Certa vez, perguntaram a Samuel Beckett por que ele escrevia. No lugar de uma eloquente revelação sobre a importância da literatura e da escrita, o mestre irlandês respondeu, em escassas palavras, que era só o que sabia fazer, a sua única utilidade. O episódio era constantemente evocado por Tzvetan Todorov para justificar seus dias: “Também nada mais sei fazer do que escrever livros”. Encontrei Tzvetan Todorov no final de 2000, para uma entrevista para a hoje extinta revista “República”, em uma sala da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS, na sigla em francês), em Paris, onde desenvolvia suas pesquisas. O pensador faleceu aos 77 anos nesta terça-feira, 7 de fevereiro, na capital francesa. Ele acabara de concluir sua mais recente obra, “O Triunfo do Artista”, que será lançada no mês de março na França.
Búlgaro de nascimento e francês por adoção, Tzvetan Todorov era um ensaísta produtivo, autor de mais de quarenta títulos. Os temas tratados em milhares de páginas ao longo dos anos são tão variados quanto vasta era sua curiosidade intelectual: poética, literatura, estruturalismo, linguagem, pintura, antropologia, humanismo, história, política, moral, crítica, memória, enfim, o humano em suas diversas facetas. Todorov, cidadão parisiense desde 1963, debutou na cena intelectual francesa ao lado de Roland Barthes, com quem trabalhou. E, assim como Barthes, se tornou um expoente da metodologia estruturalista. Apóstolo do humanismo, seus interesses com o tempo trafegaram para outras áreas. “É verdade que deixei tudo isso um pouco para trás. Não condeno o que fazia nessa época, mas penso que era mais como uma preparação para outras coisas. Era como uma escola, em que aprendi um certo rigor de espírito. Graças a isso, pude me confrontar aos problemas do mundo”, diz.
Em “Mémoria do Mal, Tentações do Bem”, mergulha em um confronto com problemas do século passado e os desafios do tempo futuro. O ensaio é uma reflexão humanista e pessoal sobre o século 20. Sua retrospectiva particular condena a “militância da memória”, que ao mesmo tempo sacraliza e banaliza o passado, colocando-o no lugar do presente. Todorov tenta pôr o passado em seu devido lugar, atento tanto à carga positiva quanto à negativa que a memória carrega. Ao repassar a história do totalitarismo na Europa, o pensador revê a memória do mal.
Além de olhar para trás, observa também as ameaças do futuro político da humanidade. “Falo de perigos da democracia, de desvios que a ameaçam a partir de seu interior”, disse. Uma dessas ameaças vem do que chama de “tentação moralizadora”, que seria a ideia de impor a todos os valores democráticos, como os direitos humanos e o antirracismo. “Veja bem, não sou contra esses valores, obviamente, mas isso é traduzido no interior da sociedade, em países como a França e a Alemanha, como uma política do ‘moralmente correto’. Externamente, manifesta-se no direito à ingerência”.
Todorov recupera Montaigne e Rousseau para se insurgir contra o que define como a “vulgarização contemporânea do humanismo”. Suas inquietações são graves, mas ele conservava o princípio da esperança e a crença na ação humana. “Estou sempre em busca de um sentido, de conhecer o significado de algo”, observou. Tzvetan Todorov se concentrava no que dizia ser a única coisa que sabia fazer: pensar o mundo e escrever livros.
Aqui o resultado de nosso encontro, também publicado no primeiro volume de minha antologia de entrevistas “Entre Aspas”.
Em que sentido “Memória do Mal, Tentações do Bem” é uma reação à história do século 20?
Trata-se de um ensaio sobre as lições do século 20, sobretudo sobre as lições políticas. Sei que não é muito original falar do século 20 mas acho que há um sentido. Um acontecimento me interessou mais do que os outros: a existência do totalitarismo na história da Europa. Já nas primeiras décadas do século, acontece a vitória do comunismo na Rússia. Depois, há o surgimento do fascismo e do nazismo. Então vem o apogeu, quando os dois sistemas se unem em uma aliança, em 1939-41, e, na sequência, o combate entre os dois, na Segunda Guerra Mundial. Depois surge a Guerra Fria. Obviamente, já se escreveu muito sobre esse tema, mas quis aproveitar meu conhecimento da história das ideias e também minha experiência pessoal deste mundo. Vivi na Bulgária até 1963, ano em que vim para França. Tentei abordar de perto o debate totalitarismo-democracia-comunismo-nazismo, pois corresponde a minha experiência. Tentei, ao mesmo tempo, vê-lo de muito alto, situá-lo na longa duração da história europeia, nas utopias e nas ideias de construção de um paraíso terrestre.
