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Jogadores franceses campeões do mundo relembram final da Copa de 98 contra o Brasil

Zidane, camisa 10, faz o primeiro gol da vitória da França sobre o Brasil na final da Copa de 1998. ©Luca Bruno/AP

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Na manhã da véspera da grande final do Mundial de 1998 entre a França de Zinedine Zidane, a anfitriã, e o Brasil de Ronaldo Fenômeno, o temido visitante, na caminhada após o ritual do “despertar muscular”, os quatro defensores dos Bleus, Marcel Desailly, Franck Leboeuf, Bixente Lizarazu e Lilian Thuram, se reuniram à parte para conversar sobre a partida.

– Tentávamos permanecer o mais tranquilo possível e brincar – relembra Thuram. – Quando não se tem muita experiência, na ansiedade se acaba jogando toda a partida um dia antes, algo que não se deve fazer. Então, resolvemos relaxar. Nos dizíamos como faríamos para marcar Ronaldo. Como Franck Leboeuf (que substituía o titular Laurent Blanc, suspenso) ia jogar a final, falamos para ele: “De qualquer maneira, veja só, Ronaldo faz jogo de pernas à direita, à esquerda, e, de repente, a bola desaparece!” (risos). Ele era um mágico, o melhor jogador do mundo, e o mais perigoso da equipe do Brasil.

A magia, no entanto, atuou contra o Brasil, e foi o próprio Ronaldo que desapareceu na final disputada em 12 de julho, no Stade France, vencida por 3 a 0 pelos donos da casa, campeões do mundo pela primeira vez. O episódio, recontado milhares de vezes, deflagrou as mais diversas e mirabolantes teorias conspiratórias, e até hoje ainda mantém uma aura de mistério: Ronaldo sofreu uma convulsão horas antes da partida; foi levado para uma clínica parisiense enquanto a delegação brasileira seguia para o estádio; após exames, nada foi constatado de anormal pelos médicos franceses; em conversa com o técnico Zagallo, o jogador se disse apto e insistiu em jogar a final. Quem, até então, de nada sabia, estranhou o fato de que na lista da escalação brasileira divulgada pouco mais de uma hora antes do apito inicial, Ronaldo era o grande ausente. No seu lugar, aparecia o nome do atacante Edmundo. Meia hora antes de a partida começar, o Fenômeno foi confirmado como titular, mas acabou tendo uma atuação apática em campo.

Os jogadores franceses estavam na mesma ignorância da torcida e da mídia em relação ao que se passava nos bastidores do time brasileiro.

Entramos no vestiário e estávamos nos preparando, quando circula uma informação dizendo que Ronaldo não iria jogar – conta Thuram. – Não demos muita atenção para isso, pois poderia ser um blefe. Já no túnel, vejo os brasileiros que se dão as mãos para entrar em campo, e entre eles está Ronaldo. Ali, nos demos conta de que era realmente um blefe. Mesmo assim, eu me dizia: “De qualquer maneira, impossível que eles nos ganhem; eles são onze, nós somos milhões”. Só após a partida soubemos que Ronaldo sofrera algo.

Para Thuram, o fato de os jogadores brasileiros terem consciência de problemas com seu principal craque obrigatoriamente fragiliza a equipe.

– Acredito que para o Brasil era bastante difícil. Isso é algo que quem não é jogador não pode entender. Não se tem a mesma concentração depois de algo assim. E com jogadores preocupados, atrapalha. Se Ronaldo estivesse em plena forma, seria bem mais complicado para nós. Estou persuadido que isso afetou a equipe do Brasil. Tivemos sorte. Mas, por outro lado, o que também complicava para os brasileiros era que tínhamos uma equipe de alto nível. Em cada posição, havia jogadores que eram líderes em seus respectivos clubes. E, além do mais, jogávamos na França.

O enigma Ronaldo na final de 98 diante da comemoração dos franceses. ©Reuters

Já o zagueiro Marcel Desailly relativiza a importância do caso Ronaldo no resultado da final:

– Foi lamentável o que ocorreu, havia muita pressão sobre ele. Mas nós estávamos concentrados no nosso canto, e não queríamos saber de nada. Também tínhamos Djorkaeff que não estava muito bem. Não é o que aconteceu com Ronaldo que ficará para a História, mas sim que ganhamos a Copa do Mundo contra o Brasil. E se havia alguém do outro lado com um problema no joelho, na cabeça ou com uma dor de barriga, isso não nos dizia respeito. Não podemos saber se Ronaldo estivesse a 100% o Brasil ganharia, a História está feita. Para nós, isso resta, como se diz em francês, uma anedota na nossa vitória.

