FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – Engajado desde 1977 nos movimentos de ajuda internacional, o francês Rony Brauman é um entusiasta fiel e também um crítico vigilante da ação humanitária. Como um dos fundadores da Médicos sem Fronteiras (MSF), e ex-presidente da instituição (1982-1994), condena o apelo excessivo das organizações às regras do direito internacional humanitário, já que, realisticamente, “a guerra só tem uma regra, a vitória”. Ele lamenta os escândalos de abuso sexual no meio, alertando para a existência de outras formas de agravos, não sexuais: “É bom que este problema venha agora à tona, na Oxfam como na MSF. Apenas acrescentaria que isso também é utilizado por pessoas que têm por objetivo desqualificar a ajuda internacional.”
Membro do Centro de Reflexão sobre a Ação e os Saberes Humanitários (Crash), e professor do Instituto de Resposta Humanitária a Conflitos, da Universidade de Manchester, na Inglaterra, Brauman acaba de lançar na França o livro “Guerras humanitárias? Mentiras e manipulações” (Ed. Textuel). No ensaio, diz que o argumento humanitário é usado para justificar guerras planejadas e iniciadas por outros motivos. Seria o caso das intervenções em Somália (1992), Kosovo (1999), Líbia e Afeganistão (2002). Na sua opinião, quando se trata de guerra, “as ditaduras não mentem mais do que as democracias”.
Como analisa a ação, hoje, das organizações humanitárias?
Na medida em que continuo um membro ativo deste movimento, considero que o balanço permanece positivo. Nossa ambição, ajudar as pessoas mergulhadas em situações terríveis, é decente e humana, e merece meios e energia. O que refuto é uma certa húbris do discurso humanitário, uma perda do sentido da medida e da proporção. A ação humanitária é extremamente limitada. Retomo a imagem de Henry Dunant, um dos fundadores da Cruz Vermelha: criar oásis de humanidade no meio de uma imensidade hostil. Mas o fato de haver atos de humanidade não quer dizer que a guerra pode ter regras, e que se a guerra se rendesse às regras humanitárias seria algo aceitável. Quando MSF promove uma campanha dizendo que a guerra tem regras, se equivoca. A guerra tem uma só regra, a vitória, que pode estar sujeita a diferentes modalidades. Por exemplo, uma vitória pode estar preocupada em não causar muito sofrimento, ser contida. É toda a evolução vista desde a segunda metade do século XX. Mas isso não são regras, e sim concepções políticas de cada vitorioso. Quando o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) diz que a guerra tem regras, está no seu papel, porque é um ator diplomático, que possui um mandato das nações para promover esse direito. Mas que outros humanitários, que não têm esse mandato, se lancem nesta ficção, trata-se de um erro que me parece importante sublinhar. Esse palavrório moralizador, que se acompanha de pessoas que são pagas para escrever comunicados estúpidos, de consultores, são energias e recursos desperdiçados para construir uma postura sem nenhum fundamento sério. O nosso único fundamento sério é a ação de socorro que conduzimos, no quadro ético em que se situa. Mas quando começamos a produzir um discurso dizendo que se a guerra fosse conduzida segundo as regras prescritas pelo direito humanitário seria algo melhor, nos tornamos propagandistas de guerra. E isso é, no mínimo, um problema.
O senhor critica uma reverência excessiva ao direito humanitário, sem que se leve em conta as relações de força do mundo real…
Por exemplo, quando se bombardeia um hospital, em vez de dizer que isso é escandaloso e odioso, se acrescenta que é uma séria infração do direito humanitário. Assume-se uma postura de juiz bastante ridícula, porque entramos em negociações intermináveis sobre o limite em que o tiro é lícito e ilícito. Dizem que em determinado hospital há uma ala que abriga um ninho de terroristas, e que então seria um alvo legítimo. Segundo o direito humanitário, é verdade. Então, vai-se começar a discutir que parte do hospital poderia ser um alvo legítimo. Por isso falo de “necroética”, invertendo o sentido da palavra ética com o prefixo necro, que mostra que o direito humanitário é tanto um direito de fazer viver como uma autorização de matar. Não podemos perder isso de vista, senão não sabemos do que falamos. O direito humanitário é negociado por representantes de Estado, generais, diplomatas, juristas, e não por filantropos que querem um mundo melhor. É algo negociado sob lógicas de Estado, e, portanto, lógicas de violência. O fundamento do direito humanitário é reduzir a crueldade excessiva. Isso quer dizer que há uma crueldade não excessiva. Da mesma forma que a noção de guerra justa supõe que haja guerras injustas. Mas quem decide que as crueldades são ou não excessivas? Os próprios beligerantes. Um general vai lhe dizer que tal ação pareceu cruel, mas que na realidade permitiu avançar para uma vitória que possibilita pôr um fim à guerra, e que este número de mortos serviu para salvar um grande número de vidas. E não saímos mais disso, é um discurso infinito. É uma discussão de Estado Maior, e que serve para juristas, colóquios. Mas nós não devemos sair de nosso lugar, que é ao lado das pessoas, gritar nossa cólera e revolta contra nossos hospitais bombardeados, mas sem adotar esta postura de gendarme ou de juiz dizendo “vocês violaram o direito”. É a prova de que não sabemos mais muito bem onde estamos, e de que fomos conquistados por um tipo de vontade de excesso sem relação com as realidades de nossa ação e de guerras em geral.
