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Alvo de protestos, reforma da Previdência é batalha decisiva para Emmanuel Macron

Manifestante passa por colagem que mostra Macron com uniforme da polícia antidistúrbios: reforma está no centro de sua campanha de mudar a sociedade francesa. ©Alain Jocard/AFP

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A cada tentativa de mudança no sistema de Previdência Social na França, ressurge a frase do ex-primeiro-ministro Michel Rocard, pronunciada em 1991: “A reforma da aposentadoria é capaz de derrubar vários governos”. No ar, paira o espectro das greves e manifestações de 1995, que paralisaram o país por três semanas e fizeram o então premier Alain Juppé abandonar seu projeto de reforma. O atual embate entre parte da sociedade civil, sindicatos e o governo em torno de mais um esforço de alteração nas regras, coloca o presidente Emmanuel Macron em uma encruzilhada. Para analistas ouvidos pelo GLOBO, trata-se da reforma mais importante de seu quinquênio e crucial para o futuro do mandato. E assinalam que o desfecho desta queda de braço, seja qual for, favorecerá Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita Reunião Nacional (RN), em suas ambições nas eleições presidenciais de 2022.

Às vésperas das festas de fim de ano, a França entrou na terceira semana de greve nos transportes e serviços públicos, acompanhada de protestos nas ruas contra o projeto de reforma da Previdência apresentado pelo primeiro-ministro Édouard Philippe. O governo quer implantar um sistema universal por pontos, suprimindo os 42 diferentes regimes de pensões vigentes no país, e elevar a idade de referência de aposentadoria de 62 para 64 anos.

Situação bloqueada

Os sindicatos divergem entre si em relação à adoção do sistema por pontos, mas não abrem mão da idade mínima de 62 anos. A última reunião entre o premier e líderes sindicais, na quinta-feira, não desfez o impasse, e as paralisações foram mantidas, apesar da pausa natalina anunciada pelo UNSA, segundo sindicato da SNCF, a estatal ferroviária. Uma nova jornada de mobilização nacional está marcada para o dia 9.

Para o analista político Luc Rouban, do Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS, na sigla em francês), a reforma da aposentadoria é a “grande e decisiva batalha do macronismo”.

– Se conseguir vencê-la, Macron poderá dizer que cumpriu sua promessa de campanha de 2017 e que implantou o verdadeiro programa de reforma da sociedade francesa. Se fracassar, será o fim. Não poderá fazer mais quase nada e se verá encurralado até 2022. Estará em situação semelhante a de Juppé, que, após as greves de 1995, não pôde mais governar até 1997. Hoje, a situação está bloqueada. Na falta de um acordo, o governo poderá acabar passando a lei no Parlamento, pois tem a maioria absoluta. Mas é um conflito que corre o risco de perdurar. E com esta reforma, se vê reaparecer a clivagem esquerda-direita, que, na minha opinião, havia sido enterrada muito rapidamente.

Ao procurar adaptar a economia francesa à globalização, Macron passou por cima dos partidos políticos, diz Rouban, tentando aprovar reformas em um estilo pragmático e de “management”, como um chefe de empresa, priorizando o discurso da eficacidade e sem se preocupar com direita ou esquerda. Segundo ele, o macronismo nascente, que pregava uma mobilização de forma horizontal e participativa, começou a degringolar em 2018, se tornando cada vez mais liberal e autoritário, em uma lógica vertical de poder. E isso em um país dotado de um “sistema complexo, muito corporativo, principalmente na função pública, com uma hierarquia social muito clara”.

– Não se pode esquecer que os franceses são, em sua maioria, pouco liberais em termos econômicos, muito menos do que os britânicos e os alemães – acrescenta. – Em uma comparação europeia, são os mais atraídos pelo serviço público e o Estado. Todas essas reformas liberais não correspondem a sua cultura política. O governo está bastante isolado hoje, em meio a uma contestação recuperada em parte pelos sindicatos, que perderam bastante poder e a confiança dos assalariados nos últimos anos. Agora, tentam novamente se impor como interlocutores, evitando o erro dos coletes amarelos, que foi a violência.

Paradoxos oficiais

Sua inquietude aponta também para o enfraquecimento dos partidos da direita e esquerda tradicionais, em um empobrecimento do debate político que poderá produzir consequências a longo prazo:

– O problema, hoje, é que a oferta política não corresponde à expectativa dos franceses. Marine Le Pen possui uma sólida base de votos populistas e soberanistas da direita radical. A perspectiva de um novo duelo entre ela e Macron é perigosa, porque muitos dos eleitores de esquerda que no segundo turno de 2017 votaram nele, desta vez vão se abster ou votar em branco. As projeções atuais indicam que Macron passaria no segundo turno de 2022 contra ela, mas com margens bem menores em relação ao pleito anterior. Estamos diante de muitas incertezas políticas.

