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RIP: Sempé (1932-2022)

Sempé em sua casa, em Paris. FOTOS: © Fernando Eichenberg

FERNANDO EICHENBERG

Certa vez, em um domingo flanava pelo bulevar Montparnasse, em Paris, na companhia dos queridos amigos Luis Fernando Verissimo e Lúcia, e comentei que há pouco tempo havia entrevistado o grande Sempé em sua casa, no último andar de um prédio ali perto de onde estávamos. Verissimo, fã do desenhista francês, de pronto respondeu positivamente à minha pergunta se gostariam de conhecer o endereço. Caminhamos alguns minutos e logo estávamos em frente ao prédio. Mostrei o interfone, e recordo de Verissimo olhando para o alto, tentando imaginar, talvez, naquele momento o incansável Sempé debruçado em sua mesa, lápis à mão, criando mais uma de suas obras-primas. Havia entrevistado Sempé para o hoje extinto caderno Prosa & Verso, de O Globo. Recebido generosamente pelo anfitrião, além da ótima conversa, aproveitei para, com o seu consentimento, metralhar com minha câmera o personagem e o entorno. Jeans-Jacques Sempé nos deixou nesta quinta-feira, 11 de agosto. Aqui o resultado de nosso encontro, também publicado no segundo volume de meu livro de entrevistas, “Entre Aspas 2” (L&PM).

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As amplas janelas do sétimo e último andar do apartamento, um loft-ateliê em um prédio do bulevar Montparnasse, em Paris, oferecem uma vista impressionante. Do imenso tapete em altitude formado por disformes telhados acendrados, sobressai-se ao longe, no alto de uma colina, a diminuta e alva  imagem da basílica Sacré Cœur. A enorme mesa de trabalho do desenhista francês Jean-Jacques Sempé está colocada de frente para essa invejável tela panorâmica, aberta para um vasto céu. Sentado diante de seu belvedere privado, o olhar distante na paisagem, Sempé – a solitária assinatura que se tornou mundialmente conhecida – revela com certa nostalgia: “Não são os telhados de Paris que acho interessante. Gosto muito de ver as pessoas. Os ônibus, os carros, as pessoas, gosto disso. Daqui de cima eu não vejo nada. Vivo aqui há uns oito, nove anos. Antes morava na praça Saint Sulpice, no primeiro andar, e de lá eu enxergava as pessoas”.

A observação não poderia estar mais em sintonia com a sua obra, que reflete, com a sensibilidade de um artista singular, diferentes nuances das relações em sociedade e os mistérios e a simplicidade da alma humana em cenas banais ou inventivas do cotidiano. Sempé é o ilustrador da célebre série “O pequeno Nicolau”, escrita por seu grande e saudoso amigo René Goscinny (1926-1977). É o desenhista de mais de uma centena de capas da prestigiada revista americana “New Yorker”, peças de inimitável talento artístico. É o criador dos personagens Raul Taburin, Marcelino Pedregulho e Senhor Lambert. E é, sobretudo, o autor de milhares de cartuns, publicados e reproduzidos nos cinco continentes, nos quais, em anedotas gráficas de tracejado leve e delicado, destila um humor álacre e melancólico, provocador de cúmplices sorrisos inesperados.

Estava com tudo mais ou menos encaminhado para entrevistar Sempé no final de 2009, mas minha mudança para Washington, nos EUA, acabou por adiar indefinidamente o encontro. De volta a Paris, foi uma feliz surpresa poder ter a oportunidade de finalmente encontrá-lo, no final de 2012. Ao me receber em sua residência, numa tarde de sábado, o desenhista, amante confesso de futebol, não se privou, de saída, de um comentário: “Eu não quero decepcioná-lo, mas o meu jogador favorito não era Pelé, e sim o holandês (Johan) Cruyff. Ele era extraordinário, elegante”, desculpou-se o anfitrião e notório craque do desenho humorístico.

