FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS — As imigrações do passado se transformam cada vez mais em diásporas do presente. Para sair da crise atual, a Europa deverá repensar sua coexistência com o estrangeiro e levar em conta as formas de mobilidade contemporâneas. A negação da alteridade estimula os conflitos, e a laicidade francesa é incapaz, hoje, de gerir uma convivência pacífica dos monoteísmos. As opiniões são de Tobie Nathan, um dos herdeiros de Georges Devereux (1908-1985), considerado fundador da etnopsiquiatria, prática que combina a psicologia clínica com a antropologia cultural.
Há mais de 40 anos, seus pacientes são migrantes. E desde 2014, a pedido do governo francês, já atendeu cerca de cem jovens em perigo de radicalização islâmica, experiência que resultou no livro “As almas errantes” (Ed. Iconoclaste). Segundo ele, os potenciais radicais jihadistas devem ser abordados com inteligência, e não com afeto ou com o rigor da lei. Professor de Psicologia na Universidade Paris 8, ele mesmo um imigrante — partiu do Egito aos 9 anos com seus pais —, autor de ensaios e romances (finalista do prêmio Goncourt em 2015), Tobie Nathan conversou com O Globo em sua sala no Centro Georges Devereux, na capital francesa.
Que mudanças o senhor poderia assinalar ao longo destas mais de quatro décadas tratando imigrantes?
Mudou completamente. Atendi meus primeiros pacientes em 1972, numa clínica em um bairro popular. A ideia na cabeça dos imigrantes — e dos clínicos — era de que estavam lá para se tornarem franceses. Iriam perder sua identidade étnica, cultural, religiosa precedente para se tornarem, em uma ou duas gerações, franceses. Isso criava vários problemas, porque obviamente não funciona assim. Havia problemas, principalmente, no contato com as instituições francesas. O conflito se dava em torno de “você vai perder sua identidade e se tornar um francês desde o seu interior”. Isso acabou. Hoje não é mais a mesma imigração. As pessoas vêm, mas não partem de todo, há Skype e outras formas de comunicação, as passagens de avião não são tão caras como antes, o contato com o país de origem permanece. Hoje, não são mais imigrações de ruptura, mas diásporas. Montreuil, por exemplo, é a maior comunidade soninquê (povo da África Ocidental) do mundo. Não são franceses, são soninquês da região de Kayes (Mali) vivendo em Montreuil. Cada vez mais as imigrações são diásporas. E o problema, hoje, não é mais no contato com as instituições, mas se tornou ideológico. O imigrante é a favor ou contra a França, o Ocidente? Isso emergiu nos últimos anos de forma extremamente brutal.
Na sua opinião, a sociedade francesa não sabe “pensar” o estrangeiro, e diz que em algum momento será preciso uma outra forma de negociar esta coexistência e admitir que pessoas pensam de forma diferente e acreditam em outros deuses.
Se você pensar que o estrangeiro é um usurpador, forçosamente terá conflitos com ele. Mas se você o considerar como um representante de um outro mundo em seu mundo, terá interesse em negociar com ele. Precisamos de diplomacia com nossos imigrantes, e sobretudo não os considerar como futuros franceses, mas pessoas de fora que têm coisas a nos contar de seu mundo. Infelizmente, essa não é a tendência hoje, nem para as instituições nem para as associações que se engajam na defesa dos imigrantes. Tenho muitas dúvidas em relação a essas associações, porque elas consideram sempre os imigrantes como pessoas que possuem algo a menos: sem documentos, sem teto, sem recursos. Considero os imigrantes como pessoas que têm algo a mais. Você é um brasileiro, e me interessa saber o que você tem a mais, conversar sobre coisas de que não sei. Vou buscar o que eles têm a mais, e não a menos. A abordagem feita pelas associações torna os imigrantes desinteressantes. Eu me faço aluno dos imigrantes: que me contem o que é diferente neles, e a partir daí vou aprender. É o contrário de um imigrante que tem coisas a menos e que preciso ajudar pois é desfavorecido. Não podemos mais ter esta posição no acolhimento de imigrantes. Claro que há necessidades humanitárias, mas isso é outra coisa, não é psicologia. O humanitário é indispensável, mas não é o que faço. Pratico etnopsiquiatria: fazer com que o encontro com o diferente me enriqueça e enriqueça o outro.
O senhor vai mais além, e constata um esgotamento na forma de se pensar o mundo e suas identidades de Estado, nações, fronteiras. Na sua análise, a atual crise europeia é
Estamos num mundo em movimento, em contato constante com populações diversas. Claude Lévi-Strauss disse que os homens foram feitos para viver em grupos de cerca de duas mil pessoas. E ele tem razão nisso. Haverá sempre estes grupos, estas entidades. Pode ser uma tribo, uma aldeia, um bairro numa grande cidade. São essas unidades que se modificam constantemente, de língua, de nome, em mudanças cada vez mais velozes. É um novo mundo.
