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Nicolas Hulot e Sebastião Salgado: Humanidade está na encruzilhada entre a barbárie e a civilização

Trilhas abertas por madeireiros na Floresta Amazônica, em imagem feita por Sebastião Salgado: hoje, o fotógrafo elabora ambicioso projeto de proteção da região. © Sebastião Salgado/Amazonas Images

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Nicolas Hulot, reputado ativista ecológico francês, recusou todos os convites para integrar os governos dos presidentes Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy e François Hollande. Mas acabou se rendendo aos argumentos de Emmanuel Macron, eleito em 2017 ao Palácio do Eliseu, e hoje é ministro da Ecologia, o terceiro posto na hierarquia do governo. Em 2019, Hulot pretende organizar, em Paris, um grande encontro internacional de povos autóctones, com a participação de chefes de Estado do mundo inteiro.

Sebastião Salgado, fotógrafo brasileiro reconhecido internacionalmente, retratou os quatro cantos do planeta e, para além de suas imagens em preto e branco, acabou se tornando um ator da causa ecológica. Com a mulher, Lélia, criou o Instituto Terra e recuperou a desmatada floresta da propriedade de seus pais, em Minas Gerais, com o plantio de cerca de 2,5 milhões de árvores. O fotógrafo prepara, para 2021, uma nova exposição e livro, desta vez sobre os índios da Amazônia. Já como defensor da ecologia, elabora um ambicioso projeto de proteção e desenvolvimento da floresta amazônica.

O Globo reuniu, em Paris, as duas personalidades da luta ecológica para conversar sobre o futuro do planeta.

Sebastião Salgado (esq.) e Nicolas Hulot (dir.), no gabinete do ministro da Ecologia francês, em Paris.  Fotos ©Fernando Eichenberg

O alerta ecológico não data de hoje, mas os problemas nunca foram tão urgentes. Como vocês veem este mundo de hoje?

Hulot: O homem moderno tem este defeito de só reagir diante do perigo imediato. E os fenômenos dos quais sofremos hoje, vimos chegando há muito tempo. É ainda mais complicado porque pela primeira vez somos confrontados à questões universais. Isso exige uma inteligência e uma vontade coordenadas. Quando os Estados Unidos anunciam que vão se retirar do Acordo do Clima de Paris, e se trata do principal emissor de gases de efeito estufa por habitante do planeta, isso desencoraja os demais países. O único sucesso da cúpula de Paris foi que se partilhou um diagnóstico e se estabeleceu um roteiro. E como esse roteiro é um questionamento muito profundo do desenvolvimento, que pareceu por décadas como o remédio universal para emancipar os cidadãos do mundo, de repente temos de rever nossos fundamentos, o que exige muito tempo. O processo é irreversível, penso que o mundo caminha para uma forma de sabedoria, exceto que não temos tempo para que isso se faça naturalmente. Os fenômenos que tentamos combater, a erosão da biodiversidade, a destruição dos ecossistemas, os desequilíbrios, o esgotamento dos recursos naturais ocorrem muito rapidamente. Há uma defasagem entre a tomada de consciência, sua tradução em ação e esses fenômenos que não se desenvolvem de forma gradual. O futuro da humanidade, em todo caso em sua qualidade, está em jogo nos próximos vinte anos. É apaixonante, mas é aterrador. A única solução é partilhar os meios, identificar as experiências que funcionam. Em todas as áreas, há pessoas que desenvolveram soluções que são reproduzíveis em grande escala. É preciso identificar todas as iniciativas que funcionaram e fazer com que se tornem a norma no futuro.

Salgado: Se pudéssemos compreender nossa história em centenas ou milhões de anos, entenderíamos nossa evolução. Mas não conseguimos fazê-lo. E o tempo é cada vez mais curto, porque entramos num acelerador de partículas que nos faz correr sempre mais e ter uma impressão completamente falsa da realidade. Somos predadores há milhões de anos. Destruímos quase tudo. As últimas porções de floresta virgem representativas no planeta estão na Amazônia. Outro dia, sobrevoei Sumatra, e eles não têm mais floresta, abateram tudo para plantar óleo de palma. Dependendo das opções que escolhermos hoje, em 50 anos seremos alienígenas em nosso planeta. Na COP21, tudo o que foi proposto são mentiras absolutas. Foi prometido replantar não sei quantos milhões de hectares, mas desde então destruímos muito mais do que se plantou. O sequestro de carbono que se discute nas cúpulas, são mentiras urbanas. Há uma redução de emissão por unidade, mas um aumento brutal no total, porque o número de unidades no mundo cresce de uma forma terrível. Ainda não descobrimos outra forma de sequestrar carbono que não seja pelas árvores, e continuamos a abatê-las. Temos dinheiro suficiente para reconstruir o planeta. A questão é parar e discutir. É o momento de despertar o instinto de sobrevivência, porque estamos em perigo. Não somente nós, mas uma quantidade de outras espécies.

