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Roman Krznaric: “A pergunta do século XX foi ‘quem sou eu?’, e a pergunta do século XXI deve ser ‘quem é você?'”

Roman Krznaric: “A questão é saber se vamos aprender a usar o mundo digital de uma forma que possa contribuir para a empatia, a tolerância e o respeito”. © Kate Raworth

FERNANDO EICHENBERG

PARIS – A empatia pode ajudar a apaziguar o deletério clima político no Brasil e levar a transformações sociais no mundo? O filósofo australiano Roman Krznaric acredita que sim. Ao longo dos anos e de consecutivas obras, Krznaric se tornou um pensador e autor de sucesso, reconhecido arauto do movimento da filosofia prática, também chamada de filosofia popular. Em ensaios catapultados a best-sellers e traduzidos em mais de vinte idiomas – como “O poder da empatia”, “Como encontrar o trabalho da sua vida” ou “Carpe Diem – resgatando a arte de aproveitar a vida” -, o “pensador cultural”, um dos fundadores da The School of Life e ex-professor de Sociologia e Política da Universidade de Cambridge, reivindica a aplicação dos ensinamentos filosóficos na vida cotidiana, num resgate do tempo dos antigos gregos.

Krznaric teme o crescimento dos extremismos políticos, alerta para os reais e potenciais perigos dos rápidos avanços tecnológicos e das redes sociais e, nestes paradoxais tempos de muitas conexões e de enorme incomunicação, receita empatia e carpe diem para que as relações se tornam mais humanas. Além do aperfeiçoamento individual, seu objetivo maior mira na extensão dos clubes de filosofia prática, que pregam a promoção da inteligência emocional, em verdadeiros centros propagadores de mudanças sociais e políticas.

Em turnê pelo Brasil – com passagens pelo Rio, São Paulo, Porto Alegre a Chapada dos Veadeiros- , Roman Krznaric retorna nesta-sexta-feira para Londres, onde vive com sua mulher e seus filhos gêmeos.

Você aterrissou no Brasil em pleno período de campanha eleitoral, em um clima de acirrada polarização política, de agressões nas ruas e propósitos acusatórios nas redes sociais e nos grupos de Whatsapp. Como você está vendo tudo isso?

É incrível chegar no Brasil agora e sentir a polarização política por tudo. Não sou um expert em política, e não pretendo sê-lo, mas é o tipo de situação que divide profundamente. Não importa quem saia o vencedor nesta eleição, o país necessitará de um tipo de tratamento para as pessoas de lados políticos opostos. É um pouco como em situações de pós-guerra. Após uma guerra civil, é necessário reagrupar novamente a sociedade. E a empatia é um tipo de cola para unir novamente a sociedade. Como se você calçasse os sapatos de outra pessoa e pudesse entender como é a vida dela, como ela sente, pensa e vê o mundo. É a possibilidade de um pouco de humanidade. Isso é vital para a sociedade, manter tolerância e respeito, e que não seja comandada pelo ódio. Empatia é importante nestes momentos da História.

Você se surpreende, por exemplo, com as reações nas redes sociais provocadas pela atitude de Roger Waters em seus shows no Brasil, criticando os extremismos e o candidato Jair Bolsonaro?

Esse é um dos problemas das redes sociais. Quando uma eleição ocorre no Whatsapp, no Facebook e no mundo online, e as pessoas só dão atenção a quem partilha as mesmas opiniões que as delas. Elas não estão conectando com pessoas diferentes delas. Os brasileiros passam, em média, três horas e vinte e sete minutos por dia nas redes sociais. Quando tiverem 75 anos, terão passado nove ou dez anos de suas vidas online. É a maneira como estão formando suas personalidades – ou personalidades eletrônicas. E na cultura online, você pode ser anônimo. Pessoas me criticam no Youtube escrevendo coisas horríveis que elas jamais me diriam mirando nos olhos. Isso é uma significativa mudança política.

Na sua opinião, a internet e as mudanças tecnológicas atuam a favor ou contra a empatia e o carpe diem?

