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‘Desconfinados, mas não liberados’: franceses vivem seu primeiro dia sem quarentena total

Corredor livre pratica com a Torre Eiffel ao fundo, no primeiro dia de relaxamento das medidas de bloqueio na França. ©Philippe Lopez/AFP

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Após 55 dias confinados, os franceses recomeçaram a retornar às ruas nesta segunda-feira, em meio incertezas e estranhezas, e em uma vida bem diferente daquela que existia antes do surgimento da pandemia. “Desconfinados, mas não liberados”, em um novo regime de “semiliberdade”, eram definições de sentimentos emergidos neste primeiro dia de desconfinamento no país.

O uso de máscaras se tornou obrigatório nos transportes públicos, incluídos trens, metrôs e ônibus, sob pena de multa de € 135 a quem não obedecer. Os trens recomeçaram a circular com uma oferta inicial de 50% do tráfego normal, índice que sobe para 75% no metrô parisiense, que opera com 60 estações fechadas do total de 302.

Para Anne Sophie C., que reabriu hoje sua óptica, situada na Rua de Rennes, no centro de Paris, o maior temor do desconfinamento é o transporte público.

– Hoje, vim de carro. Mas não poderei vir sempre porque sai caro. O que mais me angustia não é a retomada do trabalho nem o contato com os clientes, mas o transporte. O governo pode muito bem dizer que que será o mais seguro possível, mas, como parisienses, sabemos que isso é impossível. Muitas pessoas não vão respeitar as regras de distanciamento. Hoje, ainda há muita gente em teletrabalho, mas em uma ou duas semanas isso vai diminuir.

Anne Sophie C., que reabriu hoje sua loja de óculos, brinca de “desinfetar” seu único funcionário, Thomas D. ©Fernando Eichenberg

Na reabertura da óptica, Anne Sophie estava acompanhada de seu único funcionário, Thomas D., mas a partir de amanhã a loja funcionará apenas com um atendente. Os clientes deverão agendar um horário pela internet e respeitar o uso obrigatório de máscaras no interior. Os óculos serão disponibilizados à clientela em uma bandeja, e após manuseio, desinfetados, sem retornarem imediatamente à prateleira. A gerente evita pensar no futuro:

– O que acontecer amanhã, faz parte do amanhã. Não me angustio com isso. Viver o presente já está de bom tamanho.

Em Paris, a prefeita Anne Hidalgo aplicou regras para evitar engarrafamentos, devido à previsão de um maior uso de veículos particulares em detrimento do transporte público, e estimular a circulação de bicicletas. Foram instalados estacionamentos extras nos limites da capital francesa, para quem vem do subúrbio e desejar deixar seu carro para usar o transporte público, a bicicleta compartilhada ou mesmo caminhar até o destino final. 50 quilômetros de ciclovias temporárias foram criadas na cidade. E o governo passou a oferecer € 50 de auxílio na reparação de bicicletas.

A Rua de Rivoli, que corta Paris de leste a oeste, das praças Concorde até Bastilha, foi bloqueada para o tráfego normal e liberada apenas para ônibus, táxis, bicicletas e veículos de entregas de mercadorias. A Prefeitura mantém como opção, após análise dos primeiros dias de desconfinamento, a imposição de um rodízio de circulação de carros na cidade.

Cédric E., analista financeiro, circulava de bicicleta pela rua de Rivoli rumo ao seu local de trabalho. Na mochila, garantia levar uma máscara, para colocar antes de entrar no escritório.

– Achei uma boa ideia a interdição do tráfego aqui na rua de Rivoli. Estou contente de poder sair novamente e pedalar livremente. No trabalho, vamos alternar uma semana em home office e, outra, no escritório. Difícil dizer se foi uma boa hora ou não de desconfinar. Em todo caso, é importante que se continue a manter os gestos de higiene e de distanciamento social.

Cédric E., analista financeiro, foi de bicicleta para o trabalho: máscara guardada na mochila para quando chegar no escritório. © Fernando Eichenberg

Para evitar o estrangulamento do tráfego, as empresas foram aconselhadas a manter, na medida do possível, o teletrabalho, e a alterar as escalas das jornadas, impedindo aglomerações em horários de pico nos transportes em comum.

Nadia Hamdi, atendente em uma loja Louis Vuitton, saía da estação de metrô Saint-Germain-des-Près mais tarde em relação aos seus horários habituais. A loja alterou os horários de abertura e fechamento, e passou a funcionar das 11h às 19h.

– Para mim, foi tranquilo, não havia muita gente no metrô. Meu trajeto dura cerca de 50 minutos, e as pessoas estavam respeitando as regras de distanciamento. Mas às 6h, parece que havia mais gente e foi mais complicado. Penso que o desconfinamento veio em boa hora, as pessoas estavam precisando sair e arejar um pouco as ideias.

Nadia Hamdi teve jornada trabalho com horário alterado. © Fernando Eichenberg

O número de pessoas no metrô hoje cedo pela manhã foi além do desejado pelas autoridades, provocando perigosas aglomerações. Tanto que a presidente da região Île-de-France (Paris e arredores), Valérie Pécresse, solicitou um incremento do fluxo de trens nas horas de rush já a partir de terça-feira.