Antes de começarmos a entrevista, solicitou uns minutos para fazer algumas ligações telefônicas, para convidar amigos para uma degustação de ostras frescas em sua casa, à noite. “Eu moro sozinho, mas há pessoas que vêm me ajudar. E tenho amigos”, frisou. Nesse meio tempo, me entretive admirando a decoração de sua casa. Autor mas também colecionador de desenhos, as paredes de seu duplex parisiense estão cobertas de ilustrações compradas em galerias ou de particulares. As molduras acolhem obras de Saul Steinberg (1914-1999), William Steig (1907-2003) ou de seu fiel amigo Chaval (1915-1968). “Sou muito feliz por ter comprado estes desenhos. De vez em quando eu tiro um deles da parede para dar um beijo. Eu os adoro!”, exclamou, o sorriso estampado no rosto, ao desligar o telefone. Ele também evoca sua relação com Goscinny: “Era meu grande amigo, sou muito triste por ele não estar mais aqui. Quando nos conhecemos, acho que eu tinha 22 anos, e ele devia ter uns 30. Faz muito tempo. Era muito talentoso”.

Então com 80 anos, seus movimentos e sua fala haviam desacelerado devido a um recente acidente vascular cerebral (AVC). Sua produção criativa, embora mais lenta, não cessou, mas o imprevisto alterou a sua relação com o mundo. “Fiquei furioso com isso. Mudou a minha vida. Antes eu era bastante autônomo. Andava todo o tempo de bicicleta, mas desde o acidente não posso mais. Ia por todo o lado pedalando. Às vezes estava chovendo, eu chegava na casa das pessoas num estado lamentável, mas todos já estavam acostumados com isso, sabiam que eu me deslocava o tempo todo de bicicleta. Nos meus desenhos há muitas bicicletas. Não sou a mesma pessoa depois do acidente”, admitiu. Fez uma leve pausa, e acrescentou: “É muito estranho não ser a mesma pessoa”.

Em sua mesa de tampo inclinado repleta de imensas folhas brancas e virgens, circundada por penas e tintas de todas as cores, repousa um trabalho inacabado, previsto para ilustrar mais uma primeira página da “New Yorker”. A obra retrata uma recepção num jardim, com as dezenas de convivas aglomerados, representados nas mais variadas situações corriqueiras de um evento social, com o característico e apurado humor do desenhista. “Comecei este desenho há quatro ou cinco anos, e de vez em quando voltava a trabalhar nele. Achei-o novamente na semana passada, e vou tentar terminá-lo. Não sei ainda o que estou fazendo, vamos ver. Aos poucos dou um toque aqui e ali. O que você acha? Você gosta? Dá para ver que isso aqui em volta são árvores?”, indagou, como se fosse um artista inseguro e iniciante. E prosseguiu como entrevistador: “Como você conheceu meu trabalho? Onde via meus desenhos no Brasil? Que livros meus foram publicados no Brasil?”.

O cigarro é onipresente entre os dedos de suas mãos direita ou esquerda, levado à boca em contínuas tragadas intermitentes. Mas, apesar da fumaça, nota-se,  depois de algum tempo, que o tabaco nunca apaga e não emite cheiro. Trata-se, na realidade, de um cigarro eletrônico. “Foi um médico que me recomendou: ‘Experimente isso e você verá’. Mas é ridículo. Você nunca fumou? Não tem nada a ver com o cigarro normal. Há os mesmos gestos, isso ajuda. Mas é completamente ridículo!”, disse, rindo.

Nascido em 1932, em Bordeaux, Sempé, aluno rebelde, foi expulso do colégio e começou a trabalhar aos 17 anos. Após uma experiência mal-sucedida fazendo entregas de bicicleta para um comerciante de vinhos, alistou-se no Exército. Seus primeiros desenhos de destaque surgiram no início da década de 1950, aos 19 anos, menos por impulsividade artística e mais para ganhar a vida e os 1,50 francos franceses que recebia pela realização de cada encomenda. Sua primeira recordação de ter visto um desenho na vida ainda é nítida em sua memória: “Eu me lembro muito bem. Foi um desenho humorístico muito ruim, muito mal feito. Eu era muito pequeno. O desenho estava num jornal, não me recordo muito bem do que se tratava, exceto que o personagem principal tinha um buraco na sua calça. Não sei que idade eu tinha, não sei nem se já caminhava, mas vi este desenho, e ele me marcou. Por quê? Não sei. Já meu primeiro desenho foi a figura de um marinheiro. Também não sei por quê, só sei que era muito criança”.