Como vê os recentes escândalos de abuso sexual envolvendo organizações humanitárias como a Oxfam e a própria MSF?
Há entre 200 mil e 300 mil trabalhadores humanitários no mundo. Oxfam e Save the Children há muito tempo produzem relatórios sobre abusos sexuais no ambiente da ajuda internacional. São organizações que fizeram um esforço de atualização, sem pretender que o problema estivesse resolvido no seio de suas próprias organizações. É bom que este problema venha à tona. É preciso que assumamos esta realidade: trabalhamos com seres humanos, e alguns agem como canalhas. Não é porque estão sob a bandeira humanitária que não são canalhas. Isso existe em nossas organizações. Há abusos de poder que tomam uma forma sexual e também outras formas. Os abusos de poder não sexuais são numerosos nestes movimentos que são, hoje, bastante estruturados e amplos. Este tipo de coisa existe, infelizmente é a realidade humana. Apenas acrescentaria que isso também é utilizado por pessoas que têm outras ideias que não são a defesa das mulheres, principalmente na Inglaterra, mas que têm por objetivo desqualificar a ajuda internacional em seu conjunto. Vemos pessoas que surgem agora dizendo que é preciso diminuir o orçamento para as organizações internacionais, que tudo isso não serve para nada, apenas para que canalhas estuprem jovens. Não é por causa desta instrumentalização que se deve esconder o problema, mas não é justo esquecer o esforço que fazem as organizações humanitárias para tentar atacar esta questão. E como, além disso, Oxfam tem uma posição proibicionista em relação à prostituição — o que não é forçosamente o caso de outras organizações; MSF nunca tomou este tipo de posição —, isso dá outro relevo ao caso de pessoas de sua organização que solicitam prostitutas e fazem orgias. É como uma dupla infração.
Durante sua presidência na MSF, houve alguma queixa ou sinal de abuso sexual cometido por agentes?
Nunca. Na época, também não nos ocupávamos de estupros em tempos de guerra. Éramos cegos a essas questões. A questão emergiu nos anos 1990. Pode parecer chocante ou estranho. Não estou orgulhoso disso, mas é a realidade. Certamente que coisas se passaram, mas nunca soubemos de nada, não houve relatório, nenhuma informação, queixa. Era o silêncio total.
Para o senhor, guerras justas e guerras humanitárias se tornaram sinônimos, mas não pela boa causa. A noção de “guerra justa” do dispositivo “Responsabilidade de Proteger” adotado pela ONU (2005), e saudado por ONGs humanitárias, teria ampliado o espectro das razões para a deflagração de conflitos.
É toda a ambiguidade desta equivalência entre guerra justa e humanitária. As guerras consideradas justas hoje, em função da “Responsabilidade de Proteger”, desta vontade da ONU de ampliar o quadro de suas intervenções legítimas, são construídas como medidas de salvamento. Elas aparecem como guerras justas. A única forma de uma potência justificar uma guerra hoje é fazer um salvamento. Por isso me concentrei nas três guerras apresentadas como guerras de salvamento, a Somália, o Kosovo e a Líbia, para examiná-las sob ângulo dos critérios estabelecidos para estabelecer a noção de guerra justa. Deduzi que talvez existam guerras justificáveis, mas não há guerras justas, segundo os critérios clássicos, porque são todas guerras de primeiro recurso e não de último recurso.
Poderia explicar?