Não há nada inerente à tecnologia que seja anti ou pró empatia. Na tecnologia, somos como crianças aprendendo a caminhar. E ainda não somos muito bons nisso. No momento, permitimos Facebook roubar nossa atenção, nosso tempo. É uma lenta revolução em processo. A questão é saber se vamos aprender a usar o mundo digital de uma forma que possa contribuir para a empatia, a tolerância e o respeito. Há esperança. Houve este projeto, por exemplo, em que adolescentes brasileiros queriam aprender inglês de nativos do idioma. Mas eles não conheciam pessoas que tinham o inglês como língua materna. Então, esse projeto colocou-os em contato, via conexões de vídeo como Skype, com pessoas vivendo em lares de idosos em Chicago. Eram pessoas solitárias, querendo fazer amigos, e falavam inglês. O projeto conectou esses dois grupos e construiu empatia entre duas culturas. É algo muito simples. Há muito potencial para isso. Mas a maioria das plataformas de redes sociais nos conecta com pessoas semelhantes a nós e não com pessoas diferentes de nós. Não são projetadas para fomentar uma real curiosidade em relação a estranhos e a aprender com eles. Tento ser positivo em relação à tecnologia, mas, lá no fundo, não sou. Pessoas me solicitam para desenvolver um “aplicativo da empatia”, que seria “cool”. Na realidade, nós, seres humanos, somos o aplicativo da empatia. Vamos sentar e ter uma conversa. Não precisamos fazer isso num aplicativo, nós somos o aplicativo. Somos uma tecnologia afetiva para criar empatia.

Como você vê o desenvolvimento do movimento da “filosofia prática” hoje?

A filosofia prática realmente alcançou uma grande popularidade. A filosofia, finalmente, depois de ter sido sequestrada durante um século por acadêmicos e aprisionada nas universidades, voltou ao que os antigos gregos faziam muito bem, que era trazê-la para a vida do dia a dia. Penso que é algo positivo. É o que a The School of Life está fazendo, tentando transformar a inteligência emocional em um movimento. No meu trabalho, gosto de levar a filosofia popular a um grau acima, mais em transformação política e social. Esse é o meu projeto. No meu gabinete, tenho na parede um desenho de dois círculos que se sobrepõem. Num deles, está escrito “arte de viver”, e no outro, “mudança social”. Tento fazer meu trabalho no espaço onde os dois círculos se encontram. Empatia, por exemplo, é um tema sobre relações – com sua mulher, seus filhos, seus colegas de trabalho -, mas também sobre mudanças sociais e políticas, envolvendo pessoas diferentes de você e tentando criar tolerância na sociedade e desafiar estereótipos. Carpe diem trata de mudanças individuais e coletivas. Gosto de ver o movimento de filosofia popular indo nesta direção, porque na maioria das vezes trata muito do “eu, eu, eu”. A pergunta do século XX foi “quem sou eu?”, e a pergunta do século XXI deve ser “quem é você?”. Estou sempre numa dança entre o individual e o coletivo. Minha origem é como cientista político, e nos meus 20-30 anos pensava em como mudar as estruturas e instituições políticas. Depois, passei 15 anos trabalhando com filosofia popular, que trata mais sobre vida pessoal. Meu desafio intelectual é colocar essas duas coisas juntas.

As seções de obras de autoajuda e de desenvolvimento pessoal das livrarias estão em constante crescimento, em sua grande maioria centradas, como você mesmo assinala, no narcisismo, na busca obsessiva pela felicidade e no individualismo.

A indústria da autoajuda se desenvolveu a partir dos anos 1970, centrada no eu. Penso que há duas grandes razões para isso. Uma é que muito da autoajuda surgiu da psicologia e da psicanálise: “Olhe para dentro de si mesmo e você vai encontrar as soluções para a vida”. Isso encorajou um tipo de individualismo. Mas o individualismo também veio da cultura de consumo capitalista. Tudo se concentrou no eu, e perdemos a noção de que somos criaturas sociais. Mas penso que, hoje, isso está mudando. Gradualmente, se vê cada vez mais a autoajuda tratando de nosso lugar na sociedade, como parte integrante de comunidades, e de que descobrir a si mesmo é também descobrir outras pessoas. Meus escritos sobre empatia se tornaram populares em parte porque são um reconhecimento de que não basta olhar para dentro de si mesmo para encontrar as respostas sobre o significado da vida. Por isso que digo que necessitamos de uma combinação de introspecção e de “extrospecção”. Sócrates disse que para se viver uma boa vida é preciso olhar para si mesmo. Tudo bem, é uma boa ideia. Mas você também pode sair para fora de si mesmo, numa “extrospecção”, falar com pessoas de outras culturas, e é disso que trata a empatia.

Para você, as grandes mudanças na História ocorrem via transformações nas relações individuais...

Eu costumava pensar que a maneira de transformar a sociedade era mudando leis, instituições e políticas públicas. Mas olhando para a História, se nota que muitas mudanças fundamentais ocorreram por meio da forma como as pessoas se relacionam entre si, nas famílias, em comunidades, locais de trabalho. Muitas mudanças se deram da base para cima. Você pode ter vários acordos entre os líderes políticos, mas nunca vai realmente resolver os problemas da sociedade se, na base, as pessoas não se relacionarem com humanidade. Não digo que se deve jogar fora nosso individualismo. Seres humanos são em parte “homo empathicus” e “homo self-centricus”. Temos essa natureza dual. O problema é que a maioria das nossas instituições são construídas para o indivíduo, não para a sociedade. Educação, por exemplo. Nas escolas, há competições individuais. Um exame é feito individualmente, e você concorre com os demais. No mundo, precisamos cooperar com os outros. Isso ocorre também no trabalho, nas famílias. Por isso que defendo que se ensine empatia nas escolas, para incluir novos valores.