Seu ofício é árduo, costuma dizer, pela necessidade de, por meio do desenho, “retranscrever uma forma de verdade”. “Não se trata, necessariamente, da realidade. É uma forma de verdade. Por vezes, há crianças ou pessoas que nunca viram um desenho, e, ao verem, reconhecem os traços. Os traços não existem na natureza. Se as pessoas se interessam pelo desenho, é porque ele mostra uma certa verdade da qual elas não tinham consciência. Uma verdade nova. É um tipo de escrita”, resumiu.

Sempé assinala a diferença entre espírito – “rir dos outros” – e humor – “rir de si mesmo”. Seus desenhos, nota ele, relevam o humor, como “autorretratos”, mesmo de forma inconsciente. “O humor está relacionado a nós mesmos, e o espírito zomba dos outros – o que por vezes é algo charmoso, engraçado, mas eu prefiro o humor. Às vezes me dou conta, seis meses, um ano depois, de que um desenho que fiz tinha algo de autorretrato. Vejo uma pessoa levada pelos acontecimentos, sempre fazendo bricolagens para tentar ajeitar as coisas. Eu sou um pouco assim. E sou completamente distraído. Sempre fui meio à parte de tudo. E a inspiração para desenhar vem de mim. Eu preferiria que a vida lá fora me desse todo dia algo para me inspirar, mas não, está aqui dentro, neste espaço. Mas não sei de onde vem”.

As ideias “vêm e vão”, diz, sem uma lógica determinada: “Nunca se sabe como vai ser. É assim. Acontece de tudo o que é jeito, não há método. O método é a paciência. E eu não tenho nenhuma paciência. Mas a gente acaba se habituando”, resigna-se. “Minha rotina se tornou um pouco diferente desde meu acidente. Mas me acordo, bebo um café, e me precipito para minha mesa de desenho. Às vezes, fico aqui todo o dia, outras, não. Nada é sempre igual”.

Para elucidar sua relação com seu métier, recorre a uma entrevista, concedida por um ator francês a uma revista semanal, que leu há alguns anos: “A jovem jornalista lhe fazia perguntas do gênero: ‘Sim, mas e esse prazer que se tem quando se acha um personagem?’. E ele responde: ‘Sim, mas não se esqueça nunca de uma coisa, mademoiselle, trabalho é s-o-f-r-i-m-e-n-to, não é prazer’”,  conta ele. “De vez em quando temos prazer, mas na maior parte do tempo é sofrimento. E após o trabalho terminado, acontece de, dez anos depois, eu dizer a mim mesmo: ‘Olha, isto não é de todo ruim’. Infelizmente, também me ocorre notar: ‘Mas o que é esse horror?’. Há alguns desenhos meus que odeio. Infelizmente, muitas vezes estão impressos em livro, e isso é horrível”.

Se o desenho exige muita atenção e detalhes, o silêncio ao redor é imperativo para a concentração do desenhista. Mas se a ilustração corresponde, por exemplo, a uma grande árvore com folhas – e mostra o atual trabalho sobre a mesa -, a música estará presente no ambiente. Nesse caso, a trilha sonora é praticamente invariável, e com uma nota brasileira: “É terrível, ouço sempre os mesmos: Debussy, Ravel, Beethoven, Bach, Erik Satie, Duke Ellington… Nada de original. Mas há um brasileiro que adoro, que é (Tom) Jobim. Que músico maravilhoso! Suas harmonias, seu senso de melodia, é delicioso. Eu o encontrei certa vez aqui em Paris, ele conversava com pessoas que eu conhecia. Eu o adorava. Fiquei muito triste quando ele morreu”. O último concerto a que assistira tinha sido uma apresentação recente de alunos do conservatório de música, com Ravel e Debussy no programa: “Eu estava maravilhado”.