Onde entram a memória do mal e a tentação do bem?
Os acontecimentos não são contemporâneos, são vividos por meio das lembranças que guardamos. Impõe-se uma questão de memória. A memória é muito importante quando se trata do mal, de algo que é vivido como um trauma. De que forma esse trauma será transmitido às próximas gerações? Hoje se fala muito de um dever de memória, de que seremos curados por ela e que somos militantes dela. Não considero essas proposições defensáveis à la lettre. A memória é, ao mesmo tempo, a pior e a melhor coisa do mundo. A maioria das guerras que ocorrem ao nosso redor são feitas em nome da memória. “Porque meu avô foi morto pelo seu avô, vou matar você hoje”. E assim de geração em geração. Na Irlanda do Norte, em Ruanda, por todo lado vemos guerras alimentadas pela memória. Devemos dizer que, então, é preferível o esquecimento? Não. É preciso analisar o que é a memória, de que modo retemos o passado, que uso fazemos e vamos fazer dele. Analiso particularmente dois usos extremos, que são a sacralização e a banalização do passado. Sacralizam-se gestos heróicos e acontecimentos dramáticos. É uma tentação freqüente e esterilizante, porque de uma certa forma coloca o passado no lugar do presente. A banalização se manifesta quando, por exemplo, vemos Hitler por todo o lado. Seu vizinho que ouve música num volume muito alto é Hitler, Sadam Hussein é Hitler, Ehud Barak é Hitler para os extremistas israelenses. Todo o mundo tem seu pequeno Hitler de bolso. Também nesse caso, embora no sentido inverso, o presente fica oculto por um passado transformado em puro estereótipo, em pura caricatura.
O senhor também é crítico a certos rumos da democracia contemporânea.
Nos dez últimos anos do século, saímos um pouco do confronto entre totalitarismo e democracia. Hoje estamos no reino da democracia. Agora todo o mundo quer ser democrata, liberal. Começou-se a agir em nome da democracia de uma forma pouco vista nos períodos anteriores. Principalmente em duas ocasiões, no Iraque e na Iugoslávia, onde democracias ocidentais intervieram militarmente em nome dos direitos humanos, de valores democráticos. É um debate sobre os meios da intervenção militar e da doutrina do direito de ingerência que apareceu nestes últimos anos como uma nova conquista, como algo que a democracia teria a obrigação de praticar. Sobre isso, falo de perigos da democracia, de desvios que a ameaçam de seu interior, e não de inimigos externos, como foi o caso do totalitarismo.
Winston Churchill disse que deveríamos esquecer todos os horrores do passado. Já o filósofo americano Georges Santayana dizia que, se esquecermos os erros do passado, estaremos condenados a repeti-los. O senhor não concorda com nenhum deles e afirma que a memória não se opõe ao esquecimento. É possível resolver essa questão?
Essa questão não pode ser “resolvida”. Não é como uma equação. A memória é um aspecto essencial de nossa identidade. Nós nos constituímos como pessoas, grupos, países, em grande parte por causa da memória. Mas ela pode servir também para destruir meu vizinho, pessoal ou coletivo. Deve-se permanecer lúcido no uso da memória, em vez de defender uma militância dela. A memória, em si mesma, não basta. A célebre frase de Santayana indica que vamos repetir as coisas se não nos recordarmos delas. Mas, na verdade, nos lembramos das coisas e frequentemente as repetimos porque achamos que o que aconteceu foi bom. Hitler, por exemplo, gostava de lembrar a seus interlocutores o genocídio dos armênios. Ele dizia: “Vejam, eles obtiveram sucesso e ninguém nunca se preocupou com isso, ninguém puniu”. A fórmula “não se pode ignorar o passado” é muito bonita, mas não basta dizer isso. Pode-se fazer tudo do passado, as melhores e as piores coisas. A frase de Churchill tem uma certa razão, pois não se pode construir o futuro tentando resolver disputas do passado. É como se judeus, cristãos e muçulmanos dissessem: “Jerusalém é nossa”. Nunca haverá paz. É claro que ninguém pode se esquecer do passado voluntariamente. Coisas que nos causaram vergonha e que nos fizeram mal vêm à nossa cabeça à noite e provocam insônia. Não se trata do esquecimento ou da memória, mas de uma busca do que tentamos fazer da memória.
E qual é a sua conclusão sobre o século?
