FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – O mundo vive um clima de fatalismo no limiar de uma nova era da modernidade, marcada por uma profunda crise da democracia eleitoral representativa, que já não supre as aspirações emancipatórias dos cidadãos. O desencanto democrático estimula o crescimento dos populismos, principalmente na Europa. Neste período de transição, emergem, cada vez mais, líderes políticos híbridos, na ideologia e na ação. Esse é o diagnóstico traçado por Pierre Rosanvallon, especialista em História Moderna e Contemporânea do Collège de France e fundador do grupo de reflexão República das Ideias, em seu mais recente ensaio publicado na França, “Nossa história intelectual e política (1968-2018)”. Rosanvallon conversou com O GLOBO sobre o “preocupante desmoronamento democrático” nas sociedades contemporâneas em sua sala no Collège de France, em Paris.
Em seu ensaio, o senhor diz não se contentar em “organizar o pessimismo” reinante, mas em tentar inverter a tendência deprimente de nosso tempo. Como o senhor define, hoje, o estado do mundo?
Este estado da sociedade francesa que mistura a perplexidade e o desencanto, a morosidade e a cólera, são sentimentos que vemos em todas as sociedades contemporâneas. Deste ponto de vista, a situação francesa não é diferente do que vemos na América Latina, na Ásia, na América do Norte. É um contexto mundial geral, com suas especificidades. A palavra mais forte que resume todos estes sentimentos é “impotência”, numa insatisfação que favorece uma democracia negativa, sob formas de comunidades de rejeição. São paixões da ordem da repulsão, bem mais do que da atração, que se desenvolvem por todo lado.
O que seria esta nova era da modernidade, na qual, segundo o senhor, estamos adentrando?
Estamos em um momento de transição para a entrada numa nova era da modernidade democrática, que tem várias dimensões. A principal delas é a dimensão política e democrática. A primeira revolução foi a dos direitos humanos, suprimir a dominação absolutista e colonial. Num segundo momento, foi a luta pelo
Na sua opinião, as sociedades contemporâneas se definem hoje, cada vez mais, por suas minorias e não pelas escassas maiorias eleitorais…
As eleições se tornaram uma autorização de governar. Toda a ideia democrática foi pensada como uma ideia de unanimidade: desde que se colocar fim a uma pequena aristocracia, haverá uma sociedade unificada, e todo mundo terá os mesmos interesses. E se viu que a modernidade não é a simplificação, mas a complexidade da sociedade, com oposições de ideias, de interesses, de situações. Cada um de nós é um cidadão contraditório. Defendemos coisas como consumidores que podemos rejeitar como produtores. Não se trata apenas de escolher um dirigente, mas colocar em funcionamento métodos democráticos de construção da unidade de um país. Mesmo alguém como Karl Marx dizia que no dia em que houvesse o sufrágio universal todos os problemas seriam resolvidos, porque os interesses da maioria seriam satisfeitos automaticamente. O que ele não viu foi que a sociedade não é unificada. A grande ilusão dos populismos é o retorno a um tipo de unanimidade.
O senhor diz que o populismo se reivindica como uma das respostas a esse desencanto democrático e que será um fenômeno importante neste século. Por quê?
Os populismos dizem que possuem a solução democrática e também a econômica, o nacional-protecionismo. Argumentam que a justiça social poderá ser organizada no momento em que não houver mais uma sociedade de concorrência: o protecionismo constrói a coerência social, e se terá uma democracia de unanimidade.
O senhor assinala a existência de um populismo de direita, mas também a emergência de populismos de esquerda e de outros ainda inclassificáveis, como o movimento Cinco Estrelas, na Itália.
O populismo na Europa era fundado essencialmente na questão da imigração, de extrema-direita. Mas se vê, hoje, que o populismo é também uma atitude face à democracia e à economia. E emergiu um populismo de esquerda. Aqui na França, é representado por Jean-Luc Mélenchon (do movimento França Insubmissa). Na Alemanha, se vê hoje este movimento Aufstehen, nascido de uma cisão do Die Linke. E na América Latina, o populismo sempre foi de direita e de esquerda, misturava os dois. Na Argentina, a figura de Juan Domingo Perón (1895-1974) é emblemática, era amigo dos fascistas e ao mesmo tempo cúmplice dos sindicatos. O colombiano Jorge Eliécer Gaitán (1898-1948) era um anticapitalista convicto, citado por Hugo Chávez e celebrado por Fidel Castro. Mas é preciso assinalar a diferença entre os movimentos populistas, que se definem por ideais e ideologias, e os regimes, que são a passagem à ação. O populismo dos governos polonês e húngaro se define pela xenofobia e uma relação muito problemática com a democracia, e, ao mesmo tempo, na economia são neoliberais e recebem muitos recursos da União Europeia. O regime de Nicolás Maduro, na Venezuela, também tem uma visão restritiva da democracia, mas uma abordagem de economia fechada, que produziu a catástrofe que se vê hoje.
Como o senhor define os governos de Vladimir Putin, na Rússia, e de Recep Tayyip Erdogan, na Turquia?
