Ícone do site Fernando Eichenberg

L’Humanité, centenário jornal da esquerda francesa, luta para sobreviver em meio à grave crise financeira

Homem vende o L’Humanité em frente a um café, em Pantin, subúrbio de Paris, em 12 de abril de 1959. © Mémoires d’Humanité / Archives départementales de la Seine-Saint-Denis

FERNANDO EICHENBERG / REVISTA ÉPOCA

PARIS – Rosa Moussaoui entrou para o jornal L’Humanité em 2004, ano do centenário da histórica publicação francesa. “Estou aqui há 15 anos por convicção. É um jornal enraizado nas lutas sociais, na solidariedade internacional e um reflexo de combates ecologistas e feministas. Essa identidade política é extremamente importante para mim. Esse jornal sempre sobreviveu pela vontade daqueles que o fazem e o leem”, diz, assentada na redação situada no número 5 da rua Pleyel, em um moderno complexo de escritórios em Saint-Denis, subúrbio norte de Paris. O tom militante emerge da crise vivida nestas semanas pelo jornal. A secular aventura do L’Humanité, afundado em dívidas, esteve ameaçada de chegar ao fim. No último dia 7, no entanto, o Tribunal de Bobigny concedeu uma sobrevida à publicação e aceitou o pedido de recuperação judicial, com permissão de continuar em atividade por um período de observação de seis meses. Uma nova audiência está marcada para o dia 27 de março.

Ex-sede do L’Humanité, projeto do arquiteto Oscar Niemeyer, em Saint-Denis. © Reprodução

Não é a primeira vez que as rotativas do emblemático diário francês correm o risco de parar em definitivo. Não muito longe dali, um prédio de amplas curvas e paredes envidraçadas, inaugurado em 1989 e classificado como monumento histórico nacional, é testemunha das consecutivas dificuldades do L’Humanité, também chamado pelos franceses de L’Huma (pronuncia-se “lumá”). A obra, nas proximidades da célebre Basílica de Saint-Denis, foi projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012) para abrigar a sede do jornal. Mas em 2008, sem ter como pagar as contas, a redação se viu obrigada a trocar de endereço e, dois anos depois, vender ao Estado francês a prestigiosa criação do arquiteto brasileiro, comunista convicto, por € 12 milhões. “L’Humanité sempre foi um jornal frágil, desde sua fundação, porque não possui acionistas e não é associado a capitais. Essa fragilidade faz parte de nosso DNA”, admite Rosa.

Fundado em 1904 pelo político Jean Jaurès (1859-1914) como uma tribuna para as correntes do movimento socialista e operário, o jornal acumulou em sua longa trajetória períodos de “luzes e de sombras”, como costumam definir os historiadores. O assassinato de Jaurès, infatigável pacifista, em 31 de julho de 1914 – três dias antes de a França entrar na Primeira Guerra Mundial -, enquanto jantava no Café du Croissant, próximo da então sede do L’Humanité, na rua Montmartre, abalou a publicação. “Jaurès é uma personalidade extremamente importante na França, e sua morte provocou uma guinada. Mas o jornal que deixou como herança acompanhou todos os grandes momentos da vida deste país, no combate pela paz na Primeira Guerra Mundial, nas greves de 1936, na Resistência durante a Segunda Guerra Mundial (foi publicado clandestinamente por quatro anos), na Liberação e em todas as lutas anticoloniais até hoje. Em 2005, fomos o único jornal diário a dizer não à Constituição europeia”, orgulha-se Rosa.

Primeira página do jornal na Liberação de Paris, na Segunda Guerra MundiaL. © Reprodução

A partir de 1920, o jornal se tornou órgão oficial da Seção Francesa da Internacional Comunista (SFIC), que viria a ser o Partido Comunista Francês (PCF), com direito a foice e martelo sob o título na primeira página. Passadas sete décadas, em 1994 a menção na capa ” Órgão central do PCF” foi substituída por “Jornal do PCF” até desaparecer completamente em 18 de março de 1999, como parte de uma reforma editorial em meio a mais uma crise financeira. “Temos ainda uma grande proximidade com membros do PCF, somos ligados a este mundo comunista, mas também ao restante do movimento progressista e social. Hoje, é um jornal arco-íris que permite a pessoas de diferentes convicções se identifiquem com ele. Em nossas páginas cotidianas de debates, vozes se confrontam com opiniões diversas”, defende Rosa.