Não acredito que o totalitarismo será uma ameaça no futuro. O trauma foi grande o bastante para evitar que ele retorne num futuro próximo. Identifico três outras ameaças. A primeira, e mais evidente, é a derivação da identidade. As sociedades burguesas, liberais, sempre foram criticadas por serem individualistas, por renunciarem a uma identidade coletiva. Precisamos de uma identidade coletiva, mas sabemos também que ela pode se tornar opressora, como vemos no renascimento de nacionalismos ou de regionalismos, seja no País Basco, na Iugoslávia, no Irã, na Córsega. Podem ser igualmente movimentos de fundo religioso. A segunda ameaça é produzida pelo próprio sistema democrático e liberal, que eu chamaria de derivação instrumental. O que é próprio da democracia é não impor uma mesma concepção do bem a todo o mundo. A ameaça está no fato de que toda a tensão está no “como” e não no “o que”; em “como atingimos” e não “para onde vamos”. É preciso que a escola e o hospital funcionem bem, mesmo que os alunos não aprendam nada ou que o paciente morra. Os meios são valorizados em detrimento dos fins. Isso é deplorável. A terceira ameaça seria uma tentação moralizadora, que consiste, justamente, em remediar essa ausência de fins últimos, que diz “sim, esses fins últimos existem, são os direitos humanos, e vamos impô-los a todos, é o antirracismo, e vamos impô-lo a todos” etc. Veja bem, não sou contra esses valores, obviamente, mas isso é traduzido no interior da sociedade, em países como a França e a Alemanha, por uma política do “moralmente correto”, variante do politicamente correto das universidades americanas. Externamente, manifesta-se na questão do direito à ingerência. São essas as minhas conclusões, uma forma de colocar os países democráticos em guarda contra perigos que não se originam do totalitarismo, mas que estão presentes e acarretam resultados negativos na vida dos indivíduos. O indivíduo não se importa se será morto por uma bomba nazista ou por uma bomba humanitária, que foi lançada para melhorar seu bem-estar.
O senhor aponta a diferença entre a opressão totalitária e outras, indiretas e difusas. Afirma que a prosperidade econômica se tornou a única medida e que os cidadãos foram reduzidos a ser apenas um meio utilizado para atingi-la.
É uma opressão preferível à opressão totalitária, que ameaça sua vida e a de seus próximos, sua casa, a segurança no trabalho. Cada vez que a campainha soa, se treme de medo. Poderá ser alguém que o levará para um interrogatório, talvez sem retorno. Os dois não se comparam do ponto de vista da violência, do efeito sobre o indivíduo. Mas há uma autoridade exercida sobre nós mais suave, menos desagradável, mas não menos poderosa. A questão econômica é parte da derivação instrumental. Normalmente, deveríamos visar a uma vida plena, rica, repleta de relações intensas, na qual amaríamos e seríamos amados e nos satisfaríamos nos planos físico, mental etc. A riqueza econômica não seria mais do que um meio. Se ela se torna o objetivo, não atingimos os outros objetivos. O econômico tomou um lugar exorbitante na nossa vida, um tipo de ditadura que organiza tudo. Basta dizer que algo não é rentável, e ele é eliminado. A rentabilidade é, com frequência, uma necessidade, não um objetivo. O objetivo está relacionado aos valores humanos. Neste contexto, há a globalização econômica. Ela pode tanto ter efeitos negativos como positivos, mas em nenhuma hipótese pode-se sonhar com uma globalização política. É essencial que persista um pluralismo político, do contrário seremos conduzidos a uma estrutura autoritária, se não totalitária. O pluralismo é a melhor defesa para evitar que a força e o direito se tornem uma mesma coisa. Os Estados devem poder reagir politicamente aos efeitos da globalização econômica. Algumas vezes eles vão tirar vantagens dela, mas em outras é preciso que eles tenham condições de evitá-la.
O senhor teme os efeitos da globalização?
Não a vejo como um mal em si. Não se pode ser contra ela quando se é a favor do universalismo, como é o meu caso. Acredito na unidade do gênero humano, na utilidade e na fecundidade das trocas entre povos e indivíduos. Mas é claro que ela tem efeitos perversos. Acabo de chegar de uma viagem à Bulgária. As livrarias de lá, por exemplo, que proliferavam no tempo do totalitarismo – porque era o único lugar no qual podíamos nos refugiar para obter alimento espiritual, onde podíamos comprar clássicos – faliram e foram substituídas por lojas de fast-food. Não posso considerar positivo esse tipo de efeito da globalização. O Estado, nesse ponto, tem um papel, deve intervir para preservar o que julga de verdadeiro valor.
O individualismo, no contexto das novas tecnologias e do humanismo, é outro tema recorrente de suas reflexões. O senhor fala de um autismo social.
