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Na “Bamako parisiense”, imigrantes malineses buscam sonho europeu

Birama Gassama, irmão mais velho do heroi Mamoudou. © Fernando Eichenberg

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – O assunto das conversas no centro de alojamento para trabalhadores migrantes do número 24, na rua Rochebrune, em Montreuil, no subúrbio leste de Paris, é monotemático: a façanha do malinês Mamoudou Gassama, 22 anos, que salvou uma criança de 4 anos pendurada na sacada de um apartamento na capital francesa. Antes de se tornar herói, Mamoudou era um imigrante ilegal que trabalhava clandestinamente e residia no abrigo, dormindo no chão de um quarto de cerca de 15 metros quadrados que dividia com dois irmãos e dois primos.

Na segunda-feira, policiais vieram lhe buscar para levá-lo ao seu novo endereço, o hotel Ibis localizado nas proximidades. Além da nova morada, o “Homem-Aranha” africano, assim alcunhado por ter escalado até o 4° andar o prédio em que a criança estava em perigo, ganhou documentos do governo francês, um emprego no corpo de bombeiros, e também uma assessora de imprensa para tratar de sua concorrida agenda. Em sua antiga residência, permanecem centenas de imigrantes que, como ele, percorreram um longo e tortuoso caminho da África até o território francês, mas a maioria, hoje, sem conseguir alterar sua condição de ilegal e desempregado.

Birama Gassama, 54 anos, o mais velho dos irmãos de Mamoudou, cultivava a terra em Yaguine, no Mali, quando em 1986 decidiu viajar para a França, sem nenhum visto. Na sua primeira tentativa, foi retido na chegada e mandado de volta para seu país. Mas não desistiu. Duas semanas depois, obteve um documento provisório na embaixada francesa da Costa do Marfim e, desta vez, conseguiu entrar. Sua situação nunca chegou a se estabilizar. Atualmente, possui um visto de permanência de dois anos, válido até 2019, e trabalha fazendo serviços de limpeza.

Birama vive há 21 anos no abrigo da rua Rochebrune em Montreuil, cidade também conhecida como “Bamako-sur-Seine”, apelido que agrega o nome da capital do Mali à costumeira denominação de localidades francesas situadas ao longo do rio Sena. Os malineses brincam ao definirem Montreuil como “a segunda maior cidade do Mali depois de Bamako”.

– Meu pai morava neste abrigo, e quando foi embora, peguei seu lugar. Hoje, há muito mais gente aqui, e a maioria dos malineses que chegam fizeram percursos parecidos ao do meu irmão, passando por países como Nigéria, Burkina-Faso e Líbia. Há sempre o perigo da morte e da doença. A cada etapa vencida, Mamoudou nos ligava para dizer que estava a tudo bem, até chegar na Itália.

Birama evita revelar o valor desembolsado pelo irmão para concluir seu périplo, mas garante que “pagou muito”:

Não se gasta menos de 4.600 euros para chegar até aqui por este trajeto. É o mínimo. Só para fazer a travessia da Líbia para a Itália, não é menos de 1.800 euros. Todos da nossa família vieram por barco, e todos se salvaram, seja pela Itália ou pela Espanha. Outros malineses de Yaguine morreram no meio do caminho.

O irmão conta que Mamoudou, fanático por esporte, sobretudo pelo futebol, quando podia despertava cedo pela manhã, mesmo aos domingos, para se exercitar nas redondezas.

– No dia em que ele salvou a criança, amigos com quem ele havia feito a travessia lhe chamaram para ver a final da Liga dos Campeões, no 18° distrito, onde moravam. No caminho, passou na frente do prédio em que todos gritavam pela criança pendurada. Ele é um jovem muito gentil, nunca discutiu com ninguém, e respeita seus irmãos mais velhos. Nossa tradição familiar é assim. Mas aqui é diferente. É quem mais conhece e é mais graduado que manda. `

Quando encontrou o irmão após o gesto heroico, Birama vaticinou: “Talvez você vá ganhar seus documentos, já houve casos assim no passado”.  Ele referia-se ao compatriota Lassana Bathily, que após ter salvo reféns no ataque do terrorista Amedy Coulibaly à mercearia judaica Hyper Cacher, em 2015, recebeu a naturalização francesa.

