FERNANDO EICHENBERG
A lenda do futebol francês Just Fontaine, até hoje detentor do recorde de gols marcados em uma Copa do Mundo, faleceu neste 1° de março, aos 89 anos, na cidade de Toulouse. Tive a chance de entrevistá-lo uma vez, às vésperas do Mundial da Alemanha, em 2006. Aqui, o resultado de nosso encontro.
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Um, dois, três, quatro, cinco… 13. Treze gols. Treze gols em seis jogos, em uma só Copa do Mundo. Treze bolas no fundo da rede e uma só assinatura: Just Fontaine. Just – assim batizado por causa de seu avô materno, um espanhol de nome Justo – Fontaine, dono de um recorde até agora imbatível, goleador incontestável de todas as Copas. A façanha, conquistada aos 24 anos de idade, foi desenhada em passes mágicos no Mundial de 1958, na Suécia. A Seleção Brasileira foi a campeã, mas não deixou de levar no troféu a marca indelével do goleador francês. Até as primeiras quatro rodadas da competição, a rede do gol brasileiro havia sobrevivido incólume, inerte, alheia à mínima brisa ou ao que se passava em campo. Então veio a França. E, com ela, aos oito minutos de jogo, a chuteira certeira de Just Fontaine, obrigando Gilmar, pela primeira vez na Copa, a ir buscar a bola na retaguarda.
Ele começou o Mundial endiabrado: três gols na vitória de 7 a 3 contra o Paraguai. Ao final da partida, uma comemoração premonitória: foi erguido em triunfo pelos companheiros. Depois veio a derrota contra a Iugoslávia: 3 a 2. Os dois gols da França? Dele. Então mais um, nem que seja um, no placar favorável contra a Escócia: 2 a 1. Mais dois, sem perdão, contra a Irlanda do Norte (4 a 0). Cinco dias mais tarde, a decepção, mas, ao menos, o gostinho do primeiro gol na eliminação contra o Brasil (5 a 2). Na disputa com a Alemanha pelo terceiro lugar, a desforra: quatro bolas em cheio no alvo retangular (6 a 3 para a França). Noves fora: 13. Estava sacramentado o recorde. Estava criada a lenda.
Ao todo, foram 30 gols em 21 jogos pela seleção francesa – “Nenhum deles de pênalti”, ressalva. Just Fontaine foi ainda duas vezes goleador do campeonato francês, em 1958 (34 gols) e 1960 (28 gols). Mas o talento foi mais uma vez vítima da violência. Aos 27 anos, a tragédia. Sua genialidade foi anestesiada numa cama de hospital, depois de duas fraturas seguidas na perna. Fim de carreira para o goleador. Depois de uma rápida experiência como treinador da seleção nacional e do Paris Saint-Germain, Just Fontaine tirou o time de campo e foi viver com a mulher, Arlette, em Toulouse, no sul da França. Passou a dispensar mais tempo aos dois filhos e dois netos, a administrar suas duas lojas de produtos Lacoste e, quando pode, descansa na sua casa de verão na Côte d’Azur. A Copa do Mundo na França mudou sua rotina. Ele é um dos nomes mais solicitados a participar dos eventos organizados em torno do Mundial. O ex-craque assinou um contrato de relações públicas com uma empresa privada para, durante a competição, viajar pelas cidades onde ocorrerão os jogos. E aproveitou a nova era do marketing no futebol para lançar uma série de produtos com sua imagem.
Nos intervalos de suas novas atividades, o ídolo francês – que recebe cerca de 15 cartas de fãs por mês: “Nada mal, depois de 40 anos”, diz – confessa que, de vez em quando, faz uma viagem ao passado. Só, assiste a vídeos do Mundial de 1958. Relembra, mesmo que não precise de imagens para fazê-lo, seus 13 gols registrados na Suécia. Treze, assim, quase de uma só vez.
Ronaldo disse, quando recebeu da Fifa o prêmio de melhor jogador de 1997, que tentará superar seu recorde de gols numa mesma Copa do Mundo. O senhor acha que é possível?
Se ele pensa em bater meu recorde, terá de fazer uns dois gols por partida. Jogando numa equipe como a do Brasil, que cria cinco ou seis boas ocasiões por jogo, é possível. Mas não é tão fácil assim.