Na Somália, a ideia no início era de uma intervenção armada para proteger os comboios de víveres, mas se tornou uma guerra, considerada um conflito contra predadores para defender crianças. No Kosovo e na Líbia, pretendia-se impedir um genocídio, um massacre de massa. O surpreendente é que todas as três, por razões diferentes e convergentes, foram fundadas, no mínimo, por exagerações mentirosas, e, no máximo, como no caso da Líbia, por enormes mentiras. Um pouco de espírito crítico teria permitido desvendar essas mentiras rapidamente, mas no contexto entusiasta da intervenção foram levadas até o fim.
O senhor insiste no papel primordial da força de propaganda e das notícias falsas, as ‘fake news’, na lógica destas guerras.
Isso me impressionou na guerra da Líbia. Eram dados destaques a acontecimentos como o ataque a uma manifestação em Trípoli por aviões militares do regime de (Muamar) Kadafi, as valas com dez cadáveres, a coluna de tanques que iria destruir a cidade de Benghazi, mas sem a mínima prova, nenhum elemento factual. De uma certa forma, é o que encontramos em todas as guerras. As ditaduras não mentem mais do que as democracias quando se trata de guerra. Impressionante é o consenso em que se passou esta guerra, e o fato de que tudo o que era plausível foi confundido com o que era factual. Houve uma anestesia do espírito crítico, comparada ao que se viu em 2002/2003 nos EUA, no caso da Guerra do Iraque. Mas nos EUA, tanto o presidente como a mídia revisaram estas mentiras. Na França, não. Zoamos da credulidade dos americanos, mas fazemos o mesmo aqui. Há uma impunidade total, o que foi uma das motivações maiores para escrever este livro: entrar no detalhe das mentiras para mostrar sua enormidade.
O presidente Emmanuel Macron criticou recentemente a intervenção militar na Líbia, que teve a participação da França, a partir da iniciativa do então chefe de Estado Nicolas Sarkozy. Um relatório do Parlamento britânico também denunciou, em 2016, o fiasco desta guerra. O senhor acusa ainda a cegueira da mídia e dos intelectuais em relação às mentiras deste conflito.
Os intelectuais e a mídia foram ruidosamente favoráveis. Hoje, todo mundo descreve a Líbia como um desastre, mas ninguém quer se lembrar de que contribuiu para isso. Este é o principal escândalo.
O senhor lembra o exemplo constantemente citado por Sarkozy, de talibãs que cortavam os braços das mulheres que pintavam as unhas, e que seria uma mentira.
Esta história de braços cortados me surpreendeu, porque Sarkozy a repetiu várias vezes, e nunca ninguém se perguntou de onde vinha isso. Lembro quando jovem, Quando protestávamos contra a Guerra do Vietnã, da mentira de que os vietcongues cortavam os braços das crianças que tinham marcas de vacina feita pelos americanos. Era o mesmo tipo de mentira da guerra de 1914-1918, enunciada pelos
O senhor também lança suspeição sobre a capa da revista “Time”, de agosto de 2010, ilustrada pelo rosto da jovem afegã Aisha, de 18 anos, com o nariz decepado, e o título “O que acontece se deixarmos o Afeganistão”.
Sabe-se o que ocorreu. Os talibãs condenaram este horror. Não sou simpatizante dos talibãs, que fique claro. Normalmente, quando eles cometem atrocidades, as reivindicam. Querem intimidar, provocar medo, mostrar a impotência da população adversária. Há uma certa racionalidade em seu horror. E, neste caso, não há. Nunca os talibãs prescreveram mutilar ou desfigurar mulheres. Foi um marido canalha que a mutilou. Mas se quis fazer o símbolo da selvageria talibã, que justificava todo o esforço empreendido e as centenas de milhares de dólares gastos no mais longo engajamento militar da História dos EUA. Houve dois mil soldados americanos mortos no Afeganistão, e 15 mil afegãos. A jovem e bela Aisha, com seu nariz cortado, justificava a presença americana.
Sua condenação é dirigida também à ênfase do discurso de “defesa dos direitos das mulheres” no caso da intervenção no Afeganistão, enquanto violências contra o sexo feminino ocorrem na Índia, no México ou na Arábia Saudita, mas nestes países nada é feito.