Podia-se imaginar que, graças ao computador, à internet, ao correio eletrônico, nosso nível de comunicação seria o melhor já obtido, mas isso não é totalmente verdadeiro. Claro que poder comunicar instantaneamente entre o Rio de Janeiro e Paris, em vez de esperar que uma carta atravesse o oceano, é formidável. Só podemos nos felicitar pela facilidade de acesso às bibliotecas, às enciclopédias. Mas é preciso se dar conta que, muitas vezes, o tempo que se passa diante da tela do computador era um tempo consagrado às trocas humanas. E elas não são apenas informativas, mas também formativas. Elas fazem de nós o que somos. São os tijolos da casa de nossa existência. Há algo de fragilizante no fato de se estar sempre diante da tela e de ter apenas interlocutores virtuais. Esses sentidos do imediato, em oposição ao ver e ouvir, são mal colocados na civilização contemporânea, e isso nos fragiliza e nos empobrece. Não se trata de dizer que devemos voltar a viver como selvagens nas cavernas. Tenho um computador, como todo mundo. Mas trata-se de ser consciente, na medida do possível, dessas perversões e dos perigos da tecnologia.
O senhor faz uma tentativa de renascimento do humanismo – “o humanismo é um jardim imperfeito”, disse Montaigne. De onde vem essa busca pelo humanismo?
Sob o nome do humanismo cobriu-se muita coisa. Sobretudo no século 20, essa palavra passou a designar um tipo de doutrina, de uma prática da bela alma, uma alma que pensa que o mundo é maravilhoso e as pessoas, seres generosos e bons – é preciso apenas ser bom com todo mundo. Estou caricaturando, obviamente. Mas havia um lado ingênuo e cor-de-rosa no humanismo. Quando comecei minhas pesquisas sobre a história do pensamento, me dei conta de que havia pensadores para quem o humanismo era muito mais agudo, difícil, incômodo do que essa caricatura humanista que a escola e a Igreja Católica nos transmitem. Minha ideia era de que esses humanistas – dos quais Montaigne é o primeiro exemplo no mundo europeu, mas que são representados também por Montesquieu, Rousseau, Benjamin Constant ou Tocqueville – poderiam nos ensinar algo hoje, de que eles mereciam ser ressuscitados. O fundamento dessa doutrina humanista é muito simples. Eu o reduzi a um jogo com os três pronomes pessoais: a autonomia do eu, a finalidade do tu e a universalidade do eles. O pensamento humanista afirma que o ser humano não pode controlar a totalidade de seu destino, mas que pode intervir nele. Seu destino não está inteiramente determinado, seja pela história, pela biologia ou mesmo por seus pais ou sua infância. Ele pode intervir como sujeito consciente e voluntário. Rousseau diz que o ser humano pode aquiescer ou resistir. Sempre. Meu livro “Em Face do Extremo”, consagrado à experiência moral e psíquica nos campos de concentração de países totalitários, ilustra que, mesmo no momento da execução, o ser humano pode aquiescer ou resistir. Há o caso daquela jovem em Auschwitz que, no local da execução, cortou suas veias, o que provocou a cólera de seus carrascos. Ela escapou deles, resistiu. A possibilidade de resistir está sempre aberta ao ser humano. A finalidade do tu é um grande princípio da moral kantiana, do Iluminismo e de Rousseau. O objetivo de nossa ação é o ser humano, e não algo em nome do que esse ser humano pode ser sacrificado. Vemos isso no comunismo, que tem também objetivos muito nobres, como a felicidade da humanidade, a liberdade e a igualdade para todos, mas que, em nome desses objetivos generosos e admiráveis, está pronto a sacrificar os indivíduos. Não há nada além dos humanos, dos indivíduos, não há humanidade fora dos seres humanos que a encarnam. Se, para garantir a felicidade da humanidade, é preciso sacrificar o gênero humano, algo não vai bem. Por que concedo sempre uma grande atenção ao amor? Porque é no amor, nessa relação humana, que o outro se torna um objetivo. Não há nada além disso. Não amo alguém para poder, por exemplo, entrar na escola superior. Isso não seria amor, mas comércio. A universalidade do eles se explica por si mesma. Não obstante todas as suas diferenças, os seres humanos pertencem à mesma espécie e merecem ser tratados com o mesmo respeito. Nós nos damos esse direito de refutar qualquer discriminação política baseada na desigualdade. Por isso fui buscar esses pensadores, que, a meu ver, tratavam desse grande tema de forma mais atual do que os vulgarizadores de hoje. O título de meu livro “Le Jardin Imparfait” (O Jardim Imperfeito) é para lembrar que os humanistas não pretendem jamais instaurar o paraíso terrestre. Eles não acreditam que o humano possa ser conhecido de forma exaustiva, até o fim, precisamente porque ele dispõe de uma certa liberdade. Essa liberdade faz com que nunca se possa prever com exatidão em que direção vão os homens. Nunca haverá uma política científica. Todas as políticas são voluntaristas. Por isso, o jardim perfeito jamais existirá. Os humanistas se contentam em cultivar o jardim imperfeito. O desafio humanista é essa possibilidade de tentar melhorar, por meio da ação, a convicção de que o pior não é inevitável.
