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Manifestantes pedem transição na Argélia, mas militares mantêm o poder

Protestos no país já duram mais de quatro meses.© Ramzi Boudina/Reuters

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Nesta terça-feira, 9 de julho, se encerra o prazo de 90 dias legais do governo interino da Argélia instituído após a queda do presidente Abdelaziz Bouteflika. As manifestações de rua que forçaram a renúncia do líder que permaneceu 20 anos no poder – e aspirava a um quinto mandato -, no entanto, não cessam há quatro meses, firmes em sua reivindicação por um processo de transição transparente e independente, sem a onipresente interferência do Exército e de representantes do antigo regime, que ainda controlam o sistema.

A crise política levou o país a um impasse até agora insolúvel, em uma queda de braço entre o status quo e os movimentos de protesto, na esperança de uma abertura de negociações para uma real mudança e no temor de um endurecimento da repressão. Seja qual for o desfecho, especialistas asseguram que a Argélia nunca mais será a mesma depois da inédita rebelião que abalou a estrutura de poder e persiste em várias cidades do país.

Desde 22 de fevereiro, milhares de argelinos saem às ruas nas sextas-feiras gritando “Yetnahaw gaâ!” (que eles partam todos!), em uma referência aos militares e líderes do governo. Para a socióloga Amele Boubekeur, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS, na sigla em francês), o Hirka (movimento), como ficou conhecido o protesto da sociedade civil, é uma rebelião de massa que “se instala de maneira duradoura no imaginário e na vida cotidiana dos argelinos”, com novas referências políticas. Ao mesmo tempo, o país ilustra a expressão “o velho que não quer passar e o novo que não quer chegar”, do filósofo alemão Ernst Bloch (1885-1977):

– É uma situação paradoxal, pois não se pode considerar que a transição começou, embora sejam mobilizações extraordinárias pelo fim de um sistema. Ainda não há uma dinâmica de negociação real entre o poder atual e o movimento de massa. Por um lado, o que não se conseguiu fazer em cinquenta ou sessenta anos, ou seja, forçar o regime a se reestruturar sob a pressão da rua, os manifestantes obtiveram em quatro meses. Mas não se pode dizer que conseguiram mudar a distribuição do poder político na Argélia – avalia em entrevista ao Globo, da capital Argel.

No governo provisório formado pelo presidente interino Abdelkader Bensalah e o primeiro-ministro Noureddine Bedoui, quem realmente manda é o general Ahmed Gaïd Salah, 79 anos, chefe do Estado-Maior do Exército Nacional Popular. É o único interlocutor do poder com os manifestantes, intransigente na defesa dos “fundamentos do Estado nacional argelino” e avesso à profundas mudanças de governança.

– O Exército foi quem declarou Bouteflika incapaz de governar e nunca perdeu o controle – diz Boubekeur. – Nunca desapareceu, governava por trás de uma fachada de democracia civil. E essa ficção caiu por terra com a saída de Bouteflika e a dificuldade do regime em impor um sucessor. Há um risco de repressão, e ao mesmo tempo não se deseja que a situação se torne violenta e possa também ameaçar a estabilidade política e econômica da região, em que a Argélia é um pilar do equilíbrio geopolítico.

Gaïd Salah deflagrou uma “operação mãos limpas”, com uma onda de prisões de importantes empresários, ex-ministros e dirigentes políticos ligados ao regime de Bouteflika. Não escaparam nem Saïd Bouteflika, irmão e ex-conselheiro do presidente deposto, ou os generais Toufik e Tartag, ex-patrões do serviço secreto. As detenções, no entanto, não arrefeceram o ânimo das ruas. Para Boubekeur, o Exército aproveitou para se desvencilhar do núcleo duro do antigo governo, e os manifestantes perceberam a camuflada estratégia:

– Todos que foram presos tinham, antes, a benção dos militares. Se trata mais de uma forma de concentrar o poder em torno do Exército do que de uma real vontade de mudança e de lutar contra a corrupção. O Exército não propôs nada concreto para sair da crise e altera ameaças e apelos ao diálogo.

No campo oposto, até agora não ocorreu uma união de combates da sociedade civil com os partidos de oposição, “cooptados e neutralizados em seu potencial de contestação por Bouteflika e completamente ultrapassados pela dinâmica das manifestações”, segundo Boubekeur. Para Brahim Oumansour, do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (IRIS, na sigla em francês), há décadas a população argelina perdeu a confiança na classe política como um todo.

– Os partidos de oposição terão de redobrar esforços e engenhosidade para reverter este quadro, e não será algo feito em alguns meses. Os manifestantes estão se organizando em encontros e discussões, mas em uma perspectiva mais de proposições do que representatividade. O que poderá fragilizar a mobilização é o fato de que, no momento, não se vê emergir uma estruturação de novos partidos ou conjuntos mais amplos, capazes de terem uma visibilidade ou uma legitimidade nacional.

Três grupos no seio do Hirak, reunindo cerca de 70 associações e ONGs, alcançaram um consenso em torno de uma agenda comum para o futuro político imediato do país. Entre as propostas estão a adoção de um período de transição de seis meses a um ano, liderado por uma comissão ad hoc integrada por nomes nacionais aceitos pelo movimento popular, e a eleição de uma Assembleia Constituinte – a exemplo do que foi feito na Tunísia, em 2011, no rastro da Primavera Árabe. Sobre a mesa, está também em debate a possibilidade de uma eleição presidencial em curto prazo – o pleito inicialmente previsto para 4 de julho foi cancelado pelo Conselho Constitucional, que impugnou as candidaturas apresentadas. Como condição para o diálogo, o Hirak exige a liberação de manifestantes detidos durante os protestos, considerados como “prisioneiros políticos”. No documento final do encontro é afirmada a necessidade de “acelerar o início de uma transição democrática pacífica em função de um processo eleitoral que concretize a ruptura com o sistema ditatorial e corrupto e garanta a construção de instituições legítimas e confiáveis”.

Por enquanto, a dificuldade em entabular negociações abre a via para diferentes cenários. Manifestantes temem, inclusive, uma solução egípcia na forma de uma contrarrevolução, diz Oumansour:

– Há ambiguidade no discurso de Gaïd Salah, que se declara mediador e também cria dúvidas em relação as suas reais intenções. Enquanto não forem dadas garantias concretas que possam assegurar neutralidade e equidade nas eleições, nenhuma solução poderá federar a população, que permanecerá nas ruas e poderá perenizar o atual bloqueio. O problema é que esse impasse, acrescido do vazio político e constitucional no pós 9 de julho, aumenta o clima de incertezas. E prolongar essa situação é assumir o risco de agravar a situação econômica do país e gerar crises sociais. Tudo se resume a quem vencerá o jogo da pressão e do tempo.

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