Questionado sobre seus arrependimentos, replica: “Na vida?”, faz um silêncio, e depois retoma: “Claro, tenho muitos arrependimentos. Mas sempre se dá um jeito. O que mais lamento é não saber ler música. Sou um analfabeto em música. É incrível. Não tinha tempo para aprender, trabalhava como um louco, o tempo todo”. Aficionado pelo jazz, Sempé recorda “muito bem” a primeira vez em que viu em cena John Coltrane e Count Basie, nos palcos de Nova York. O desenho humorístico, segundo ele, se assemelha ao jazz em sua “humildade”: “Porque é preciso sugerir, com muita precisão. Não se deve fazer em demasia. Isso é algo muito difícil. Vejo nisso muita relação entre o desenho e o jazz. Há esta humildade”, explica. Num canto da sala ao lado, há um toca-discos abandonado. “Com o vinil é possível entrar na música, é bem melhor. Mas esta vitrola quebrou há três meses, e não se pode consertar. Tenho alguns vinis comigo, mas a maioria acabou ficando na casa de minha ex-mulher”.

Nos músicos, mas também nos pintores – Rembrandt, Mondrian ou Monet – e escritores – Virginia Woolf, Flaubert ou Maupassant – que mais aprecia, ele reconhece uma certa melancolia, mas evita citar influências. “Eles não me inspiram. Eu os admiro, eles me impressionam, eu os acho imensos, grandes. Sim, há melancolia em Ravel, que adoro. Eu mesmo me sinto um melancólico. Mas não se pode ter medo da melancolia, ela faz parte da vida. Temos amigos que desaparecem, lugares que já não são mais os mesmos. O tempo que passa nos torna forçosamente melancólicos. Talvez isso ajude de alguma forma na criação, mas não saberia dizer como”.

Sempé se sente um homem fora de seu tempo. Em um planeta cada vez mais obcecado pela velocidade, diz experimentar uma crescente angústia numa era regida por autoestradas, para a qual o desenho humorístico funciona como um tipo de antídoto. “Eu me sinto assim. Sou mais angustiado. Mas esta é minha personalidade. Sempre fui angustiado. Quando tenho um encontro e a pessoa está atrasada, fico enlouquecido. O que aconteceu? Houve um acidente? Por isso peço sempre aos meus amigos: ‘Sejam pontuais!’. Senão me preocupo. Mas vivo o sentimento de continuar, e de me dar conta de que as coisas são ainda mais difíceis do que pensávamos. Mais avançamos, mais vemos que tudo é difícil. Tudo vai rápido demais, e não temos direito de pedir explicações. Tudo é violento. Não sou feito para isto, para a velocidade e a violência. Não temos mais comunicação, nos lançam coisas, e você deve fazer a seleção, mas não temos tempo de fazer a triagem. É muito difícil, hoje, ter relações”, constata.

Ele olha pela janela, e após mais uma tragada eletrônica, continua: “Somos prevenidos contra tantas coisas. Veja nós dois, não nos conhecíamos, nos encontramos, e procuramos simplesmente falar um com o outro. Se nos prevenirem, se me disserem que você fez isso e aquilo, e mais tudo o que eu fiz, é muito difícil conservar um tipo de naturalidade. Temos já um monte de informações prévias, e muitas delas falsas. Muito falsas”.

Seu saudosismo aponta para uma época em que nas conversações “havia silêncios”: “Há pessoas que falam todo o tempo. Na tevê, as pessoas não param de falar. Eu fico desorientado com isso. Sou uma pessoa normal, às vezes vejo TV, tenho celular. Mas não tenho computador. Todas as pessoas que possuem um computador, dizem: ‘Meu computador está travado, é horrível, preciso fazer algo!’. Eu não sinto tanta necessidade assim de um computador”.

Sempé vê o público cada vez mais atraído pela caricatura política e pela história em quadrinhos (HQ), e lamenta a perda de interesse pelo desenho humorístico “fantasista” . “Queremos hoje que tudo seja muito formatado, perdemos a fantasia. Os quadrinhos não são para mim, não é o meu universo. Eu preciso do branco em volta. Mas uma HQ que adoro ler é ‘Tintin’. É simples – não há poeira, não há micróbios, sempre se dá um jeito para tudo -, engraçado, simpático. É formidável. Não conheço a HQ moderna. A minha paixão é o desenho humorístico. Não podemos acompanhar tudo, somos obrigados a nos especializar”.

