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Paris vê sem polêmica “La Bête”, performance alvo de ataques no Brasil

Apresentação da performance “La bête”, de Wagner Schwartz, no Palais de Tokyo, em Paris.    Fotos: ©Fernando Eichenberg

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – O artista Wagner Schwartz é um sobrevivente do linchamento virtual, “uma definição atualizada de tortura”, como ele mesmo explica, para facilitar a compreensão da dolorida experiência. No último fim de semana, o Palais de Tokyo, celebrado espaço de manifestações de arte contemporânea da capital francesa, foi palco de um importante capítulo da história de sua sobrevivência artística e pessoal. Como um dos nomes convidados do festival internacional “Do disturb”, Schwartz apresentou nos três dias do evento sua performance “La bête”. Paris acolheu a primeira apresentação da obra desde a incendiária polêmica surgida no Brasil, em 2017.

A performance inicia com o artista, nu, manipulando uma réplica de plástico de uma das esculturas da série “Bichos”, da artista brasileira Lygia Clark (1920-1988). Na sequência, o público é livre para participar, moldando as mais diferentes formas com o próprio corpo do artista. Para quem não sabe ou não lembra, a cena isolada de uma criança, acompanhada da mãe, tocando o pé do artista durante a performance realizada na abertura do 35º Panorama de Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, em 26 de setembro, foi registrada e jogada no caldeirão da internet, deflagrando uma onda de agressões, ofensas, protestos e inflamados debates dentro e fora das redes sociais. Schwartz foi acusado de ser “pedófilo” e teve, inclusive, de prestar depoimento na 4ª Delegacia de Polícia de Repressão à Pedofilia.

Por tudo o que passou, o artista confessa que “lidava com o medo e o desejo” de reestrear “La bête”, o que fez do primeiro dia da performance no festival parisiense um momento singular:

– Saí de casa chorando para a apresentação. Conversei com amigos no Brasil e, como nas redes sociais, todos me desejavam o melhor. Sabia que esses votos não eram direcionados apenas à execução da performance, mas vibravam, igualmente, no íntimo. No metrô, conexões simbólicas aconteceram quando ouvi algumas meninas brasileiras cantando um samba de amor. Amigos me ligaram. O céu estava bonito. Entrei no Palais de Tokyo com a certeza que estava bem acompanhado e que, com essas presenças, reapresentaria “La bête”.

Schwartz: “Ainda não consigo apresentar ‘La bête’ no Brasil. Isso me entristece profundamente.

O museu estava repleto, bem como a sala 37, reservada para performance. Aos poucos, integrantes do público deixavam seu lugar para brincar com o “Bicho” humanizado.

– Havia engajamento, humor, doçura e risco – diz Schwartz. – Havia uma sensação de conexão entre a obra e o público. Ao fim, senti que o medo que havia incorporado não mais existia, assegurando o lugar da arte como aquela que pode transformar tensões assoladoras em ação.

O artista revela que nunca perdeu a vontade de reapresentar a obra, mas admite que, hoje, seu desejo de fazê-lo é ainda maior. Os ataques que recebe são menos frequentes, “mas ainda chegam”, conta.

– Ainda não consigo apresentar “La bête” no Brasil. Isso me entristece profundamente. Não existe um impedimento jurídico para apresentar a performance. E, ao mesmo tempo, existem convites de festivais e um número considerável de pessoas intencionadas a assistir e participar desta ação. O que impede são as várias ameaças de morte que recebi. Não consigo, nesse momento, desconsiderar cada uma delas. Mas, a possibilidade de apresentar “La bête” está em andamento. Não se cristalizou nos ataques. Minha produtora, Gabi Gonçalves, e eu estamos estudando quando e como realizar a reaparição desta performance. Ela vai acontecer – garante.

Para Schwartz, o que ficou desta experiência, num sentido mais amplo, foi “a sólida relação criada entre os artistas e aqueles que apreciam arte”:

– Todos se juntaram para solucionar o curto-circuito causado pela manipulação medíocre de imagens descontextualizadas. No sentido mais íntimo, o medo reafirmou a importância de passar ao ato, de continuar sensibilizando as pessoas, de criar projetos que possam acontecer num teatro, galeria, museu, e que continuem, também, existindo nas conversas, fora dos espaços de arte.

“Se “La bête” uma vez existiu para proporcionar ao público uma experiência artística, agora, a performance tem a consistência de um ato político”.

O artista considera inquietante o clima de reações agressivas e tentativas de censuras de obras artísticas:

– Este cenário é muito preocupante porque existem pessoas prontas a atacarem o que não compreendem, dizendo-se especialistas. Estas pessoas não acreditam nos fatos. Elas precisam criar verdades para acreditar nas próprias verdades. E, não bastando acreditar, convocam seus cúmplices. No final, o que é importante não são os fatos, mas o que elas criam como verdade.

