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França, Itália e Alemanha: três diferentes destinos em relação à luta armada no período pós-maio de 68

Corpo do ex-primeiro-ministro Aldo Moro, sequestrado e assassinado pelas Brigadas Vermelhas na Itália. ©Reuters – 09/05/1978

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Na França, o período pós-maio de 68 não redundou na violência de organizações armadas como ocorreu na Alemanha e na Itália, refletida em sangrentas ações de grupos como Fração do Exército Vermelho (RAF, na sigla em alemão) – também conhecido como Baader-Meinhof – e Brigadas Vermelhas. Entre os numerosos atos violentos da RAF, está o sequestro e assassinato do empresário alemão Hanns Martin Schleyer, em 1977, que deflagrou o chamado Outono Alemão, marcado por uma série de atentados e execuções, no auge da luta do Estado contra o terrorismo de extrema-esquerda. Já os “anos de chumbo” italianos tiveram seu caso mais emblemático no rapto do ex-primeiro-ministro Aldo Moro, em 1978, que culminou em sua execução. Para o especialista de sociologia política das universidades de Lausanne e de Paris-Sorbonne, Olivier Fillieule, coautor de “Mudar o mundo, mudar de vida – pesquisa sobre os militantes dos anos 1968 na França” (ed. Actes Sud ), os contextos nacionais e políticos explicam as diferentes opções em relação ao uso da violência pelos três países.

Como você analisa a questão da violência no pós-68?

No caso da França, a grande diferença em relação à Itália e Alemanha tem a ver com a memória histórica. A Alemanha e a Itália conheceram o nazismo e o fascismo. Para os jovens alemães daquela época, era nítido que ex-quadros do nazismo ocupavam ainda postos no país. Estava-se ainda longe do trabalho de memória que seria feito depois. Se compreende porque estes jovens interpretam seu mundo como um momento em que se deve continuar a luta contra o nazismo e o fascismo, ainda presentes. Na França é diferente, houve o colaboracionismo, mas a Resistência venceu, e o general de Gaulle se tornou um mito. E assim é bem mais difícil de convencer os demais de que a França é um país onde o nazismo e o fascismo continuam a reinar.

Qual foi a posição dos grupos radicais na França em relação à violência?

Entre maio de 68 e o fim dos anos 1970, há uma forte agitação política na França, e os grupos de extrema-esquerda vão se autolimitar. Não há passagem à violência, exceto em casos muito restritos para grupos maoístas e a Esquerda Proletária (GP, na sigla em francês). Nas pesquisas que fizemos com os militantes de 1968 em cinco cidades, o recurso à violência é muito limitado à GP, que vai decidir depois (em 1973) de se autodissolver para, exatamente, evitar a passagem à ação armada. Quando entrevistamos ex-militantes da GP, muitos nos disseram que em dado momento, após os conflitos com as forças de polícia nas manifestações, uma ruptura operou em suas mentes. Ocorreu uma espécie de choque, e um desejo de parar. Houve esta autolimitação muito forte na França, por diferentes razões: não é a mesma história, não são as mesmas lembranças do nazismo e do fascismo, e também não é o mesmo apoio das populações, os grupos esquerdistas são relativamente isolados.

Quais as razões que levam à dissolução da GP?

Uma análise política é feita da situação, e se constata que, por um lado, o apoio da população não ocorreu. Eles não conseguiram entrar nas fábricas para mobilizar a classe operária. Os trabalhadores não foram convencidos pelas propostas destes militantes, em sua maioria oriundos da classe média, bastante distantes de seu universo. E a GP concluiu que a opção da violência clandestina poderia dar em nada, que não contribuiria a levantar a população. A ideia de base, no início, é fazer a revolução, derrubar o governo e instaurar um novo poder. E a conclusão é a de que sem que a classe trabalhadora acompanhe uma vanguarda esclarecida, não vale a pena tentar.

Como se configura a questão do apoio popular na Alemanha e na Itália?

Na Alemanha, o apoio popular à classe operária desaparece muito rápido, e os grupos militantes ficaram isolados, perderam o sentido da realidade, e passaram à violência, como no caso da RAF. Já na Itália, os movimentos que vão cair no terrorismo permanecem fortemente ancorados na população da classe trabalhadora. Os militantes da RAF são estudantes intelectualizados, que produzem textos elaborados, por vezes muito complicados, e não têm a mesma conexão com os trabalhadores estabelecida pelos ativistas italianos, muitas vezes originados do meio sindical, dos operários da Fiat.