A questão é justificar uma presença que ninguém compreende. Como entender que, uma vez com as bases da al-Qaeda destruídas, não houve uma retirada americana. Há uma segunda fase, e é esta que critico. O centro desta questão é que as tropas de ocupação não têm a possibilidade de transformar a sociedade afegã segundo seus desejos. Elas transformam, mas num modelo de ódio reativo, de rejeição de uma ocupação estrangeira, da imposição de uma autoridade exterior, que todos os povos do mundo recusam em dado momento. E para justificar esta presença, o tema moderno é o das mulheres. E a atualidade dos abusos sexuais nos mostra o quanto esta questão é importante e essencial. “Viemos liberar as mulheres da sua prisão, impedir que sejam mutiladas.” Em resumo, reivindica-se uma missão civilizadora. A França é especialista neste gênero. Aos EUA correspondem, sobretudo, uma missão de democratização. Mas, hoje, civilização quer dizer democracia liberal. E o corpo das mulheres se tornou a justificativa da guerra, mas em relação a um inimigo fantasmático que é o Islã. Por isso, os hindus da Índia ou os católicos do México, onde as mulheres sofrem massacres atrozes, estão fora de alcance do radar. Nestes casos, tratam-se de fatos culturais lamentáveis, para os quais não se dá muita atenção. Já a Arábia Saudita é um polo de estabilidade no qual não se quer mexer. A Arábia Saudita é um Estado Islâmico (EI) que deu certo. Se o EI implantasse um Estado hoje, seria parecido com a Arábia Saudita, digamos, pré-Mohammad bin Salman.
No caso da Somália, o senhor acusa uma intervenção militar fadada ao fracasso.
Uma intervenção armada que se baseia numa descrição distorcida e mentirosa, começa mal. É uma razão pela qual era muito cético, ao mesmo tempo constatando que muitos somalis estavam contentes de ver os americanos desembarcarem. Sua satisfação estava ligada à situação de desespero, perfeitamente compreensível. Mas com um pouco de recuo, vemos que as derrapagens já estavam inscritas no DNA desta intervenção. A primeira distorção é o discurso sobre a fome. Essa fome era bem real, mas havia começado no início de 1992. E lá, estávamos neste momento de regressão. Os bombeiros americanos vieram apagar um fogo que já estava próximo de terminar. Além disso, Boutros-Ghali (secretário-geral da ONU de 1992 a 1996) ampliou as estatísticas da fome, como se a metade da Somália estivesse em via iminente de extinção. O salvamento já era tão tardio que não tinha mais sentido. E a circunstância mais agravante: havia outras soluções possíveis, defendidas por diferentes instituições. Lançamos iniciativas para responder à situação de fome pelo aporte regular de víveres e em grande quantidade. Não era caro. Bem mais barato do que a intervenção americana. E a situação de insegurança, real, não era algo insuperável. A prova é que o CICV conseguia alimentar um bom número de pessoas com desvios de carga que se podiam assumir, porque o essencial chegava àqueles que necessitavam. Havia um tipo de imposto cobrado da ajuda humanitária, digamos que de 100kg de víveres, entre 50kg a 80kg chegavam ao destino. Mas Boutros-Ghali tinha outro projeto em mente: colocar em prática meios de intervenção que permitissem à ONU abrir uma nova página de sua história em relação ao período da Guerra Fria e do veto automático que paralisava a instituição. Isso se ajustava bem a George H. W. Bush na época, pois após a primeira guerra do Iraque, de motivações discutíveis por causa do petróleo, esta intervenção era imbuída apenas de princípios humanitários. Era uma política de imagem que não custava muito a Bush pai, pois ele já havia perdido a eleição presidencial. A Somália foi o momento inaugural destas guerras humanitárias que se viu novamente em outras ocasiões.
Já a guerra do Kosovo, considerada ilegal pois decidida fora do quadro do Conselho de Segurança da ONU, teve seu apoio. Por quê?
Em 1999, fui partidário desta intervenção, mas não exatamente pelas mesmas razões reivindicadas. Minhas motivações eram de que a Europa, no contexto da reaparição da guerra em sua periferia imediata, tinha uma responsabilidade particular. Defendo a ideia de uma geografia da responsabilidade política. O Kosovo é a vizinhança imediata da Europa, e me parecia legítimo que os europeus tomassem todas as medidas necessárias para impedir que um regime que reclamava o uso da força e a raça para se definir, algo que se assemelha a uma forma de fascismo, ressurgisse em seu território. O regime de (Slobodan) Milosevic usava a força para retraçar fronteiras sob a base da raça. Era uma motivação decente que a Europa se desse os meios para fazer reinar a ordem democrática liberal que, sob diferentes formas, é sua coluna vertebral. Onde contesto que seja uma guerra justa é que foi desejada pelos americanos e acompanhada de uma propaganda muito mentirosa. Para os americanos, tratava-se de instalar uma base da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Dito isso, se quisermos resumir uma guerra justificável, podemos dizer que a avaliamos sob o olhar da situação que prevalecia antes. O resultado final é preferível à situação inicial? Penso que a situação do Kosovo, hoje, é preferível à anterior. É uma situação mais estável e menos violenta. O regime do UÇK (Exército de Libertação do Kosovo) é extremamente criticável em termos de corrupção, de violência ou etnismo. Mas há contrapesos, começa-se a pensar em julgar membros da UÇK acusados de crime. Já é um início. Apoiei esta guerra, mas não sob o ângulo da guerra justa. Persisto a pensar que ninguém teve a vontade de fazer triunfar uma solução pacífica.
