FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – A revolta dos coletes amarelos na França, em manifestações pelo país desde novembro, obrigou o presidente Emmanuel Macron a alterar seu método de governança. Saiu o presidente jupiteriano que se reivindicava como o mestre do tempo e dizia que manteria seu ritmo de reformas a todo custo, em uma forma de governar sem os vícios do passado e acima das pautas da mídia. Encurralado pelas ruas e de olho nas eleições europeias, assumiu o líder que, de mangas arregaçadas, têm feito maratonas de debates com prefeitos ou estudantes em discursos de tom conciliador, em uma tentativa de se desvencilhar da imagem arrogante de “presidente dos ricos” que lhe colou desde seus primeiros meses no poder. Para analistas, o novo estilo presidencial contribui para estancar sua queda de popularidade, mas a sobrevivência do governo Macron dependerá das consequências práticas da consulta popular nacional lançada pelo governo, com término em 15 de março, e dos resultados das urnas no pleito para o Parlamento Europeu, em 26 de maio.
Além dos debates, Macron tem multiplicado encontros com lideranças partidárias e da sociedade civil. Alterações foram promovidas em sua equipe no Palácio do Eliseu: a saída de colaboradores de longa data deu lugar à chegada de outros nomes para criar uma nova dinâmica na Presidência. Antes um rigoroso crítico dos frequentes encontros de seu antecessor, François Hollande, com jornalistas, mudou de ideia: recentemente, convidou seis representantes da mídia para uma conversa de duas horas e meia em seu gabinete. Em seu forçado processo de mutação, chegou mesmo a ensaiar um mea-culpa por suas constantes frases de efeito, percebidas como um desprezo à população, que tanto prejudicaram sua imagem.
Para Bruno Cautrès, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), Macron procura, sobretudo, ganhar tempo:
— Ele gere a urgência para ocupar terreno, obter novas margens de popularidade e depois prosseguir com suas reformas, não penso que fundamentalmente vá alterar seu programa. Há uma real estratégia em relação à comunicação, na tentativa de reinventar um novo Emmanuel Macron junto à opinião pública. Nas reformas do primeiro período de seu governo, venceu a oposição dos sindicalistas da CGT e os funcionários da SNCF (estatal ferroviária), mas os coletes amarelos o colocaram de joelhos. Nesta crise, perdeu sua invencibilidade.
Risco de aliança à italiana
O analista político Romain Lachat vê, igualmente, mais uma mudança de timing, de método e de tom do que de rumos de governo.
— Concessões foram feitas e medidas adotadas para tentar frear as reivindicações no seio dos coletes amarelos, mas não se tem a impressão que Macron tenha decidido aplicar uma política fundamentalmente diferente. No começo do movimento, ele brilhou por sua ausência, demorou muito para mostrar que levava a sério as demandas. Hoje, procura mostrar uma nova imagem, mais à escuta, mais humilde, para mudar a má percepção do início, mas bastará uma nova escorregada para tudo desmoronar novamente.
Na sondagem feita na semana passada pelo Instituto Elab, pela primeira vez uma maioria de franceses entrevistados, 56%, afirmou que os coletes amarelos deveriam cessar sua mobilização, e 64% estimaram que as manifestações aos sábados se tornaram distantes das reivindicações iniciais do movimento. O chamado Grande Debate, principal instrumento do governo para esvaziar os protestos, já organizou mais de 2.500 reuniões no país e seu site internet recolheu cerca de 850 mil sugestões, feitas por 320 mil inscritos. A oposição não perdeu tempo em acusar o presidente de usar os encontros como palco de campanha para as eleições europeias.
Para Cautrès, parte do sucesso de Macron dependerá da forma como serão hierarquizadas as proposições dos franceses no Grande Debate, onde tem emergido, principalmente, questões sobre justiça fiscal e a adoção do Referendo de Iniciativa Cidadã (RIC).
— Estive em muitos dos debates. Há muitos pedidos de retorno do Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna (ISF). E se Macron disser que o RIC será utilizado apenas em nível local, não bastará. Ele adota, hoje, uma estratégia de curto prazo, que nada nos diz sobre como terminará seu mandato e o que poderá propor aos franceses nas eleições presidenciais de 2022. Mas ainda é muito cedo para afirmar se terá condições reais de se recandidatar.