O processo de assimilação, superação e transformação da experiência se deu aos poucos, segundo ele, quando os amigos se aproximaram, ajudando a refletir sobre a violência sofrida:

– Sobrevivi aos ataques graças aos milhares de apoios que recebi, registrados em blogs, jornais, TVs, redes sociais, sites de compartilhamento de vídeos. Se “La bête” uma vez existiu para proporcionar ao público uma experiência artística, agora, a performance tem a consistência de um ato político.

“Para destruir, basta apertar uma tecla”.

Schwartz recebeu um convite dos curadores Guilherme Weber e Marcio Abreu, do Festival de Curitiba, para criar uma peça, em conjunto, com a coreógrafa Elisabete Finger (mãe da criança que participou de “La bête”, no MAM/SP), o artista Maikon K (criador de “DNA de DAN”, detido pela polícia militar sob a acusação de ato obsceno) e da atriz Renata Carvalho (que teve sua peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” censurada e foi impedida de se apresentar por ser travesti e por interpretar Jesus Cristo no teatro).

– Como disse Renata, “quando a gente acha os nossos pares, a gente compreende aquela dor”. Em conjunto, foi possível atualizar os ataques, mudando de assunto. Criamos uma peça. Continuamos a trabalhar, a complexificar os traumas em nossas práticas artísticas, a verificar, na História, quantos artistas já haviam sido vítimas dos absurdos criados por uma parte doente da sociedade, que usa de seu poder para apagar aquilo que, para ela, não faz sentido. Então, percebemos a grande diferença entre o que fazemos e o que essa comunidade, que se autodenomina “do bem”, pode produzir: nós propomos a reflexão, ela, a destruição. Para refletir, é necessário investir no tempo, contextualizar as informações, estar comprometido com o outro; para destruir, basta apertar uma tecla.

Vittoria Matarrese, criadora do festival “Do disturb”, assistiu à obra no primeiro dia de apresentação e também participou, manipulando o corpo do artista:

– Coloquei esta performance no festival porque a considero muito bela. Não foi para dar uma resposta à polêmica, nem para criar uma outra. É uma linda performance que fala de escultura, de corpo, do que é a matéria criativa, e este projeto tinha todo sentido para “Do disturb”.

Foi a brasileira Sandra Hegedüs, residente em Paris, colecionadora de arte e fundadora do SAM Art Projects, que falou de “La bête” para a curadora.

– Aqui em Paris, a obra do Wagner retornou para o lugar onde deveria ter ficado. Arrastaram a proposta dele para um lugar imundo e indecente no Brasil. Fiquei muito triste e indignada com o que aconteceu lá. A nudez não é mais uma questão.

A atriz portuguesa Maria de Medeiros também esteve no Palais de Tokyo para assistir à apresentação, e partilha o mesmo sentimento:

– Levaram esta obra para um terreno que não lhe corresponde em absoluto. Sujaram o que é limpo. Achei lindíssima a performance. Ele é magnífico, uma estátua de carne, as posições são belíssimas, e manipular, brincar com o corpo humano restitui toda a pureza do gesto.

“Não foi um processo simples entender que criaram um outro Wagner – artista, pessoa -, e atacaram essa figura midiaticamente”.

Numa das apresentações, na plateia estava uma criança, acompanhada de seus pais. A menina assistia e, por vezes, imitava no chão a coreografia formada pelo corpo do artista nas manipulações. Em Paris, o público recebia, ao entrar na sala da performance, uma cópia da entrevista de Schwartz concedida à jornalista Eliane Brum, do “El País”, na qual se exprime sobre a polêmica.

Entre os espectadores, a francesa Anne Mazon, 40 anos, apreciou a iniciativa:

– Gostei de ter recebido a entrevista, dá uma dimensão suplementar à obra. Vemos o contraste entre a violência que ocorreu e a performance, que é extremamente poética, suave, nada sexualizada. Com este texto, é quase uma performance na performance.

Frédéric, 38 anos, disse não entender a turbulência em torno da obra:

– Após ter assistido, estou chocado com o que ocorreu no Brasil. O artista é passivo, nada faz, são as pessoas que vêm tocar e mexer nele. É ridícula esta polêmica. Mas as pessoas acabam destruindo tudo na internet.

Após as apresentações parisienses de “La bête”, Wagner Schwartz se reapropriou da própria obra, numa trajetória confessadamente difícil:

– Não foi um processo simples entender que criaram um outro Wagner – artista, pessoa -, e atacaram essa figura midiaticamente. Mesmo sabendo que esse personagem, acusado de portar um dos piores transtornos, não existe, foi meu rosto que deram a ele, como também, ao meu trabalho. É deprimente tornar-se símbolo de um processo político desonesto que visa eleger seus candidatos a partir da caricaturarização bárbara de um artista.

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