A cega defesa dos desmandos da União Soviética e do stalinismo, no entanto, é uma mancha que cola ainda hoje na imagem do L’Huma. No dia da morte do ditador soviético Josef Stálin, em 5 de março de 1953, o jornal titulou em edição especial: “Luto por todos os povos que exprimem, em recolhimento, seu imenso amor pelo grande Stálin”. Três anos depois, quando os tanques soviéticos invadiram a Hungria para esmagar a Revolução de 1956, o L’Humanité celebrou: “Budapeste volta a sorrir em meio a suas feridas”.

Capa do jornal na morte de Joséf Stálin, em 1953, noms sombrios anos da história do L’Humanité. © Reprodução

Marie-José Sirach, há 25 anos no jornal, acredita que não se pode varrer o passado: “Isso faz parte da nossa história, e é preciso encará-la de frente. O L’Huma foi o órgão central do PCF, justificava tudo o que se fazia, é nossa parte sombria. Por outro lado, ser jornalista naquele tempo comunista devia ser complicado, pois muitas pessoas na redação eram críticas. Louis Aragon (poeta e escritor francês, 1897-1982), por exemplo, defendia nas páginas do L’Huma toda uma geração de poetas russos que morreu no gulag ou foi proibida de publicar. O jornal era sensível a essas pessoas com um ideal comunista que não correspondia ao stalinismo”, relativiza.

Rosa Moussaoui e Marie-José Sirach, jornalistas do L’Humanité. © Fernando Eichenberg

Ela prefere destacar a mobilização do jornal em torno das frentes antifascistas desde os anos 1930; seu papel na revelação de massacres cometidos pelas forças do general Franco na Guerra Civil Espanhola (1936-1939); o engajamento anticolonial nas guerras da Indochina (1946-1954) e da Argélia (1954-1962) e contra a guerra do Vietnã (1959-1975); a luta pelos direitos políticos das mulheres na França ou a solidariedade a Angela Davis no combate pelos direitos cívicos nos Estados Unidos – a ativista americana foi, em 2013, convidada como editora-chefe do jornal por um dia. “L’Huma constrói passarelas para mostrar que não se está só. É um jornal que vive, respira, por vezes tosse um pouco, hoje atravessa uma grande crise, mas temos recebido mensagens de apoio e de carinho, e se desaparecer será um mau sinal para a democracia na França”, alerta.

Para poder prosseguir em sua resistência, o L’Humanité lançou uma vasta campanha de doações e de assinaturas. Até a semana passada, a arrecadação havia alcançado pouco mais de € 1 milhão. Personalidades de diferentes áreas e políticos de todas as tendências, inclusive da direita, têm se manifestado em apoio ao jornal. O deputado Aurélien Pradié, do partido conservador Os Republicanos, tuitou: “O L’Humanité não costuma defender as minhas ideias. Mas tenho um profundo respeito pelos seus valores e pela exigência de seus jornalistas. O debate público precisa do L’Huma. Acabo de fazer uma assinatura. Não hesitem…”

Capa na edição de três dias após o atentado no jornal Charlie Hebdo, em janeiro de 2015. © Reprodução

No próximo dia 22, uma jornada de solidariedade será organizada no espaço La Bellevilloise, em Paris. Para engordar seus cofres, o jornal conta ainda com sua tradicional “Fête de L’Huma”, evento anual realizado no parque La Courneuve, em setembro, que no ano passado alcançou o recorde de afluência com 800 mil visitantes em três dias. A festa foi criada em 1930 como mais uma iniciativa para enfrentar a falta de recursos do jornal, e oferece inúmeros debates, exposições e concertos. Já passaram por seus palcos nomes como Jacques Brel, George Brassens, Juliette Gréco, Pink Floyd, Joan Baez, Leonard Cohen, Patti Smith e New Order. Na edição de 2018, uma das principais atrações foi o grupo escocês Franz Ferdinand, mas não faltou também a auto-ironia do Soviet Suprem, duo francês formado por Sylvester Staline e John Lénine, com uma mistura de música soviética-balcânica, eletrônica e hip hop, em uma tentativa bem-humorada de imaginar “um gênero que existiria se a URSS tivesse vencido a Guerra Fria”.

O clima na redação entre os 175 assalariados – 124 jornalistas – ainda é de preocupação e angústia em relação ao futuro da publicação, mas também “extremamente combativo”, assegura Rosa: “Pensamos nos nossos predecessores. Anatole France (escritor francês,1844-1924) escreveu, certa vez, que não havia dinheiro nem para comprar velas. Vamos fazer com que este jornal sobreviva. Existe uma ideia de que a França sem o L’Humanité não seria a França. As pessoas precisam do L’Huma pela sua voz singular e dissidente. É uma parte do nosso patrimônio nacional que não se quer ver destruída”.

Sair da versão mobile