– Ele ganhou sua regularização, e estamos todos contentes. Neste país, se você não tem papéis, tem medo de ir para qualquer lado.

Birama se insurge contra os comentários de que o governo Emmanuel Macron teria se aproveitado da imagem de Mamoudou em proveito próprio, num contexto de endurecimento da legislação imigratória no país.

– Hoje mesmo me disseram isso! Mas nem respondo. Na vida, quando se faz o bem, sempre haverá alguém para criticar. Se o governo francês regularizasse todos os sem documentos, seria bom, mas não é fácil. Conheço o sistema. Há empresas que não querem isso, pois se aproveitam dos imigrantes ilegais, quase como escravos – argumenta.

O abrigo da rua Rochebrune, mesmo de precárias condições, é seu porto seguro na França:

– Aqui é melhor que um apartamento, onde os vizinhos reclamariam de tudo o que fazemos. Temos nossas próprias regras e vivemos em comunidade. Os malineses são em maior número, seguidos dos senegaleses e dos mauritanos.

Mahmadou Bathily, 28 anos, um dos amigos de Mamoudou no abrigo, mostra as cicatrizes em seus dois braços, indeléveis marcas de sua epopeia para superar os aramados muros do enclave espanhol de Ceuta, em 2014.

Tive sorte de passar. Naquele dia, 5 de maio, fomos cerca de três mil a conseguir entrar. Não havia muitos policias, e às 4h decidimos arriscar. É preciso colocar na cabeça que você vai conseguir, e ir a fundo. Fiz uma preparação de três meses para isso. Mas tive de pagar 3.400 euros. Só o barco custou 1.800 euros.

Mahmadou Bathily tem uma semana para deixar a França, mas decidiu ficar. © Fernando Eichenberg

Depois de três meses na Espanha, Mahmadou veio para a França, e hoje mora no abrigo com um primo. Na semana passada, no entanto, foi detido pelas autoridades francesas num controle de documentos.

– Me deram uma semana para deixar o território francês, mas vou ficar. Minha irmã está me ajudando, com um advogado. Mas é muito difícil trabalhar aqui. E há patrões gentis, mas também outros que se aproveitam, sabem que você é ilegal e, por vezes, não te pagam.

Mamoudou, segundo ele, é uma pessoa “fácil e tranquila”:

– Quando não tínhamos trabalho, ficávamos aqui pelo pátio, fumávamos cigarros e bebíamos chá juntos. Às vezes, ele me chama de “grande irmão”.  Ele não tem problema com ninguém, é gentil demais.

Doucoure Bouyagui, 41 anos, entrou na França em 2012, e obteve um visto de permanência por cinco anos. Desde 2017, no entanto, é um imigrante ilegal no país.

– Estou sem documentos, sem trabalho, e durmo no corredor aqui do abrigo. Recebo ajuda das pessoas para comer, às vezes 5 ou 10 euros. Não está fácil, e está complicado para trabalhar – queixa-se.

Doucoure Bouyagui, ilegal, sem trabalho e sem dinheiro. © Fernando Eichenberg

Hamidou Yatabaré, 51 anos, sendo 31 deles na França, diz ter feito o cálculo de leitos no centro de alojamento: 404.

– Mas pode-se dizer que há quase o dobro de pessoas aqui, pois muita gente dorme no chão dos quartos e nos corredores – acrescenta.

A atitude de Mamoudou não o surpreendeu, pelo contrário:

– Na África, temos uma outra maneira de fazer as coisas. Não somos como os europeus, que numa situação dessas dizem: “Não é o meu trabalho, mas o dos bombeiros”. Nós, quando vemos alguém em perigo, sempre vamos ajudar.

A associação Coallia, que gere o abrigo, foi criada em 1962, no rastro da descolonização, para ajudar os cidadãos originários das ex-colônias francesas tornadas independentes a obter uma formação útil ao desenvolvimento de seus países, para facilitar seu retorno. Hoje, mais de 40 anos depois, o tráfego é de mão única no local, com a incessante chegada de africanos em busca do sonho europeu.

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