Assentada na cadeira do salão de cabeleireiro Frédéric Dutertre, na rua de Verneuil, a face protegida por uma máscara, Pascale K. admite que arrumar o cabelo era sua prioridade na saída do quarentena.

– É uma felicidade poder fazer isso. Vim caminhando de casa, e com um sentimento de liberdade total. Quase não saí durante o confinamento, e vir aqui era a primeira coisa na minha lista. A segunda será visitar uma amiga que perdeu o marido.

A cabeleireira Maryse Quertier e cliente Pascale K. ©Fernando Eichenberg

O patrão do salão, Frédéric Dutertre, preenchia as autorizações exigidas aos funcionários, necessárias em caso de uso de transporte público em horas de maior afluxo (entre 6h30-9h30 e 16h30-19h). Confinado na casa de seus pais, na região da Provence, manifesta sua surpresa diante da nova situação:

– É estranho estar aqui novamente após quase dois meses e adotar esses novos hábitos. E é bem diferente do que voltar de férias.

Frédéric Dutertre, dono do salão de beleza. ©Fernando Eichenberg

Com um total de três pessoas trabalhando no salão de 40m2, uma reorganização do espaço se impôs, com o banimento das revistas de leitura e o uso obrigatório de máscaras para funcionários e clientes. A cabeleireira Maryse Quertier, foi colocada em desemprego parcial na quarentena, recebendo 85% do salário. Tesoura em punho, se diz contente em poder novamente trabalhar, embora confesse uma rara sensação ao sair na rua:

– É um clima muito estranho, com muita coisa fechada ainda.

As margens do Canal de Saint-Martin, em Paris, foram tomadas por desconfinados em busca de ar livre sem restrições de horário e de justificativas, formando aglomerações sem respeito às regras de distanciamento social. O cenário provocou a intervenção da polícia, que ordenou a imediata dispersão dos grupos que aproveitavam o fim de tarde ensolarado e tardio, proporcionado pelo horário de verão.

Aqueles que esperavam reencontrar ao menos um pouco da alma parisiense no desconfinamento, mesmo com uma temperatura matinal de primavera abaixo dos 10°C nesta segunda-feira, se decepcionaram. Com restaurantes, bares e cafés fechados – uma avaliação será feita no final do mês para definir uma eventual data de reabertura -, além de museus e cinemas, uma parte importante da vida da cidade ainda está suspensa.

Restaurantes, bares e cafés, como Deux Magots, ainda não têm data para reabrir. ©Fernando Eichenberg

Centros comerciais de mais de 40 mil metros quadrados também continuam fechados. Nas zonas classificadas como “vermelhas”, caso da Île-de-France e do Nordeste do país, onde o vírus circula com maior intensidade, parques e jardins permanecem interditados ao público. Museus de pequeno porte do país puderam reabrir suas salas, mas os grandes estabelecimentos, como os parisienses Louvre, d’Orsay, Centro Pompidou e Grand Palais, só voltarão a funcionar a partir do mês de julho.

O Museu do Louvre ficará fechado pelo menos até o mês de julho. ©Fernando Eichenberg

As praias do país permanecem fechadas, exceto se houver alguma autorização especial concedida pelos governadores das regiões, a pedido de um prefeito. A cidade de Nice colocou um nível a mais ao impor o uso obrigatório de máscaras no espaço público. O ministro da Saúde, Olivier Véran, disse que se no período de três semanas o quadro se mostrar estabilizado, poderá haver uma ampliação da abertura do comércio e de espaços verdes.

Ao visitar um canteiro de obras de construção de apartamentos em Saint-Germain-en-Laye, nos subúrbios de Paris, o ministro da Economia, Bruno Le Maire, afirmou que “uma nova cultura do trabalho se instala”:

– Haverá uma fase de adaptação. Será preciso tirar lições desses primeiros dias.

Em queda de confiança junto à população em relação a sua capacidade para gerir a crise, o presidente Emmanuel Macron depende do sucesso do desconfinamento para poder liderar esta nova fase na luta contra o coronavírus e de retomada econômica do país, com uma recessão estimada em -8% em 2020. Na pesquisa de opinião Cevipof-Ifop-Sopra Steria sobre o nível de confiança dos cidadãos de seis países europeus em relação aos seus dirigentes durante a pandemia, o líder francês amargou o último lugar, com 24%, longe de seus colegas da Áustria (61%), Alemanha (50%), Reino Unido  (48%), Itália (41%) e Suécia (38%).

A França teme uma segunda onda de contaminações, o que causaria uma nova pressão sobre o atendimento hospitalar, por isso o retorno da atividade econômica, com a reabertura de comércios considerados como não essenciais, e a volta às aulas ocorre de forma prudente. Desde o 1° de março, a Covid-19 provocou 26.643 mortes no país, e a constante queda do número de vítimas (263 nas últimas 24h), de hospitalizações e de casos graves levou o governo a autorizar o relaxamento progressivo da quarentena a partir de hoje. Ontem, a França contava com 22.284 pessoas hospitalizadas, sendo 2.712 em estado grave.

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