Qual a sua reação quando se fala na falência da integração dos imigrantes?
Houve integrações em séculos, mas não na escala de uma pessoa, de uma família. Como principal argumento, se diz: “Vejam os poloneses que chegaram em 1920 e se integraram.” Sim, mas isso faz cem anos. E ainda assim, eram imigrações de um outro tempo. Depois, as coisas se aceleraram bastante. Os argelinos que estão na França não dizem que se tornaram franceses. Talvez isso vá ocorrer daqui a 200 anos. Mas na escala de uma pessoa e de uma família é preciso pensar na relação de uma alteridade interessante. Não se trata de lhes dar direitos diferentes. Todos devem ter os mesmos direitos. Mas a relação de alteridade deve ser mantida. E se não o fizermos, serão criadas alteridades conflituosas, que poderão causar muito mal. Não é um acaso que nossas prisões estejam repletas de imigrantes de segunda geração. Não é unicamente porque eles vivem em bairros difíceis, mas porque têm problemas de transmissão dessa alteridade. Os casos de terrorismo são todos relacionados a imigrantes de segunda geração. O problema da integração deve ser colocado de uma outra forma. Não faço política, e sei que é fácil criticar de fora. Mas sempre propus outras formas de tratar o problema.
O senhor critica a receita de “apagar o passado” para se integrar na nova sociedade.
Na cabeça das pessoas isso ainda não acabou, mas não é mais possível fazer assim. Trabalhei com uma escola em Aubervilliers (subúrbio norte de Paris), e numa classe havia 40 alunos, sendo 35 do mesmo pai. Isso não é um melting pot, é uma outra coisa, que exige uma outra reflexão e proposição. Estive em uma outra escola, no 19° distrito de Paris, com apenas 2% de alunos franceses não originados de imigrações recentes. Todos os demais eram imigrantes de primeira ou segunda geração. É uma outra aventura. E deve ser encarada como uma aventura interessante.
Em 2014, o senhor foi solicitado pelo governo francês para encontrar jovens em perigo de radicalização islâmica, sinalizados por familiares ou autoridades escolares…
Continuo a fazê-lo, mas há cada vez menos pessoas sinalizadas. É um tipo de delação, e as pessoas se deram conta de que, por vezes, havia consequências para as pessoas denunciadas. Este tipo de dispositivo está chegando ao seu limite.
Para o senhor, há um “erro intelectual” na abordagem destes jovens: não se deve recorrer à compaixão ou à compreensão, nem à lei, ao rigor, à República ou à laicidade.
São pessoas muito difíceis de abordar. Nunca tive tantos problemas como nestes casos para estabelecer um tratamento com pacientes. Exatamente porque não são pacientes. São talvez doentes, como outras pessoas, mas eles não têm consciência disso, e não querem ser tratados. Além disso, eles têm uma construção contra você, como interlocutor de uma sociedade que rejeitam. Se você tiver uma posição de compreensão, levará um tapa na cara, não fisicamente. Se você abordar a lei, eles não estão nem aí, porque possuem uma outra lei. Como abordá-los? Primeiro, converso com as pessoas que os sinalizaram e com o entorno do jovem, parentes, professores. Por vezes, levo até seis meses para convencer os jovens a aceitarem me ver. É preciso muita paciência. E o que me surpreendeu é que são apresentados como descerebrados, que não entendem nada da religião, e vítimas de gurus e de recrutadores perversos. Mas, em grande parte, são jovens que têm verdadeiras questões. E quando se consegue tratar destas questões, se torna interessante. Mas é preciso chegar lá. É preciso aceitar falar de religião, o que é complicado, pois não é nossa formação inicial. São radicais islamistas. Para eles, há um só monoteísmo, o Islã. É uma posição filosófica. Sempre que consegui estabelecer uma relação mais aprofundada com eles, foi pelo viés da discussão intelectual. Atendi também muitos casos de jovens cujas famílias não eram muçulmanas, como congoleses, marfinenses, antilhanos. Famílias inteiras de antilhanos se converteram ao islamismo radical. Nestes casos, possuía mais argumentos, pois buscava suas fontes culturais.
O senhor compara sua história pessoal com os questionamentos dos jovens em vias de radicalização. Mas aponta que seus anseios juvenis por uma revolução mundial, nos anos 1960-70, diferem da situação atual, pois não havia recrutadores em redes organizadas na Internet.