Para Desailly, o Brasil era mais forte do que a França em 1998. Mas, ressalta, havia uma densa certeza de vitória na equipe do técnico Aimé Jacquet.

– Brasil, Argentina e Holanda eram melhores do que nós naquele momento. Mas o fato de jogarmos na França, em Paris, no nosso estádio inaugurado em janeiro, nos dava uma enorme confiança. Não podíamos imaginar passar ao lado disso. Estávamos no hotel quando soubemos que jogaríamos a final contra o Brasil, e mesmo essa hora não nos deu medo. Na nossa cabeça, o projeto de ganhar a Copa do Mundo na França era maior do que tudo. Não imaginávamos um outro cenário.

Segundo ele, após a vitória no nervoso jogo contra a Croácia na semifinal, os jogadores franceses já se viam campeões do mundo. Um sentimento que só foi crescendo:

– Colocamos de lado família, filhos, éramos nós. Estávamos em casa, nada poderia nos acontecer. Por isso, imagino como deve ter sido terrível para os brasileiros a derrota na semifinal de 2014, e também na final de 1950. Vocês perderam em casa, mas ganharam bastante fora (risos).

Além da segurança interior, Desailly destaca o amadurecimento do plantel francês da época:

– Éramos jogadores de certa experiência. Eu tinha 29 anos, estava no auge da minha carreira no Milan AC. Meus companheiros jogavam na Juventus de Turim, na Inter de Milão, no Bayern de Munique, clubes que estavam no ápice nos anos 1990. Éramos conscientes de nossas capacidades. E tínhamos uma força ofensiva muito consistente, e um bloco coletivo defensivo realmente fantástico – diz, sem modéstia.

Em meio aos preparativos para o Mundial, Aimé Jacquet era um treinador desacreditado pelo torcedor e severamente criticado por parte da imprensa francesa (o que levou inclusive, mais tarde, o jornal “L’Équipe” a fazer um editorial de mea-culpa), mas nem isso abalava o mantra da vitória impregnado no espírito dos Bleus.

– Nós sabíamos avaliar o nosso coletivo – diz Thuram. – Em 1998, desde o início tínhamos o sentimento de que poderíamos vencer. Fazia parte do jogo midiático criar dúvidas, mas eu não lia os jornais esportivos, não estava sabendo o que estava acontecendo. Só depois fui tomar conhecimento dos problemas de Aimé Jacquet com a imprensa. Na minha opinião, o importante é não ferir pessoalmente, e acredito que no caso de Jacquet eles foram um pouco longe demais.

Para o técnico, existia a convicção da possibilidade de sucesso, mas uma certeza de vitória emergiu no embate das quartas de final contra a Itália, vencido na cobrança de pênaltis. Ali, pensou: “Vamos até o fim”. Na preleção aos jogadores, horas antes da decisão, ainda na concentração em Clairefontaine, desafiou o ânimo de sua equipe: “Vocês estão com medo de quê? Não podem ter medo. Não podem pensar que o Brasil é superior. O Brasil é um time diletante”.

Antes do início do Mundial, Juste Fontaine, recordista de gols em uma só Copa do Mundo, com 13 bolas no fundo das redes em 1958, na Suécia, havia dito que a seleção brasileira de 1998 era, por vezes, demasiado “descontraída”, e “se desconcentrava, cometendo erros na defesa”. Desailly recorda das palavras de Aimé Jacquet no pré-jogo:

– Ele nos explicou que os brasileiros eram um pouco relapsos nas bolas paradas. E nos aproveitamos disso. Zidane marcou duas vezes assim, exatamente nos casos em que os brasileiros não marcavam muito bem. Roberto Carlos, Leonardo, Dunga, Rivaldo não eram muito bons no homem a homem das bolas paradas.

Segundo ele, taticamente, Jacquet colocou Karembeu para bloquear Ronaldo. Pediu a Didier Deschamps ficasse atento em Rivaldo, e a Zidane para permanecer na zona de Dunga.