Hulot: Estamos num momento da história da humanidade bastante inédito: numa encruzilhada, em que podemos cair numa forma de barbárie ou de civilização. Tecnologicamente, economicamente e cientificamente somos dotados. Culturalmente somos nulos. Porque perdemos duas coisas fundamentais: o sentido e o elo. Nos desvinculamos do passado, e também do futuro, porque o estamos comprometendo. Precisamos deste tempo de pausa para redefinir uma visão, dar um novo sentido ao progresso, fazer a triagem entre o útil e o fútil. O paradoxo é que estamos num mundo que se conectou, mas que não se uniu. O desafio é sincronizar ciência e consciência. A ciência e suas aplicações andaram muito mais rápido do que a consciência. É preciso que nós, ocidentais, paremos de pensar que somos o universal e que os demais são o singular. Entramos na era das vaidades. O homem pensa poder desregular o clima e regulá-lo de novo. Pensa poder extinguir espécies e recriar em laboratórios os serviços que elas nos proporcionavam. O mundo está num limite estreito de tolerância.

As iniciativas associativas crescem, a consciência ecológica idem, mas é possível salvar o planeta sem um verdadeiro entendimento e ação política dos governos?

Hulot: A dificuldade é que nossas instituições internacionais, como nossas democracias, foram surpreendidas pela introdução em nosso radar destas questões universais e da noção de longo prazo, do futuro. É a primeira vez que nos colocamos em situação de comprometer nosso futuro. Quando vou na Assembleia Geral da ONU, e se observa com um olhar um pouco profano, se vê as delegações chegarem no plenário, cada uma levando em sua pasta os interesses de seus próprios países. E a soma dos interesses de cada país não é igual aos interesses universais, do planeta e de seus habitantes. Se não houver um espaço de governança que administre e proteja o bem comum do planeta, não vejo como conseguiremos.

Salgado: Mas o que se passa é positivo. Nunca se havia discutido, e começamos a fazê-lo. O fato de termos, hoje, Donald Trump, não é importante. É preciso olhar as coisas numa projeção histórica. Trump está aí por quatro anos. No Brasil, não é grave que tenhamos um governo que esteja desmatando as florestas, porque temos instituições sólidas, como o Ibama, a Funai. Basta que tenhamos um novo governo que respeite as instituições. Vivemos um momento em que começamos a nos conscientizar. E as pessoas começam a se questionar. Temos, hoje, uma grande possibilidade, as coisas não estão mortas. Há pessoas importantes no planeta que começam a ser ouvidas. É o momento de agirmos juntos. Mas se continuarmos a destruir o planeta, uma hora vai acabar. Não estamos na véspera de descobrir a máquina que vai fazer a captura de dióxido de carbono e transformá-lo em oxigênio. Não estamos na véspera de conquistar outros planetas, para fazer agricultura no espaço. É preciso integrar o agrobussiness do Brasil no diálogo, por exemplo. Os índios presentes na COP21, vieram como decoração, não como representação. O diálogo deve ser com todos, não restrito a uma casta. Senão tudo termina em proposições tecnológicas, da evolução de nosso planeta baseada numa sofisticação completamente urbana, de segundo e terceiro setor. E se esquece da base do planeta e de todas as culturas tradicionais.

Hulot: É preciso também que a humanidade mude do que chamo de era da vaidade, dos séculos XIX e XX, para a era da humildade. Fomos cegados pela aterrissagem na Lua, descobrimos bactérias, investigamos em todas as áreas. Um célebre cientista francês, Jean Rostand, disse que a ciência nos faz deuses antes de nos fazer homens. Devemos aceitar nossa condição humana, com sua potência, mas também com seus limites. A regra de ouro é associar a inteligência do homem com a inteligência da natureza. Fomos longe demais no excesso. Há forças de inventividade e sabedoria. Mas também há, infelizmente, um sistema organizado para pilhar, para destruir, para concentrar.