As redes sociais têm o nome de “social”, mas, em geral, tratam bastante do eu.

Sim, as pessoas compartilham no Facebook as grandes coisas que acontecem com elas. Mas as pessoas estão conectadas, existe um real aspecto social. Penso no movimento Occupy. Tudo começou online. A revista canadense Adbusters colocou o hashtag “occupywallstreet”, e em oito semanas se espalhou por 951 cidades e 82 países. E passou do online para o off-line, para as ruas. Há reais comunidades online. Por outro lado, muitos estudos mostram que quanto mais você se revelar narcíseo mais terá interações no Facebook.

Você diz que seu maior desafio é transformar estes clubes de filosofia em movimentos coletivos de mudanças sociais.

Esse é o meu ideal. Penso que o século XX foi a era do individualismo e que necessitamos recuperar os valores coletivos. Como sociedade, penso que estamos numa jornada. Leva tempo para criar esse tipo de transformação. Não penso que esses clubes de filosofia irão, de uma hora para outra, parar de falar sobre o individual. E nem devem. Somos também indivíduos, e temos de tomar decisões sobre nossas vidas, nossas relações pessoais. Mas penso que o anseio por valores coletivos está se expandindo. Vemos isso no crescimento das campanhas em torno do aquecimento global e outros movimentos que dizem respeito às futuras gerações. Claro que ainda há o eu e o individualismo, mas vemos cada vez mais pessoas questionando o nacionalismo ao mesmo tempo em que cresce o nacionalismo, como no Brasil, nos Estados Unidos, na Hungria. Os velhos tribalismos ainda são fortes, mas também há milhões de pessoas dizendo “Ei, minha visão é mais ampla do que apenas minha cidade ou minha nação”. Veja no campo econômico, por exemplo, os carros compartilhados, como o sistema de caronas BlaBlaCar. São pessoas compartilhando propriedade privada. Muitos jovens hoje já não compram carro. Tudo isso leva a criar uma sociedade e uma economia mais cooperativa e colaborativa. Mas, ao lado disso, vemos também o crescimento do narcisismo digital ou da extrema-direita. É uma luta social de valores opostos.

Para você, a terapia profissional e a filosofia acadêmica falharam em relação a uma demanda por soluções aos problemas da vida. Ambas teriam se distanciado do ideal dos antigos gregos, para os quais a filosofia deveria ser aplicada aos dilemas do cotidiano.

Penso que sim. Mas depende onde você se encontra em sua trajetória individual. Há um real valor em se questionar, se entender, o que faz, hoje, a filosofia popular. Mas penso que para muitas pessoas é uma via muito importante se envolver em outras coisas, como transformação social. Escrevi um livro chamado “Como encontrar o trabalho da sua vida”, sobre o significado e objetivos em seu percurso profissional, e que questiona a ideia de trabalhar apenas por dinheiro e status social. Talvez você possa encontrar um significado buscando um objetivo mais amplo, o que filósofos chamam de “razão transcendental”, para mudar o mundo, mesmo em pequena escala. As pessoas se dão conta de que a procura do significado tem de ser além do eu. Terapia pode ser algo útil para as pessoas questionarem suas prioridades, valores, e então abrir para algo novo, mais amplo. Mas para outras pessoas, só faz com que olhem cada vez mais para dentro de si mesmas, e acabam se perdendo.

Você ressalta que “carpe diem” é uma das mais antigas divisas filosóficas da História ocidental, do tempo do poeta romano Horácio, há 2.000 anos. Ao longo do tempo, o lema foi apropriado pela cultura popular e, como você lembra, virou canção da banda de heavy metal Mettalica, “Carpe diem baby”; foi tatuado no pulso da atriz Judi Dench para comemorar seus 81 anos, e sintetizou a mensagem do filme “Sociedade dos poetas mortos”, na voz do ator Rob Williams. O problema, na sua opinião, é que carpe diem foi, hoje, sequestrado pela cultura do consumo (Just Do It se tornou Just Buy It), pelo culto da eficiência (Just Plan It), pelo entretenimento digital (Just Watch It) e pelo movimento mindfulness (Just Breathe). Poderia explicar?