– Quando Dunga estava no meio, numa ação ofensiva, tinha dificuldade em retornar. Era lento, e deveríamos nos aproveitar dessas oportunidades.

Quando criança, nas simulações de Copas do Mundo nas peladas nas ruas de Guadalupe, sua terra natal, Thuram diz que jogava sempre pelo time do Brasil, e não pela França. E disputar a final sonhada, tanto pelos jogadores como pelo público, acrescentava um ingrediente especial:

– Eu sou antilhano, tínhamos essa coisa com o Brasil. E na hora do hino francês, sabíamos que teríamos de sofrer no gramado, mas não poderíamos sair sem a vitória. No futebol, é melhor ter certezas, é preciso visualizar a vitória, mesmo sabendo que seria complicado.

Segundos antes do chute inicial, no banco de reservas francês, o goleiro Bernard Lama levantou sua camiseta e mostra para o público, inscrito na malha que vestia por baixo, duas datas, « 1848-1998 », uma referência ao 150° aniversário da abolição da escravidão na França. Thuram, que após sua aposentadoria do futebol se tornou um militante da causa contra o racismo aprovou a ousada iniciativa:

– Eram temas sobre os quais conversávamos com frequência, mas no dia do jogo não sabia que ele faria aquilo. Foi uma excelente ideia, acho que é importante passar mensagens. É preciso compreender a História para entender as complexidades de hoje. Mas tem quem que não queira saber, talvez porque tenha algo a se censurar.

A política se convidou no jogo também por meio do então líder da extrema-direita francesa, Jean-Marie Le Pen, que não apreciara certas passagens do currículo dos jogadores da equipe nacional. Zinedine Zidane, por exemplo, estrela maior da equipe e carrasco da final contra o Brasil, tem um pé na Kabyle, região de uma minoria argelina, e cresceu nos bairros árabes de Marselha. “É uma vergonha, a maioria deles não sabe nem cantar o hino da França”, criticou o mandarim direitista.

Num registro mais folclórico, o então presidente francês, Jacques Chirac, deixou sua marca na final ao ser filmado durante o anúncio da escalação francesa pelo sistema de som do Stade de France. A cada nome pronunciado pelo locutor, o público completava, com entusiasmo, o sobrenome. O presidente, no entanto, sem saber os nomes dos jogadores, fingia a pronúncia, numa imagem hoje lembrada com bom humor pelos franceses.

A predição de Aimé Jacquet se concretizou: o primeiro tempo terminou com 2 a 0 para os franceses, dois gols de cabeça de Zidane originados de bola parada. No intervalo da decisão, nos vestiários da seleção da França, a imagem exibe os jogadores, suados, relaxando na grande peça principal. Fora de quadro, pode-se ouvir, em off, a voz incrédula e monocórdia de um deles: “Dois a zero… dois a zero… dois a zero no primeiro tempo. Dois a zero no primeiro tempo”. Essa é uma das imagens reveladas num documentário realizado por um canal de tevê francês sobre os bastidores da Copa. Aimé Jacquet lembrou de dizer que ao lado, vestiário brasileiro, « o clima de incredulidade deveria ser ainda muito maior ».

Thuram conta que, no intervalo da partida, cruzou com Desailly no banheiro do vestiário e disse: « É uma piada, estamos ganhando de dois a zero ».

– Você sonhar em ganhar a Copa do Mundo, e no meio tempo está este escore incrível. Tinha dificuldade em acreditar que faltava pouco para alcançarmos a vitória.

Para Desailly, a vantagem francesa perturbava a concentração dos jogadores para o segundo tempo da partida;

– Quando retornamos ao vestiário, nos dizíamos: « Ok, parece que está ganho, agora é preciso ficar com os pés no chão e que cada um de nós continue a se esforçar ». Mas em cada uma de nossas cabeças, a partida estava ganha. Eu estava ao lado de Deschamps, e disse: « Está feito para nós, Didier ». Ganhando de dois a zero, em casa, sabendo de nossa força coletiva e defensiva, não víamos como o Brasil poderia reverter o placar.

