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Após quatro anos difíceis sob governo bolsonaro, relação frança-brasil é retomada em novas bases

Lula foi recebido pelo presidente Emmanuel Macron para um almoço no Palácio do Eliseu em 17 de novembro de 2021. © Ricardo Stuckert

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Os quatro anos do governo Bolsonaro se destacaram por uma explícita animosidade política e diplomática com a França, histórico parceiro do Brasil. A cartilha isolacionista e antiambientalista do período bolsonarista, acrescida de agressões verbais do presidente brasileiro e de ministros de seu governo, levaram ao estremecimento e a um retrocesso nas relações entre Brasília e Paris. Com o retorno de Lula ao Palácio do Planalto, os dois países começaram a articular, mesmo antes da posse, uma reaproximação e o restabelecimento da relação bilateral em novas bases.

A França conta com a volta do Brasil ao “grande palco das relações internacionais” – como anunciado pelo novo chanceler do Itamaraty, Mauro Vieira – para contribuir na resolução de conflitos regionais e como um aliado em bandeiras comuns, como a luta contra o aquecimento global, a preservação da Amazônia e a defesa do multilateralismo. No Palácio do Eliseu, se estuda uma data para uma futura visita do presidente Emmanuel Macron à capital brasileira. No Ministério da Europa e das Relações Exteriores francês, conhecido como Quai d’Orsay, está em finalização o roteiro de um novo plano de ação para a relação franco-brasileira, a ser anunciado em breve. A ministra da pasta, Catherine Colonna, não tardará a fazer uma visita oficial ao Brasil.

– De uma certa forma, a eleição de Lula, que é um grande amigo da França, foi libertadora – diz uma fonte diplomática no Eliseu. – O Brasil está na encruzilhada de várias questões mundiais, como futuro presidente do G20, como país de imensos recursos naturais, produtor de bens alimentares, e com capacidade de diálogo com nações africanas e com  Rússia e China. A palavra-chave é “encruzilhada”: o Brasil está no centro da solução para diferentes problemas globais.

De Caracas a Kiev

Os franceses esperam o Brasil de volta à “diplomacia do multilateralismo eficaz” e à mesa de discussões sobre as crises na Venezuela, no Haiti e a guerra na Ucrânia. Embora o governo Lula mantenha a posição bolsonarista de não aderir a sanções econômicas aplicadas contra a Rússia pela União Europeia e os Estados Unidos, Paris acredita em seu papel para pleitear a abertura de negociações de paz.

– Precisamos globalmente do Brasil na crise ucraniana – diz a fonte diplomática. – Nosso objetivo não é necessariamente pedir ao país que adote sanções, mas que tenha uma posição firme contra a agressão russa, os ataques aos civis, e uma forte reação de apoio à população ucraniana. Como membro do Brics e grande potência emergente, o Brasil tem um peso, e pode endereçar a Moscou uma mensagem dizendo que é preciso parar o mais rápido com essa guerra.

A defesa da Amazônia, alvo de discórdia entre os presidentes Jair Bolsonaro e Emmanuel Macron, é outro tema caro à agenda francesa, na certeza de que, com Lula no poder, haverá convergências. Neste sentido, Paris aponta um “mal-entendido”, constantemente evocado à direita e à esquerda no Brasil, sobre um eventual desejo francês de internacionalizar juridicamente a Amazônia:

– Há uma incompreensão e uma deformação em relação a esta questão – assegura a mesma fonte. – Não queremos criar um território sob mandato internacional. Não vamos questionar as fronteiras brasileiras. Nosso objetivo é apoiar um Estado forte, soberano, em condições de garantir sua própria integridade territorial e capaz de lutar contra a criminalidade e a deflorestação ilegal, agindo em estreita coordenação com a comunidade internacional.

No Ministério das Relações Exteriores francês, há consciência de que este era um “ponto sensível” para Bolsonaro, como é, hoje, para Lula:

– Respeitamos a soberania brasileira sobre a Amazônia – diz uma fonte diplomática do Quai d’Orsay. – Mas acreditamos que o presidente Lula deseja trabalhar conosco. Ele já anunciou uma iniciativa para proteger as florestas tropicais [em novembro, na Cop27, no Egito]. O presidente Gustavo Petro, da Colômbia, disse que promoverá uma cúpula amazônica em 2023, para a qual convidou a França. Há toda uma dinâmica que é relançada neste sentido.

Há também a expectativa de reabertura das negociações do acordo Mercosul-União Europeia, hoje bloqueadas. A França não aceita o texto atual, porque considera que não dá garantias de que serão levados em conta os objetivos ambientais do Acordo de Paris e o combate contra o desmatamento ilegal. 