É um bom resumo do todo. A ideia de aproveitar o dia, carpe diem, como você disse, é muito antiga, de 2.000 anos, do tempo do poema de Horácio. Mas sempre houve várias formas de entender a ideia de carpe diem. Em inglês, é normalmente traduzido por “seize the day”. Em Brasil, na capa do meu livro está traduzido como “enjoy the day”, no sentido de apreciar os prazeres do momento. Mas o fundamento de todas as versões é a ideia de liberdade. E liberdade em relação à morte, no reconhecimento de que a vida é curta e o relógio está andando. A questão é como vamos usar a liberdade que conquistamos neste pouco tempo que temos, como vamos ser os autores de nossas próprias vidas. Era do que tratava o existencialismo. Qual o significado de liberdade? No tempo de Jean-Paul Sartre, havia a Segunda Guerra Mundial, e as ameaças à liberdade eram diferentes em relação a hoje. Ele estava preocupado com o stalinismo e a Igreja Católica, tudo o que impedia a liberdade política, sexual etc. Hoje, vemos outros tipos de ameaças. São estes sequestros que você citou. Just Do It se transformou em Just Buy It. Aproveitar o dia se transformou em aproveitar o cartão de crédito. Liberdade se tornou uma escolha entre marcas, entre Nike e Adidas, iPhone e Samsung. Há também a ideia da cultura digital, que substitui a experiência direta do mundo. Obviamente que se pode experimentar emoções reais online, se pode chorar ou rir, mas há uma diferença em assistir uma partida de tênis em Roland Garros e você mesmo disputar um jogo. Estamos perdendo essa experiência direta do mundo. Temos o Just Watch It, Just Tweet It, Just Share online. Mas também há ameaças políticas à liberdade, como estamos vendo com o crescimento dos extremismos no mundo. Por isso que digo que deveríamos passar do singular de carpe diem para o plural, o coletivo, aproveitar o dia juntos.

Por que você sugere que os jornais dominicais deveriam ter, além de uma seção de lifestyle, uma outra de deathstyle?

Costumo usar uma camiseta com as palavras morte (death) e liberdade (freedom), que estão muito conectadas. Penso que que os jornais deveriam ter uma seção de deathstyle porque na maioria das culturas se têm medo de falar da morte. As publicidades indicam que seremos jovens para sempre. Se você for ao México, no Dia dos Mortos, obviamente que se estará falando da morte, mas isso não ocorre na Inglaterra, nem na França. Se não trouxermos a morte para nossas vidas, de um modo saudável, vamos perder o potencial da vida existencial. Penso que seria uma boa ideia se a cada dia tivéssemos algo como uma “pausa de morte”: reservar alguns minutos para pensar na própria morte. Não pensar em você morto em um caixão, mas sim em que não vai estar aqui para sempre.

Nestes turbulentos tempos no Brasil, que leitura você recomendaria para os brasileiros?

Diria para não lerem um livro, mas talvez olhar algumas fotografias de Sebastião Salgado, um fotógrafo que capturou sem palavras diferentes vozes da sociedade. Diria para terem uma conversa com um estranho, um vizinho com o qual nunca tenham falado ou com o vendedor da banca de jornais. E falar com eles sobre vida, morte, amor, política, para além de uma conversa superficial, e tentar sair de seu pequeno mundo. Todos nós vivemos em um pequeno mundo. E essa conversa com um estranho poderá fazer mais por você do que qualquer livro, e mudar a maneira de ver o mundo. Essa é a aventura da vida, começar a questionar nossas crenças, para reconhecer os preconceitos e estereótipos que temos em relação aos outros. Livros fazem parte dessa jornada, mas espero que diálogos face a face também.

Como está a escrita de seu primeiro romance?

É um romance sobre empatia, e estou escrevendo também um novo ensaio, sobre “pensamento a longo prazo”. Raramente há políticos enxergando além da próxima eleição, em como criar uma civilização a longo prazo, tratando de questões como as mudanças climáticas, os riscos tecnológicos e todas essas coisas. Em resumo: enxergar além do período de uma vida.

Vai no sentido contrário de carpe diem

Em muitos aspectos, sim. É sobre enxergar longe. Algumas versões de carpe diem dizem respeito a viver o momento, mas outras se relacionam a aproveitar oportunidades. E podem ser oportunidades de alcançar objetivos de longo prazo. A mudança climática é um problema de longo prazo com uma urgência de fazer algo agora, numa ação de hoje para as futuras gerações.

A escrita de um romance é uma nova experiência para você.

É mais difícil para mim escrever não ficção do que livros de filosofia. Mas é uma boa maneira de explorar a política, de forma indireta. E se pode ser mais lúdico. O livro vai se chamar “Message to the gardener’s of England”. Na Inglaterra, há um programa de rádio aos domingos, às 14h, chamado “Gardener’s question time”, sobre jardinagem, com milhões de ouvintes. E escrevo sobre três jardineiros revolucionários que sequestram esse programa de rádio, e usam-no para passar mensagens subversivas e tornar os jardineiros do país em revolucionários políticos. É para ser um romance engraçado. Veremos.

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