Nunca disse que deveríamos retornar ao carrinho de mão.
Mas o senhor diz que devemos tomar a escada em lugar de usar o elevador.
Disse simplesmente que há uma perda, algo grave. Quando se inventa o elevador, perde-se a escada. A escada continua a existir, mas as pessoas não a utilizam mais. É a lei da menor ação, do menor esforço. Diante de uma escada que vai ao segundo andar, ou mesmo ao primeiro, as pessoas tomam o elevador para não se cansar. A escada não é mais um elemento determinante da arquitetura. No passado, a escada era um dos elementos mais belos. Com o elevador, tornou-se escada de emergência, algo sem interesse, que ninguém utiliza, exceto quando há pane de eletricidade. A escada é desqualificada, desacreditada, considerada primitiva. Quando se inventa o jato que atravessa o Atlântico, perde-se o paquete, que se torna um navio de transporte de contêineres. Perdem-se o navio e, com ele, o Atlântico, que se torna uma área de brinquedo – que as pessoas atravessam a remo ou em pedalinho – e um lugar de riscos de poluição pelos grandes cargueiros. Antes, era o oceano fabuloso, hoje é um gadget, perdeu sua qualidade. Se continuarmos assim, o mundo se tornará um mundo de emergência, um mundo desqualificado em prol de domínios virtuais, domínios de alta velocidade. Teremos perdido o mundo, teremos perdido a nós mesmos. Precisamos do trajeto, do percurso.