– A Comissão Europeia está trabalhando em um adendo para o acordo, para que sejam respeitadas as linhas vermelhas em relação ao meio ambiente  – diz a fonte diplomática. – Não sabemos ainda qual será a posição do governo Lula sobre este acordo. É uma discussão de bloco a bloco. E mesmo no seio do Mercosul há dissensões, o Uruguai quer negociar um acordo de livre comércio com a China, e é preciso que se tenha uma posição comum.

Do gelo à liberação

O sentimento de “liberação” do governo francês com a troca de governo em Brasília se justifica pela péssima relação estabelecida nos anos Bolsonaro e as marcas deixadas por várias fricções, algumas caracterizadas por ataques pessoais. Houve troca de farpas entre Bolsonaro e Macron no auge das queimadas na Amazônia, e ofensas do presidente brasileiro e do ministro da Economia, Paulo Guedes, à primeira-dama francesa, Brigitte Macron. Sem falar na anulação de última hora da audiência de Bolsonaro com o chanceler francês, Jean-Yves Le Drian, em visita oficial ao Brasil. Na hora prevista do encontro, o presidente postou um vídeo no Facebook enquanto cortava o cabelo, em um episódio que irritou profundamente os franceses. Em agosto, Guedes disse em uma palestra que os “franceses estão se tornando irrelevantes para o Brasil”, e alertou que era melhor “nos tratarem bem ou vamos ligar o foda-se”.

– Os últimos quatro anos bloquearam literalmente nossa capacidade de criar soluções em conjunto com o Brasil – diz a fonte diplomática do Eliseu. – O governo brasileiro não desejava contatos políticos e nos fez saber disso. Não havia vontade de responder conjuntamente aos grandes desafios. Anotamos essa posição do governo Bolsonaro, e isso não nos impediu de trabalhar com outros países da América Latina. 

Os contatos políticos e diplomáticos de alto nível entre os dois países cessaram. 

A Comissão Mista de Cooperação Transfronteiriça Brasil-França, que se reúne anualmente, teve seu último encontro realizado em julho de 2019, em Macapá. A celebração do 7 de setembro na embaixada brasileira em Paris ilustrou o clima polar que reinava entre os dois países. Era costume a presença de importantes figuras do governo francês na data nacional, como ministros das Relações Exteriores, da Justiça, da Economia ou da Ecologia. Na era Bolsonaro, o primeiro escalão francês bateu em retirada da festividade oficial brasileira.

A cooperação franco-brasileira nos setores educacional, universitário, econômico, bem como a parceria estratégica no ramo da defesa, principalmente por meio do programa Prosub, de construção de submarinos, prosseguiram seu caminho. Mas as relações políticas estavam em seu “nível mais baixo”, admite a fonte do Quai d’Orsay. 

Triplo trunfo

Para Gaspard Estrada, especialista em América Latina no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), a proximidade hoje das agendas externas de Brasil e França, multilateralismo em primeiro lugar, favorece a retomada da relação bilateral.

– A questão da defesa também é importante – ressalta ele. – Há um interesse argentino na compra de submarinos franceses, que poderiam ser construídos na base de Itaguaí, no Brasil. No meio ambiente, a parceria de Lula e Macron será muito boa. E há uma vontade das duas partes de concluir o acordo Mercosul-UE, embora no lado francês Macron terá dificuldades em aprová-lo junto a sua base agrícola. Mas um acordo desse porte é estratégico para ambas as regiões, para reduzir a dependência da China.

Octavio de Barros, vice-presidente da Câmara de Comércio França-Brasil, 

acredita que após quatro anos “muito ruins” do ponto de vista político e diplomático, surge a chance de recuperar o tempo perdido no governo Bolsonaro e dar um “salto qualitativo” na relação Brasil-França. 

– Perdemos muitas oportunidades, e a maior foi a interrupção do acordo Mercosul-UE. Não embarco na história de que os europeus protecionistas viram uma chance de interromper a negociação, que estava prosperando em boa direção. Houve um grande retrocesso a partir do governo Bolsonaro por conta da questão ambiental. A Amazônia e o Cerrado foram devastados, em uma degradação incentivada. Isso teve sequelas na imagem do Brasil no exterior. E o processo de investimento acaba sendo afetado por isso.

Mesmo a eventual adesão do Brasil à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o chamado clube dos países ricos, estimulada no mandato de Bolsonaro e vista com com desconfiança pela esquerda, poderá, segundo Barros, ser beneficiada pela política “integracionista” do governo Lula. O Brasil detém, na sua opinião, o triplo trunfo destacado pelo economista Jorge Arbache, vice-presidente no Banco de Desenvolvimento da América Latina: energia limpa, sustentável e não sujeita a tensões geopolíticas.

– A França sacou a oportunidade histórica que tem com este novo governo. E isso terá uma sinalização muito positiva para o conjunto da UE.

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