Thorwald Proll, Horst Soehnlein, Andreas Baader and Gudrun Ensslin, da Fração do Exército Vermelho, ou grupo Baader Meinhof, esperam veredicto em um tribunal pelo incêndio de lojas de departamento em Frankfurt. © AFP- 31/10/1968

Há também uma diferença no papel dos partidos comunistas nos três países.

Em maio de 68, O Partido Comunista Francês (PCF) é, como todo mundo, surpreendido pelo que ocorre. No início, sua ideia é de que se trata apenas de uma revolta estudantil, de pequenos burgueses, que não lhe diz respeito. Como o movimento se estende às fábricas, com uma greve geral, o PCF vai atrás dos manifestantes. E vão jogar um outro jogo, tentar enquadrar os movimentos de greve. Neste momento, se tornarão ativos, e na assinatura dos Acordos de Grenelle, que determinam um aumento de 30% no salário mínimo, tiram proveito da situação. Nos anos que se seguem, se vai assistir a um jogo de gato e rato entre o PCF e os esquerdistas. Os comunistas tentarão barrar o caminho aos grupos esquerdistas.

E na Alemanha e na Itália?

Na Alemanha, não há partido comunista forte. Já na Itália, os comunistas são muito importantes no jogo político. Os movimentos esquerdistas são encurralados entre o poder, a Democracia Cristã, e o PCI, que é muito forte. A primeira questão para os esquerdistas italianos é estarem presentes nas fábricas, onde competiam com o PCI. Na Itália, a violência vai perdurar por muito tempo porque os grupos vão delirar menos do que na Alemanha, e permanecerão mais ancorados na vida real.

E em relação às diferentes correntes esquerdistas?

Há trotskistas e maoístas por todo lado. Tem-se a impressão de que os trotskistas são mais importantes, mas porque são os únicos que sobrevivem. No fim dos anos 1970, a maioria destes grupos se dissolve, e só dois permanecem até hoje sob forma de partido: a Liga Comunista Revolucionária (LCR) e a Luta Operária (LO), os dois trotskistas. Na França da década de 1970 existem movimentos anarquistas, mas pouco ativos. Eles passam seu tempo a discutir e elaborar teoricamente, mas são pouco presentes nas ruas e nos movimentos sociais. Não é o caso na Alemanha, onde o movimento anarquista é bem mais ativo e visível.

Em 1979, foi criado na França o grupo de extrema-esquerda Ação Direta (AD), que promoveu ações violentas.

A Ação Direta é o rabo do cometa, são militantes que se encontram em abandono. O socialista François Mitterrand se elege presidente em 1981, e a partir do ano seguinte, num governo que tem o apoio dos comunistas, implanta políticas de rigor e austeridade. Neste contexto, entra em ação a AD, quando percebe que o governo de esquerda vai fazer uma política de direita, com militantes que lamentam a não passagem à violência e se apoiam nos exemplos alemão e italiano. São pessoas que estimam que é preciso passar a um estágio superior, porque não há mais nenhuma via política possível. O assassinato do presidente da Renault, Georges Besse (em 1986), é o sinal desta desesperança. Se está mais na lógica de uma vingança desesperada do que em fazer avançar a revolução.

Não há apenas grupos de extrema-esquerda violentos, mas também da direita radical.

Sim, em todos estes anos há também uma extrema-direita, que estava numa situação complicada após a Segunda Guerra Mundial, e renasce neste momento, assumindo diferentes formas. Na Itália, se tem uma extrema-direita forte, sem dúvida apoiada pela CIA, com recursos. Há uma política muito proativa de grupos de extrema-direita italianos que procura desestabilizar o Estado provocando atentados. Existe o sentimento de uma guerra entre a extrema-esquerda e a extrema-direita no país. Na França, temos também uma extrema-direita que renasce, mas não pratica atentados como na Itália, pelo menos não na mesma escala. No caso da Alemanha, a extrema-direita é mais discreta, porque a filiação com o nazismo é complicada. Se vê, sobretudo, um conluio da extrema-direita com o poder, e a ideia de que o próprio Estado permaneceu nazista. Na Itália, existe a ideia de que a extrema-direita foi expulsa do poder e busca voltar. Na Alemanha, ela não deixou o poder. No coração do Estado, o nazismo ainda estaria presente, dormente, pronto a ressurgir.

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