Qual sua análise sobre a guerra na Síria, que perdura desde 2011?
Vejo esta guerra como um desastre para a Síria. Serão necessárias uma ou duas gerações para se reerguer. Será preciso fazer um grande esforço coletivo, em primeiro lugar regional, mas também mundial, para ajudar a Síria a se reconstruir no momento em que este conflito chegar ao fim. Mas o que a Síria nos mostra hoje, de uma forma bastante cruel, é que o Ocidente — a Europa e os EUA —, não possui os meios de impor sua ordem além de suas fronteiras, de seus limites regionais. A época em que o imperialismo tinha um certo sentido, na medida em que tinha os meios de realizar seus objetivos, que fossem cínicos ou virtuosos — ou os dois ao mesmo tempo —, acabou. Nem a França, a Inglaterra, a Rússia ou os EUA têm os meios de instalar na Síria a ordem política que atenderia as suas expectativas. Muitas pessoas, sejam anti ou pró imperialistas, acreditam que o caos na Síria é devido a uma falta de vontade política do Ocidente. Mas que vontade política poderia se traduzir em medidas concretas colocando fim à guerra e construindo uma ordem democrática na Síria? Esses meios simplesmente não existem. É preciso aceitar que há um jogo de atores regionais e internacionais — o Irã, a Turquia, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes —, e de forças políticas internas. Toda a guerra tem um fim, e neste momento haverá um papel mais positivo e construtivo para a Europa e os EUA. Mas, hoje, não há isso. Hoje, trata-se de evitar a extensão desta guerra.
Quais as dificuldades enfrentadas pela ajuda humanitária na Síria?
Não se trata de um caso inédito nem representativo. Faz parte de certas situações que já tivemos no passado, em Angola, no Timor, em Moçambique, no Vietnã, em regiões do Afeganistão. Houve várias situações em que os humanitários não podiam intervir, ou que podiam fazê-lo somente de forma marginal. Hoje, o que temos a mais é o contraste entre o espetáculo da atrocidade e a onipresença do discurso humanitário na sociedade, o que não era o caso antes.
O clima de tensão envolvendo potências ocidentais, EUA em primeiro lugar, com a Coreia do Norte, pode gerar justificativas para uma guerra justa?
É um exemplo típico. Vemos que há uma tentativa séria de aproximação entre as duas Coreias, porque elas sabem o preço humano de uma guerra. O conflito de 1950-1953 causou quatro milhões de mortes e outros milhões de mutilados. Eles têm essa memória. Agora, nas Olimpíadas, entrou em jogo a diplomacia do esporte, uma tradição. E vimos o vice-presidente dos EUA, Mike Pence, recusar o aperto de mão com a delegada da Coreia do Norte, e manter um discurso belicista. Tudo se passa como se os EUA quisessem a guerra. Espero que as duas Coreias façam o possível para esvaziar os pretextos americanos. A Coreia do Norte e o Irã são dois alvos, hoje, dos EUA, e esperemos que estas guerras sejam evitadas.
Qual seu sentimento pessoal em relação ao mundo de hoje?
Otimismo e pessimismo são atributos psicológicos individuais, dizem mais sobre a pessoa do que sobre a situação. Penso que estamos num momento crítico da Humanidade, e há muitas razões para se enxergar um futuro negro. Mas recorro à frase de (Antonio) Gramsci, é preciso opor o otimismo da vontade ao pessimismo da inteligência. A análise da situação atual tem como nos deprimir. Mas se virmos bem, há também muitas iniciativas que podem nos reconfortar. É preciso apoiá-las. Este otimismo da vontade é uma obrigação que temos com as próximas gerações. Se encerrar em um fatalismo catastrofista é contribuir a bloquear o futuro das novas gerações.