Segundo ele, Aimé Jacquet deixou os jogadores conversando entre si, e nos últimos três minutos antes de voltarem ao gramado para a etapa final da partida, se dirigiu a todos:

– Ele estava um pouco bravo conosco, porque estávamos todos contentes, e nos deu um tipo de eletrochoque. Nos fez voltar à realidade, e lembrou dos detalhes táticos que havia aplicado no primeiro tempo.

Os franceses mantinham o placar no segundo tempo, quando, aos 23 minutos, Desailly leva o segundo cartão amarelo por uma falta sobre Cafu, e é expulso de campo.

– Isso mexeu com um pouco conosco – admite ele. – Dez contra onze não é evidente. Por isso que, quando levei o segundo cartão amarelo, não quis criar confusão. Desde que vi o vermelho, saí logo de campo para permitir aos meus que meus companheiros se preparassem, e que o treinador redefinisse seu esquema tático para os minutos que ainda restavam. Ronaldo teve uma ocasião logo depois, e se o Brasil tivesse marcado, creio que estaríamos em dificuldade.

Mesmo com um jogador a menos, Thuram confiava no desempenho da equipe, que terminou o Mundial com a melhor defesa (apenas dois gols sofridos) e o melhor ataque (15 gols marcados):

– Já ganhávamos de dois a zero, e havia muita experiência dentro de campo. Cada um de nós já tinha vivido jogos com dez jogadores. E não é porque se está com dez que é fácil de marcar. Por vezes é, inclusive, até mais complicado.

O golpe de misericórdia veio pelos pés de Emmanuel Petit, aos 45 minutos do segundo tempo: 3 a 0. Ao final da partida, Thuram correu para comemorar com seus amigos de infância, com quem jogava em Guadalupe, e que estavam nas tribunas do estádio.

– Era uma piada da vida. Parecia que não era a mesma Copa do Mundo que assistia quando era criança, vendo Platini, Maradona. Era algo tão improvável. Era apenas incrível. No vestiário, era a loucura. Cantávamos, dançávamos. Era algo surrealista.

Zidane segura a taça de campeão, com Marcel Desailly ao seu lado (dir.). ©AP

Após a celebração no vestiário, os campeões do mundo rumaram direto para a concentração da seleção, em Clairefontaine. Em Paris, uma multidão insone se recusava a deixar as ruas ou a calar os gritos de “Vive la France!”. Cerca de 1,5 milhão de torcedores cantavam a Marselhesa e festejaram até o amanhecer na avenida de Champs-Elysées.

– Não podíamos ir até Paris, era mesmo perigoso para nós – diz Desailly. – Voltamos de ônibus para o hotel, com nossas mulheres. Já tínhamos festejado bastante no estádio, jantamos, dançamos, mas estávamos cansados. Há uma foto minhas nas redes sociais, com a taça da Copa do Mundo nos meus braços, um charuto na boca, e a cara exausta. Às 2h30, fomos dormir. E sabíamos que no dia seguinte teríamos de pegar o ônibus para desfilar pela Champs-Elysées, que foi algo extraordinário.

Passada a euforia da conquista, nos anos que seguiram emergiram sinais de que a equipe de 1998 não era um grupo, mas um aglomerado de clãs. Por meio de entrevistas na mídia ou de livros autobiográficos, vários dos campeões do mundo multiplicaram estocadas entre si. Então dirigente da Liga Francesa de Futebol, Noël Le Graët, hoje presidente da Federação Francesa de Futebol, admitiu que “havia conflitos e tensões na época, mas eles permaneceram no interior do grupo”.

– Você pode discordar de pessoas, e não há nenhum problema nisso – contemporiza Thuram. – Tenho dois filhos, e muitas vezes não concordo com eles, mas isso não significa que não os ame. Numa equipe de futebol é igual. Você pode discordar de seus companheiros, mas não é por isso que existam problemas.

Querelas à parte, Thuram diz não pensar espontaneamente na final, mas o 12 de julho de 1998 acaba sempre retornando de alguma forma à sua vida.

– No absoluto, não é o jogo que volta, mas este sentimento de prazer que se pode ter. Pois sempre se vai encontrar alguém que vai te falar desta Copa do Mundo, e este prazer e bem-estar é bem presente, e não o jogo em si. É o clima do momento, porque as pessoas estavam contentes. É um sentimento que me acompanhará em toda minha vida, pois tive a chance de realizar um sonho.

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