Os dois últimos presidentes franceses não conseguiram emplacar um segundo mandato: o conservador Nicolas Sarkozy fracassou nas urnas e o socialista François Hollande nem ousou entrar na disputa. No horizonte próximo, as consequências desta crise poderão ser verificadas após as eleições europeias de maio, cruciais, segundo ele, para o futuro do atual governo e com impacto no pleito de 2022.
– No momento, a Reunião Nacional (RN), a extrema direita de Marine Le Pen, é o receptáculo de muitas das tensões relacionadas a Macron. A chave da vida política na França, hoje, é a escolha que fará a direita para 2022. Há sinais de uma possível solução à italiana, com uma aliança das direitas conservadora e nacionalista. Mas se a República em Marcha (LREM, partido do governo) vencer o pleito europeu, aumentam as margens de manobra de Macron para 2022.
Alívio nas pesquisas
Para o analista Nicolas Sauger, exceto uma surpresa, a Reunião Nacional ocupará as primeiras posições nas eleições europeias, dificultando os planos presidenciais:
— A porta da extrema direita já está amplamente aberta. Há questões que inquietam a sociedade francesa, como a imigração, o desemprego, as desigualdades sociais e o meio ambiente, e para as quais, para uma parte da população, Macron não propôs respostas convincentes. Há uma forte fragmentação das oposições, e não existe, hoje, uma alternativa concreta, suficientemente confiável, para apaziguar o jogo político. Isso é ao mesmo tempo uma vantagem e a principal dificuldade de Macron — avalia.
Segundo pesquisa do Instituto Ifop, a RN foi apontada como a principal força de oposição no país (38%), à frente da esquerda radical da França Insubmissa (31%) e da direita tradicional de Os Republicanos (19%). Na mesma sondagem, o índice de aprovação do presidente alcançou 34% neste início de fevereiro, mesmo nível de outubro de 2018 (33%) — antes do surgimento dos coletes amarelos —, contra 64% de desaprovação. Em dezembro, sua popularidade era de apenas 23%.
Cautrès acredita, no entanto, que as tentativas de Macron de criar um novo estilo e de se atribuir o crédito do Grande Debate como uma iniciativa espontânea de concessão da palavra à população não vingarão.
— A população faz a diferença entre os coletes amarelos e os vândalos que quebram tudo. E bem mais do que as imagens de violência das manifestações, está enraizada na opinião pública a ideia de que as mudanças de atitude e o debate nacional só ocorreram porque houve uma crise importante que o presidente tardou em reconhecer. E isso poderá sempre rebater negativamente em Macron
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“JÁ COLOCAMOS MACRON DE JOELHO, AGORA TEMOS DE DERRUBÁ-LO”, diz líder colete amarelo
PARIS – O advogado François Boulo, 32 anos, se tornou nas últimas semanas um dos expoentes do movimento dos coletes amarelos, reputado por suas intervenções de tom mais didático e menos belicosas em relação aos discursos de outros líderes do movimento. Desde novembro, o movimento realiza manifestações semanais, que começaram contra uma taxa nos combustíveis mas acabaram por concentrar a insatisfação dos franceses. “Hoje, estamos numa relação de forças políticas para tentar deter o quinquênio de Macron e evitar que quebre ainda mais o país, que faça a reforma da aposentadoria, mude o seguro-desemprego ou continue com as privatizações. Nosso objetivo é obter medidas concretas que melhorem a vida das pessoas”, disse Boulo ao GLOBO.
Como explica o movimento dos coletes amarelos?
Na minha prática profissional, já notava a cólera surda que crescia. Quando vi o movimento emergir por causa da taxa do combustível, logo notei que ultrapassava amplamente esse contexto, abraçando dois temas fundamentais: as injustiças fiscal e social. Há uma distribuição das riquezas totalmente desigual, que se faz em proveito do 1% da população mais rica. O corolário é a crise de representatividade, pois se chegamos a esse ponto é porque nossos parlamentares não fizeram corretamente o trabalho há 45 anos. É o momento de haver uma intervenção direta do povo na democracia para corrigir isso.
As manifestações vão continuar?