Os Estados são, com frequência, omissos ou cúmplices deste sistema.

Hulot: Não forçosamente cúmplices de uma maneira mal-intencionada. Mas porque estes sistemas se organizaram para fazer esses Estados de reféns. Vejo isso aqui todo dia no ministério: “Vamos suprimir empregos”, “Vamos deslocalizar a empresa”.

Salgado: Os Estados só pensam em seus problemas específicos. E como os governos são de curta duração, só querem resolver as questões imediatas, por uma reeleição, um ego. Este é o grande problema: como harmonizar todos estes Estados em torno de uma ideia comum e importante. Mas tenho uma grande esperança, pois toda vez que a humanidade esteve diante de uma enorme catástrofe, teve sensatez.

Hulot: Concordo que é preciso manter a esperança, mas a escala de ameaças mudou completamente. A humanidade se dotou de uma força quase geológica. Nos tornamos nosso próprio fator determinante. Hoje, podemos nos autodestruir. Você conhece este livro “Colapso – como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso”, de Jared Diamond. Ele fala das civilizações que desapareceram na História, porque não aceitaram a noção de limite, sejam os Rapanui (Ilha da Páscoa) ou os Maias. E nós ainda não nos conscientizamos que vivemos em uma ilha, que se chama Terra, e que devemos nos virar com ela. Mas é um momento apaixonante, pois há uma profusão de inovações, de experiências, de inteligência, e há também forças de resistência. E é preciso combater o pior inimigo: a resignação. O melhor meio para isso é passar da expressão à demonstração. Não há nada mais persuasivo do que o exemplo.

Como vocês, cada em sua trajetória, decidiram agir de outra forma e vivem, hoje, este combate pelo planeta?

Hulot: Nossos percursos, diferentes, nos colocaram em contato com a natureza. O que sei, não aprendi somente nos livros. A degradação da natureza, suas consequências para o futuro da humanidade, isso apalpei, enxerguei. Minhas convicções não são apenas universitárias. E vi a rapidez com a qual os ecossistemas se destruíam e o homem se distanciava da natureza. Isso forjou meu engajamento, que se manifestou há trinta anos sob diferentes formas, principalmente associativa. Meu objetivo foi tentar difundir na esfera mais resistente essas preocupações. Pois sabia que se esse engajamento permanecesse no perímetro dos convencidos e convertidos, não iríamos vencer. É a razão pela qual estou, hoje, no governo, pois me permite, no interior do sistema, fazer este trabalho.

Você diz que muitas vezes na política é necessário escolher entre duas más soluções.

Hulot: Sim, é muito frustrante, mas a política é o aprendizado da complexidade.

Salgado: E a arte do compromisso.

Hulot: E eu devo fazer em permanência o compromisso entre o curto e longo prazo. Isso é novo, e é o exercício mais delicado. Se privilegio o longo prazo, sou muito brutal, vou interditar a agricultura intensiva e os veículos de motores de combustão de uma hora para outra. Procuro programar a transição.

Salgado: Preparamos nosso projeto para a Amazônia como uma utopia, vamos materializá-lo, mas não poderemos fazê-lo a cem por cento, em um dado momento haverá um compromisso, para podermos parir algo que nos permitirá avançar. Eu cheguei na ecologia fazendo minha vida de fotógrafo. Cursei economia e matemática, e quando comecei na fotografia tudo isso me ajudou, bem como meus estudos de sociologia, antropologia e de geopolítica. Mas foi meio por acaso que me tornei um ecologista. Trabalhei por anos, no mundo inteiro, para fotografar o livro “Êxodos”, e o que vi em Ruanda ou na ex-Ioguslávia me deixou completamente sem esperança com a nossa espécie. Estava certo de que íamos de cara no muro, que não merecíamos sobreviver. E foi exatamente neste momento que herdei as terras de meus pais, no Brasil, e vi aquela área completamente destruída ecologicamente. Minha mulher, Lélia, teve a ideia de replantar a floresta. Hoje temos 2,5 milhões de árvores replantadas e recuperamos a terra, criamos o maior viveiro de mudas da região, temos um centro educacional para preparar técnicos…