Por isso que, hoje, se passa muito mais rápido. E, antes, não éramos desejados onde se fazia a revolução, seja na América do Sul ou no Vietnã, não nos queriam. Neste caso, eles querem recrutar pessoas aqui. Há cidades assinaladas como lugares problemáticos, como Mantes-la-Jolie, Trappes, Roubaix ou os subúrbios de Toulouse. É uma outra França. Você entra nessas áreas, é logo percebido, e lhe perguntam o que foi fazer ali. É impressionante. Tudo isso tem implicações. Quando toda a cidade é assim, as crianças que cresceram ali agem do mesmo modo, num efeito cumulativo. E, evidentemente, as pessoas ali estão em conexão com outros mundos. E onde ocorrem, hoje, os verdadeiros movimentos do mundo? Não estão na Europa. Há um enorme movimento que se passa no Oriente Médio, na África do Norte. Se alguém quiser participar de um movimento, é para estas regiões que deve ir. Me recordo ter vivido algo comparável. Quando tinha 20 anos, pensava que o futuro do mundo estava em jogo no Vietnã. Minha geração pensava isso. E queria estar lá, presente, de alguma forma. Hoje, tenho a impressão que se passa algo parecido com estes jovens.
Qual o resultado destas consultas?
Já tratei uma centena desses jovens. Há a jovem que se apaixona por um muçulmano e que um dia muda de religião e de vida. Há jovens
Para o senhor, a laicidade francesa não fornece as boas respostas para esta questão. Por que razão?
Há aquele pequeno artigo de Freud sobre a negação: quando as pessoas começam uma frase por uma negação, é o contrário que elas querem dizer. A laicidade é uma negação. “Não vá acreditar que as pessoas vivem com seus deuses.” Mas, sim, as pessoas vivem com seus deuses. Essa negação funcionou por um tempo específico, e não penso que seja algo que possa perdurar hoje. O objetivo ao qual responde a laicidade é indispensável, ou seja, tornar possível a vida com pessoas diferentes, na mesma cidade, no mesmo prédio, na mesma escola, no mesmo trabalho, no mesmo metrô. Todos os países do mundo são, hoje, confrontados a este problema. Nem todos são laicos, e resolvem esta questão por outros meios, não pela laicidade no sentido francês da palavra. Há outras formas de tornar vivível um mundo comum. A laicidade que diz que é preciso excluir as divindades do espaço político, do ensino, e que por vezes foi bastante violenta na França, não é adaptada às novas gerações. A questão sempre foi tratada a partir dos homens, e creio que nos enganamos. Os homens em si não são problemas, mas sim as coisas que carregam junto com eles. Como tornar compatível esses deuses entre si? O problema deve ser colocado a partir das divindades. Fiz uma proposição, talvez completamente absurda, que é o inverso da laicidade, e que defini como “parlamento dos deuses”. Isto é, um espaço em que todos os deuses poderão defender seus interesses. Esse parlamento não poderia ser formado por líderes religiosos, pois eles não têm a capacidade de debater com outros deuses, são religiosos de um só Deus. Teria de ser outro tipo de pessoas capazes de representarem esses deuses. Talvez minha ideia seja utópica, mas o princípio é esse: colocar o problema a partir dos deuses, e fazer com que um mundo comum possa ser negociado, no qual os deuses são parte interessada. A laicidade francesa nasceu de uma guerra de religiões que durou séculos, e que na minha opinião não terminou. Havia o problema entre os protestantes e católicos, e o fundo da questão não despareceu. E o conflito de hoje com os muçulmanos segue o mesmo caminho, vamos ter uma reedição da longa guerra. Em vez de se apegar em posições assim, é preciso mudar de referencial. E o referencial, na minha opinião, é um parlamento de divindades, para debater os conflitos.
Para o senhor, os jovens modernos são carregados de uma “angústia apocalíptica”. Poderia explicar?
Não sei se eles têm essa angústia apocalíptica, mas ouvem falar bastante disso. As ideologias majoritárias no mundo são apocalípticas. Se diz que vai haver a Terceira Guerra Mundial e que o mundo vai acabar com ela. Se diz que com o aquecimento do planeta o mundo vai acabar. Se diz que com a destruição dos oceanos o mundo vai acabar. Este é o pensamento racional dominante hoje. Aquele que não é apocalíptico, hoje, é um ignorante. Há uma perda de imaginação e de capacidade de pensar o mundo do futuro. Essa geração terá de negociar isso, e não é o mais fácil a ser feito. Com frequência, eles escorregam para o religioso, simplesmente porque não têm respostas para as verdadeiras questões. Penso que se deve abordar o mundo de uma outra forma não apocalíptica. O apocalipse nunca gerou bons resultados.