Segundo o senhor, ao longo do século 19, o homem aceitou a passagem para a modernidade, a transição da era aristocrática à democrática. Essa transformação provocou novos sofrimentos e também o surgimento de novos remédios para tentar aplacá-los. O senhor se refere a um tipo de pensamento instrumental, para o qual cada problema exige uma resposta técnica, e, para cada infelicidade, uma explicação jurídica.
Tudo isso faz parte desse pensamento instrumental, que quer uma solução para cada problema, e de preferência uma solução conhecida dos experts. Um presidente francês, certa vez, convocou uma assembléia de sábios para refletir sobre os objetivos da sociedade. É revelador o fato de que era preciso ser um sábio. Uma empregada doméstica pode refletir tão bem sobre os objetivos de sua vida quanto um sábio. Isso nada tem a ver com a ciência. Nossos políticos, com bastante frequência, têm a impressão de que os sábios detêm a chave para responder à questão que lhes é proposta. Nossa sociedade favorece os experts. Quanto à questão da responsabilidade por uma tragédia, ela é bastante presente nos Estados Unidos. O mundo americano está muito impregnado por essa lógica que sempre exige um responsável, que não admite o acaso, justamente o lado imperfeito do jardim no qual vivemos.
Para o senhor, o século 21 deve reatar com o século 19 no plano político, mas retomou algumas de suas doenças.
Na Europa, o século 20 foi dominado pelo projeto totalitário, mais especificamente pela utopia comunista. Houve uma série de novas infelicidades que foram reveladas com o desabamento das antigas sociedades, e se afirmou uma crença no fim do século segundo a qual um projeto iria nos liberar de toda infelicidade. Pouco a pouco se descobriu que o remédio era pior do que o mal. Esse parêntese está fechado. Mas encontramos novamente os problemas para os quais o comunismo pretendia ser uma resposta. Não estamos curados. E, como disse antes, somos ameaçados por essas derivações, como nacionalismo, consumismo, dominação do econômico, moralismo.
O senhor acredita que o homem moderno é um homem deslocado. Ele não se sente em casa nem onde está nem no local de onde partiu?
O homem moderno se sente muito deslocado. Mas não vejo isso simplesmente como um estado negativo, como alguém que perdeu suas raízes e não se reconhece em nenhum lugar. Eu me sinto em casa em Paris, onde vivo há 37 anos. Escrevi meus livros em francês, estou integrado à vida intelectual e ao dia a dia da França, meus filhos vão à escola francesa. Não posso dizer que seja um estrangeiro, mas sou um homem deslocado, pois jamais me identificarei plenamente. Essa pequena diferença me dá um olhar de fora e de dentro. Isso é uma vantagem. Aqui, nesta parte do mundo, isso é uma característica. Conhecemos muito das outras culturas, algo que meus pais não podiam imaginar. Esse duplo olhar enriquece o mundo. Mas sabemos também que para um bom número de pessoas a situação é bem mais dramática. É o caso das populações desfavorecidas que habitam os subúrbios das grandes cidades na Europa. São jovens arrancados de uma primeira cultura e mantidos distantes de uma segunda, que deveria acolhê-los. Sua linguagem é a violência. São seres deslocados, mas de uma forma muito mais trágica.
Qual é a posição dos intelectuais hoje, nesse mundo de novas ameaças?
Os intelectuais são ameaçados por uma ruptura entre o mundo real e eles mesmos. São pessoas muito inteligentes, que se embriagam com construções de idéias. É surpreendente ver que na história do século, no plano político, a maioria dos intelectuais se deixou enganar. Muitos se puseram seja a serviço de uma ideologia totalitária ou de uma religião opressora. Mas não vou denegrir a função crítica do intelectual, ela existe e é necessária. Não conheço melhor imagem do que aquela empregada por Sócrates, o primeiro intelectual da tradição ocidental. Ele dizia que ele era como uma mosca, que pica o cavalo sem parar, ela o agita, não o deixa dormir.