O sucesso de “O Pequeno Nicolau” é, para ele, um enigma. Por que crianças do século XXI se reconhecem no personagem surgido em 1959, nas páginas do jornal “Sud-Ouest Dimanche”? “É um enorme mistério que não consigo compreender. Uma amiga me disse um dia algo muito engraçado: ‘Você sabe, eu não entendo o sucesso do Pequeno Nicolau, pois quando você e Goscinny o faziam já era algo antiquado, e foi ficando cada vez mais antiquado’. Eu lhe disse: ‘Você vê, é por causa disso, é cada vez mais antiquado, mas se compreende mesmo assim’, contou, sorrindo.

A primeira capa de sua autoria na revista “New Yorker” foi impressa em 1978, um antigo sonho do jovem desenhista, e um acontecimento do qual, mais uma vez, diz se recordar “como se fosse hoje”. “Era algo que eu queria muito. Eu fiz 104 capas para a “New Yorker”, é algo enorme!”, orgulha-se. O trabalho para a reputada publicação americana requeria, ainda assim, algumas curiosas adaptações: “Eles fazem uma revista, sabem fazê-la, sabem o que querem. Mas se eu desenho uma janela francesa, os leitores vão se perguntar o que é. É preciso que faça um outro tipo de janela, para que as pessoas possam compreender. Muitas coisas são bem diferentes”.

Nova York e Paris se tornaram duas cidades-referência em sua trajetória, mas sempre inapreensíveis e infinitas: “Nunca se conhece bem cidades como Paris e Nova York, são dois monstros. Mas, para mim, Paris é a elegância, e Nova York, a força e a beleza. Prefiro Paris, porque não falo inglês. Considero muito importante falar a língua”.

O compositor Erik Satie, um de seus preferidos, afirmou ao completar meio século de vida: “Durante toda a minha juventude me diziam: ‘Você verá, quando fizer 50 anos’. Eu tenho 50 anos. Não vi nada”. O octogenário Sempé, de uma certa forma, partilha esse sentimento. “Não temos a impressão de que vimos alguma coisa. Sempre nos perguntamos como tudo é estranho. Você também deve se dizer às vezes: ‘É estranho’, não?”, pergunta.

“Otimista” em relação ao futuro, ele acredita que haverá um número maior de “coisas extraordinárias” descobertas e produzidas pelo homem. Mas não deixa de acrescentar uma pincelada sombria ao cenário presente: “Por outro lado, o ser humano está cada vez mais perdido. Isso faz rir muita gente, mas, com as dúvidas que temos sobre a existência de Deus, as pessoas andam bastante perdidas”. Sobre a recente polêmica provocada pelas caricaturas do profeta Maomé, publicadas pelo hebdomadário satírico “Charlie Hebdo”, preferiu não se manifestar. “Não quero falar disso. Acho algo catastrófico. É a volta à Idade Média”.

Na janela, as cinzentas nuvens de chuva cederam lugar a um entardecer de horizonte desimpedido. A entrevista chegava ao seu fim, mas ele se colocou à disposição para uma sessão de fotos, enquanto avançava o desenho na página sobre a mesa: “Fique à vontade, faça as fotos que quiser”.

Para Jean-Jacques Sempé, a melhor definição do homem ainda é a que o descreve como “um animal inconsolável e alegre”: “Por 20 anos pensei que o autor dessa frase fosse Pascal (filósofo, 1623-1662), e eu dizia a toda hora: ‘Sabe, um dia Pascal falou que…’. Mas amigos eruditos pesquisaram, e descobriram que Pascal nunca disse isso. Eu me cobri de ridículo por muito tempo (risos). Parece que foi um autor de teatro, Jean Anouilh (1910-1987), quem deu esta definição. Mas quem quer que tenha sido, penso que é maravilhosa: somos inconsoláveis, porque vamos morrer, e apesar de tudo alegres, porque continuamos. É preciso ser alegre para continuar”.

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