O senhor se lembra com exatidão do primeiro gol que a Seleção Brasileira levou na Copa de 1958, obra sua?
Como se fosse ontem. Foi aos oito minutos de jogo. Vavá já tinha feito 1 a 0 aos dois minutos. Raymond Kopa me deu um passe perfeito entre Orlando e Bellini. Eu passei na cruzada, driblei Gilmar, que havia saído ao meu encontro, e coloquei a bola no canto esquerdo. Não era fácil fazer gols nos brasileiros, mesmo naquela época.
Qual foi sua emoção maior em 1958?
Semifinal de uma Copa do Mundo é sempre uma emoção. Ainda mais contra o Brasil. Mas também foi emocionante o jogo contra a Alemanha, na disputa pelo terceiro lugar. Marquei quatro gols.
Que jogador mais o impressionou na equipe do Brasil?
Havia Pelé, é claro. Pensávamos: “Se ele já faz tudo isso com apenas 17 anos, o que não fará depois”. Mas, para mim, o mais impressionante era Garrincha. Era um jogador fabuloso, atípico. Me lembro quando ele e Djalma Santos trocaram 10 passes seguidos contra a Suécia. O sueco Skoglund fez um gesto como se dissesse: “Assim vou embora, não jogo mais”. Eu estava lá, vi tudo de perto. Garrincha provocava tanto medo nas defesas que, numa jogada, o zagueiro sueco foi recuando, recuando e quando viu estava fora do campo. A Seleção Brasileira de 58 foi melhor do que a de 70. No México, vocês tinham um bom ataque, mas o goleiro (Félix) não era dos melhores.
O que mudou no futebol nestes 40 anos?
Pelo lado do espetáculo, hoje tudo é muito mais vistoso, colorido. Na tevê é possível ver tudo, de tudo que é jeito. As bolas, as chuteiras, todo o equipamento utilizado, tudo é muito bonito. Na minha época era tudo muito pobre. Mas quanto ao jogo propriamente dito, não diria a mesma coisa. Acho que só Brasil e Nigéria vão jogar conm três atacantes esse ano. A França, por exemplo, terá apenas um atacante. É triste. Culpa dos treinadores.
Foi muito difícil ter sido obrigado, por lesão, a abandonar o futebol em 1961?
Terrível. Eu amava jogar futebol. Não se ganhava muito dinheiro na época, mas era minha vida. Havia acabado de marcar nove gols no campeonato nacional. Tinha 27 anos. Com essa idade, se tivessem sido obrigados a parar, Platini não teria jogado na Itália, nem Cantona na Inglaterra.
Como foi sua breve carreira de treinador logo depois?
É outro recorde que será muito difícil de ser batido. Dirigi a seleção da França apenas por dois jogos. Perdi os dois. Fui colocado no cargo por um milionário comunista. Eu era o presidente do sindicato dos jogadores. Todos os presidentes de clube estavam contra mim. Tinha 28 anos. Pela lei, só poderia ser técnico com 35 anos. Todos os treinadores também estavam contra mim.
O senhor se arrepende de alguma coisa?
Não. Só lamento termos jogado com dez jogadores contra o Brasil, em 1958. Teríamos perdido igual com 11, mas a diferença não seria tão grande. E tenho orgulho de ter sido o único jogador francês a ter sido cobiçado por um clube brasileiro. O Botafogo, de Didi e Garrincha, tentou comprar meu passe.
Quais os defeitos que o senhor vê na atual equipe do Brasil?
Os mesmos de sempre. As vezes o time é demasiadamente descontraído, se desconcentra e comete erros na defesa. Mas posso lhe fazer uma pergunta?
Claro.
Sabe qual a razão do meu maior receio de que Ronaldo venha a bater meu recorde na Copa deste ano?
A resposta óbvia seria por ele ser considerado o melhor jogador do mundo da atualidade. Mas imagino que o senhor queira acrescentar outra coisa.
Sim. Tenho ainda mais medo dele do que dos outros porque ele nasceu no mesmo dia da minha mulher, 22 de setembro. E ela é a única mulher em relação a quem, algumas vezes, eu me inclino. A única que me faz baixar a cabeça (risos).