Não sei. O problema é que o Poder Executivo utilizou voluntariamente a estratégia do caos. Por meio das ordens que deram às forças de segurança, encorajaram as violências. E jogaram lenha na fogueira ao qualificar os coletes amarelos de multidão raivosa. Irritaram as pessoas para estimular violência, criar o caos, o medo, e dissuadir as pessoas de se manifestarem. A questão é permitir ao máximo possível de pessoas de se mobilizar, de forma pacífica e segura, e vamos trabalhar nisso nos próximos dias e semanas.
Segundo as pesquisas, crescem os descontentes com as repetidas violências aos sábados…
É preciso diferenciar. Em relação às reivindicações, segundo as sondagens, entre 75% e 80% das pessoas aprovam, hoje, o movimento. A porcentagem baixa, é verdade, em relação às ações, pois ninguém quer ver violência. Mas sobre a legitimidade do movimento, a aprovação é alta.
Você aprova o Grande Debate?
De maneira nenhuma. Basta ter uma abordagem racional. Macron já descartou as reivindicações dos coletes amarelos. Não quer questionar os dispositivos fiscais e anunciou que terá de reduzir os serviços públicos. Quem vai pagar por isso serão sempre os mesmos, e não serão os ricos. A ideia é amplificar ainda mais a relação de forças. Mesmo que Macron esteja bastante fragilizado, ele quer continuar. Já o colocamos de joelho, agora temos de derrubá-lo. Ele é o último representante da política que conhecemos há décadas. Só os ingênuos acreditaram que era alguém novo. Houve uma propaganda midiática para vendê-lo como um jovem dinâmico antissistema, mas ele é a própria encarnação do sistema.
Os coletes amarelos devem se organizar politicamente?
Já indiquei ser contra e que não serve a nada concorrer nas eleições europeias de maio. Estruturar um movimento político coordenado a partir de manifestações começadas nas rotatórias é uma tarefa imensa. Para as demais eleições, veremos quando chegar o momento. Hoje, estamos numa relação de forças políticas para tentar deter o quinquênio de Macron e evitar que quebre ainda mais o país, que faça a reforma da aposentadoria, mude o seguro-desemprego ou continue com as privatizações. Nosso objetivo é obter medidas concretas que melhorem a vida das pessoas.
Você acredita nas mudanças de atitude de Macron?
É só comunicação. Ele continua com suas pequenas frases, possui o desprezo de classe, é algo quase genético. Eu predizia que a França sairia à rua porque ele reforçaria a política das desigualdades que conhecemos há décadas e iria acrescentar a arrogância da juventude — não tinha nenhuma experiência política e sempre considera ter razão —, com desprezo e insultos. Um presidente que insulta seu povo de “gauleses refratários”, “basta atravessar a rua para achar um emprego”, isso é delírio. Forçosamente, isso provocou cólera nas pessoas.
É a favor da Europa?
Sou a favor da ideia da União Europeia, mas estes tratados atuais são tóxicos, fixam uma política econômica que nos condena à austeridade, à quebra dos serviços públicos e ao aumento das desigualdades. Não podemos continuar assim. Sou por uma Europa que funcione para o povo e não para grupos, lobbies e acionários. Se isso não for possível, então que saiamos da UE.
Como responde às críticas de que o movimento se tornou um imenso buraco que aspira racistas, antissemitas, xenófobos ou homofóbicos?
Vista sua enorme capacidade de federar, evidentemente que no movimento se vê todo o povo francês. Pode-se encontrar antissemitas, homofóbicos, é a imagem da sociedade francesa, que inclui pessoas com ideias condenáveis, mas que são minorias.
Qual é sua tendência política?
Para mim, a clivagem esquerda-direita não existe mais. Foi totalmente esvaziada de seu conteúdo pelos tratados europeus. Hoje, estamos numa clivagem entre globalistas e soberanistas. E por trás do termo soberanista, contrariamente à caricatura que se faz na França, existe a democracia. De Gaulle dizia que a democracia se confunde com a soberania nacional. É preciso que o Estado seja soberano para que a democracia seja exercida plenamente.
Você aprovou o encontro de coletes amarelos com o vice-premier e líder nacionalista italiano Luigi Di Maio?
Os italianos, ao menos, buscam questionar os tratados europeus e o poder da Comissão Europeia. Nisso, estou de acordo. Mas não é porque você concorda com uma proposição que aprova todo o restante do corpo ideológico.