Eles são populistas, essencialmente, na dimensão política. Porque são economias que comercializam com o mundo inteiro. São democracias eleitorais, mas os contrapoderes não são levados em conta, e a imprensa é cada vez mais silenciada. As próprias eleições são manipuladas. Mas não são ditaduras, que suprimem as eleições. São democracias limitadas, definidas pelo elo pessoal entre o líder e o povo. Essa é a visão de Putin. De um certo ponto de vista, pode-se dizer que a Turquia e Rússia são o modelo do cesarismo bonapartista. A figura da História à qual Erdogan e Putin mais se assemelham é Napoleão III, que chegou ao poder organizando um plebiscito. Ele tinha toda uma teoria da democracia que se parece à visão que Putin chama de “democracia soberana”.
E Donald Trump, nos Estados Unidos?
Por certos aspectos, pode-se dizer que Trump é populista. Mas, ao mesmo tempo, é um personagem híbrido, uma mistura de capitalista ultraliberal e de protecionismo, o que normalmente não combina. Trump ilustra bem esta categoria. Quando se fala, hoje, de populismo, não se deve apenas ver um conjunto coerente, mas algo alimentado por elementos que designam um clima geral. Não se pode dizer que Trump se parece com Chávez. Também não se pode dizer que Emmanuel Macron é populista. Ao mesmo tempo, ele tem uma visão do face a face da autoridade com a sociedade impressa por uma atmosfera do populismo. A particularidade de Trump é que, ao lado desta atmosfera populista, há a variável individual de caráter, talvez mesmo psiquiátrica, que acrescenta elementos de especificidade muito grande, e a atualidade destes últimos dias revela que ela é, inclusive, decisiva. Além das posições políticas, há o problema de uma personalidade perturbada.
O senhor classifica Macron como um “republicano autoritário”, a mistura de um liberal clássico com a cultura da direita tradicional.
Neste período de transição em que vivemos, há muitas personalidades e ideologias híbridas. Liberais, socialistas, conservadores, progressistas misturam diferentes elementos. Além do caso de Macron, é uma característica destes tempos, em que vemos personalidades híbridas, entre dois ou três mundos, e outras, mais reativas, do populismo como uma cultura política. Macron é um liberal clássico, mas que não gosta do contrapoder. Vemos emergir personalidades compostas assim em períodos de desencantamento.
E como explicar a atual agonia da esquerda tradicional, encurralada, como o senhor aponta, entre a “impotência de uma esquerda de postura” e o “realismo estéril de uma esquerda de governo”?
A esquerda está nesse estado, hoje, porque não fez uma análise geral. Pensava que seu único problema era de adaptação: passado o tempo da visão coletivista revolucionária, seria preciso uma abordagem mais reformista, social-democrata. Achou que o problema era simplesmente um aggiornamento, e não uma redefinição estrutural das condições de emancipação. Mirou fora do alvo, se dizia que a esquerda era demasiado utopista, que deveria ser mais realista. Mas é preciso saber que visão se tem do momento presente para poder agir de maneira eficaz.
A esquerda tradicional acabou na França?
Se olharmos a esquerda a partir de partidos que historicamente a definiram, sim, com um Partido Comunista (PCF) em torno de 2% dos votos, e um Partido Socialista (PS) com cerca de 6%. Não se pode esquecer que quando François Mitterrand chegou ao poder (1981), o PCF e o PS tinham mais de 20%. É um tipo de desmoronamento interno, com causas principalmente intelectuais. Claro que há o desgaste das personalidades, mas não é essa a principal explicação. A questão é que todos os pontos de referência, os elementos de linguagem e de visão do mundo da esquerda eram adaptados a uma modernidade passada. Eles tiveram seu papel em seu tempo contra o conservadorismo. Mas, hoje, a esquerda está desamparada e falta se adaptar a essa terceira era da modernidade. Hoje, ainda fala de reformismo, de pragmatismo. Eles viram a ruptura com o passado como uma adaptação comportamental e não como uma redefinição intelectual radical. A radicalidade não está na expressão de um sentimento de intransigência e de revolta, mas sim na compreensão da raiz dos problemas.
O resultado das recentes eleições na Suécia, com um aumento dos votos para a extrema direita, e o crescimento do populismo na Europa preocupa?
É muito preocupante ver que o crescimento dos populismos é particularmente marcado na Europa. Se as eleições na Suécia atraíram tanta atenção é porque se trata justamente do país que simbolizava melhor na Europa o sucesso da modernidade. E ver essa reviravolta possível na Suécia é o sinal mais violento e estrondoso disso. Ao mesmo tempo, não se deve perder de vista que a Europa foi o continente da invenção da democracia institucional moderna, mas também o das maiores perversões da democracia no século XX. Não esqueçamos que o fascismo, o nazismo e o stalinismo são criações europeias. Não se pode, felizmente, comparar o crescimento dos populismos com isso. Não se trata de uma repetição desses horrores absolutos, mas, ainda assim, é uma repetição do desmoronamento democrático, em versão mais suave e menos radicalmente dramática.