Bruno Cautrès, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), define a reforma da aposentaria como o “pilar do macronismo” e um dos principais exemplos dos paradoxos do governo.

– O projeto de Macron é de centro-direita, revestido de palavras de centro-esquerda, de justiça e igualdade A contradição, hoje, é muito forte. No caso da Previdência, se vê nos debates elementos importantes do conflito esquerda-direita, porque se fala de aposentadoria sem abordar emprego e salário, o que é um problema. O macronismo não consegue se firmar como um projeto de sociedade, com uma visão. É um projeto de gestão, mas não de sociedade, no sentido de fazer as pessoas aderirem a algo importante. E no pleito presidencial de 2022, é certo que parte da população vai ajustar contas. Será cada vez mais difícil, mesmo quase impossível, para Macron obter o apoio da centro-esquerda nas próximas eleições.

No âmbito externo, o presidente, segundo o analista, também tem dificuldades em impor seu plano de reformas da União Europeia e credibilizar sua autoproclamada liderança na luta contra as mudanças climáticas, vide o malogro da recente COP25, em Madri.

– No plano nacional, sua tentativa do Grande Debate (reuniões organizadas pelo país para acolher as demandas dos franceses) não serviu para nada. A questão  da aposentadoria nem estava entre os principais temas estabelecidos. E agora, após dois anos de negociações sobre o projeto de reforma, se chega a este impasse, sem muitas vias de saída.

Para Christophe Bouillaud, da Sciences-Po Grenoble, Macron afirma cada vez mais uma tendência “thatcherista” e “neoliberal tardia”.

– Mas diferentemente de Margareth Thatcher (ex-premier britânica de 1979 a 1990), aqui se mantém uma fachada, se diz que é social e que a reforma vai melhorar o destino da população precária. Macron conseguiu com este projeto de reforma refazer a unidade sindical. E também favorecer a Reunião Nacional, que se posicionou contra o projeto. Em 2022, se a reforma tiver sido implementada, Marine Le Pen poderá dizer que irá revisá-la, e defender que as economias necessárias ao país serão feitas em cima dos imigrantes.

Édouard Philippe procura desestimular os nostálgicos ao afirmar que “a França mudou muito entre 1995 e hoje”. Na linha de frente das negociações, o premier prossegue suas reuniões com líderes sindicalistas e patronais em busca de um mínimo consenso. Tenta, pelo menos, resgatar a CFDT, uma das cinco maiores organizações sindicais do país – e a mais alinhada com o governo -, que apoia o sistema universal por pontos, discordando apenas na questão da idade legal de aposentadoria.

Para o sociólogo Michel Wieviorka, diretor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS, na sigla em francês), o chefe de governo sabe que sua sobrevivência está em jogo neste combate.

– É um problema social que poderá se transformar em crise política. Macron, no momento, deixa agir seu primeiro-ministro. Isso significa que, se a crise aumentar e o governo for obrigado a recuar, Édouard Philippe deverá partir. Wieviorka se diz preocupado com o fim de uma “exceção francesa”: a existência de dois populismos que até então se equilibravam, um à esquerda, da França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon, e outro à direita, da Reunião Nacional de Marine Le Pen.

– O extremismo de esquerda se enfraqueceu desde 2017. Restou apenas o populismo de direita. Será muito fácil para a Reunião Nacional colocar a culpa no governo. Não importa qual seja o resultado do que se passa hoje, a extrema direita sairá engrandecida.

Por enquanto, o governo mantém o cronograma que prevê, nesta semana, o envio do projeto de reforma de aposentadoria ao Conselho de Estado, para depois ser apresentado em reunião do Conselho de Ministros em 22 de janeiro.

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PRINCIPAIS PONTOS DO PROJETO DE REFORMA:

– Implantação de um sistema único universal, baseado em pontos.

– Supressão dos atuais 42 diferentes regimes de pensões.

– A idade legal permanece nos atuais 62 anos, mas com penalizações, e quem se aposentar com 64 anos receberá bonificações.

– Mudança do método de cálculo, hoje baseado nos 25 melhores anos, para o setor privado, e últimos seis meses, para a função pública. Os pontos passarão a ser contados do primeiro ao último dia de trabalho.

– O novo sistema universal será adotado para as gerações nascidas a partir de 1975, e o cálculo de pontos entrará em vigor a partir de 2025.

– Garantia de uma pensão mínima de € 1 mil.

 

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