Hulot: A tentação à desesperança é cotidiana. Mas é porque encontrei homens e mulheres como Salgado, Pierre Rahbi, Nelson Mandela, que jamais se resignaram, que nunca cedi à desesperança. É uma humanidade, por vezes, invisível, um pouco discreta, mas é majoritária. Toda a dificuldade é a de retornarmos ao essencial, à noção do comum. Meu percurso quebrou com três preconceitos. Primeiro, que no universo a vida não é a norma, mas sim a exceção. Segundo, que a abundância não é a norma, mas sim a raridade. Terceiro, que nós, os ocidentais, não somos o universal. É preciso acrescentar na fachada da ONU cinco palavras: diversidade, humildade, solidariedade, sobriedade, humanidade. É isso que deveria nos guiar no século XXI.

Como vocês avaliam a situação atual no Brasil?

Hulot: Estou sempre em contato com pessoas que vão regularmente ver os caiapós e diferentes tribos indígenas, e o retorno que me dão sobre as reformas do código de mineração e do respeito aos índios não é muito tranquilizador. Sobre estes temas, até o presente foi complicado para nós com o governo brasileiro, a cada vez se colocava um incidente diplomático. Como ministro, não é meu papel interferir nas políticas do Brasil, mas sempre estive em contato com ONGs que se preocupam, por exemplo, com a famosa barragem (Belo Monte), que culminaria na inundação das terras ancestrais dos caiapós, e que não pôde ser impedida. Mas vocês têm também, às vezes, empresas francesas que participam disso. Penso que a batalha da Amazônia ainda não foi ganha, mas também não foi totalmente perdida.

Salgado: Vejo a situação do Brasil, hoje, muito difícil. É um país urbano recente, uma democracia recente, tudo é tão recente. É um país com mais de 210 milhões de habitantes e uma distribuição de renda terrível. E tem produção, um nível de exportações, um terceiro setor que é uma potência. Mas é um país que não tem um prêmio Nobel, não têm cientistas. Não existe uma integração do sistema produtivo com o universitário. Temos deformações tão grandes, que essas aberrações que estão havendo no processo democrático de alguma forma teriam de acontecer. Isso, possivelmente, é uma base para uma discussão, uma evolução. Este governo de hoje, que considero ilegítimo, não respeita as instituições. Veja o que está acontecendo, hoje, na Amazônia e com a destruição do orçamento da Funai e do Ibama. E, ao mesmo tempo, estamos gastando uma fortuna para manter um governo ilegítimo, que está comprando o seu lugar. Minha grande esperança é a de que daqui a alguns meses possamos eleger um governo que respeite as suas instituições.

Vocês têm dois grandes projetos em vista: a defesa da Amazônia (Salgado) e o encontro de povos indígenas em Paris (Hulot).

Hulot: Nossa ideia é tentar um diálogo entre o mundo da espiritualidade e da modernidade. Haverá uma troca, espero frutuosa, e será a ocasião de colocar em destaque a existência dos povos autóctones. A maioria das pessoas ignora que há uma diversidade de humanidades em vias de desaparição, e não se dá conta do prejuízo irreversível que este desaparecimento de culturas, que por vezes não têm traços escritos, vai nos ocasionar. A ideia é organizar em Paris o que chamaremos de A Semana das Consciências, durante a qual haverá colóquios, exposições, encontros. Ao final, durante dois dias, traremos chefes de Estado, e os faremos escutar e encontrar representantes dos povos indígenas. Será um dos mais importantes eventos internacionais do quinquênio de Macron. A França não é exemplar com seus índios. Seria também uma ocasião para nos colocarmos em conformidade.

Salgado: A economia da Amazônia é completamente predatória. E temos, hoje, a possibilidade de propor uma economia durável para a região. Existe um mercado para diversos produtos que podem ser coletados da Amazônia. Temos 19% da floresta amazônica que já foram destruídos, mas 81% ainda podem ser preservados. Vamos propor uma nova economia para substituir o sistema predatório. Estamos trabalhando com a base da sociedade para preparar este projeto. Mas será preciso que todo o planeta se alie. Não temos outra oportunidade para salvar a Amazônia.

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