FERNANDO EICHENBERG / REVISTA ÉPOCA
REIMS – À primeira vista, Alain e Dafroza Gauthier formam um casal de aposentados em uma vida pacata e aprazível em Reims, a capital do champanha no nordeste da França. Ela, 64 anos, ex-engenheira química, e ele, 69, ex-professor de francês, residem em uma casa de amplas janelas e um belo terraço, onde costumam receber a visita dos três filhos, de 38, 35 e 30 anos. Mas, além das aparências, seu cotidiano se assemelha a uma complexa e interminável trama detetivesca. Há cerca de 20 anos, o casal Gauthier vive seus dias mergulhado em uma única missão: desmascarar na França suspeitos de terem participado do genocídio de Ruanda, em 1994, e denunciá-los à Justiça.
Estima-se em cerca de 800 mil o número de vítimas da violência perpetrada pelas milícias da maioria étnica hútu contra a minoria tútsi no país africano, num período de 100 dias entre abril e julho de 1994. Em novembro do mesmo ano, o Conselho de Segurança das Nações Unidas instituiu o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda (TIPR), com sede em Arusha, na Tanzânia, que teve suas atividades encerradas em 2015. Alain e Dafroza debutaram em 1997 suas investigações sobre eventuais genocidas foragidos em território francês. Em 2001, para aumentar as chances de alcançarem seus objetivos, criaram a associação Coletivo de Partes Civis para o Ruanda (CPCR), responsável, até hoje, pela abertura de 25 processos na Justiça francesa.
Nascida em Butare, no sul de Ruanda, Dafroza fugiu para o Burundi aos 19 anos, na onda de perseguições aos tútsis no pogrom de 1973. Após sete meses, conseguiu se juntar na Europa ao seu irmão mais velho, refugiado político na Bélgica desde 1961. Alain trocou seu serviço militar, aos 22 anos, pelo programa de cooperação em um país estrangeiro, e partiu, em 1970, para Ruanda como professor de francês, na cidade de Butare. No final de sua temporada de dois anos, lecionou na escola em que estudava Dafroza. Em 1974, já vivendo na Bélgica, ela visitou um amigo comum no sul da França, um padre que haviam conhecido em Ruanda. “Ele me avisou que Dafroza viria visitá-lo, e me perguntou se não gostaria de revê-la. Eu morava a uma centena de quilômetros, e fui. Logo depois, nossa história começou. Faz 44 anos que nos conhecemos e 41 que nos casamos”, conta Alain, sentado ao lado da esposa em um banco no ensolarado pátio de sua casa em Reims. Em 1977, ela obteve a nacionalidade francesa graças ao casamento.
Os anos se passaram, com viagens regulares da família a Ruanda para visitar a mãe de Dafroza, Suzana Mukamusoni, e familiares (o pai havia morrido nos massacres de Gikongoro, em 1963). “Em 1989, foi a última viagem que fizemos todos juntos, com nossos três filhos. A guerra civil eclodiu em outubro de 1990, com o ataque da FPR (Frente Patriótica de Ruanda) pelo norte, e tudo ficou mais difícil”, recorda ela.
Dafroza retornou sozinha a Ruanda em 1994, um mês antes do início do genocídio, deflagrado após o atentado de 6 de abril que vitimou o presidente hútu Juvénal Habyarimana. Sua mãe estava na casa de uns primos, na capital Kigali. “Cheguei no final de fevereiro, num dia de incrível violência. Havia um comício do MDR (Movimento Democrático Republicano, governista) no estádio de Nyamirambo, nos arredores de nosso bairro. Na saída, foi um delírio. As casas dos tútsis eram alvos de pedradas, insultos. E não se parou mais, houve mortes nos dias seguintes, foi horrível. Fiquei apenas uma semana, fui embora no começo de março, minha mãe pediu que partisse para não correr riscos“, relata.
Os massacres genocidas iniciaram no dia 7 de abril. No dia 8 pela manhã, sua mãe, que havia se refugiado numa igreja, foi executada pela milícia hútu com dois tiros nas costas, juntamente com outros tútsis. Foi Alain quem lhe deu a notícia, na tarde do mesmo dia, após ter falado por telefone com o padre da paróquia. Dafroza represa a voz e mareja os olhos ao recordar a morte da mãe, então com 70 anos: “Para mim, é uma lembrança muito sofrida. Naquela viagem, foi a última vez que a vi. Foi difícil perceber como éramos impotentes, que nada podíamos fazer. É muito duro”, desabafa.
Quase todos seus familiares morreram durante os 100 dias de violência. Em 10 de junho, sua prima Geneviève e outros tútsis foram queimados vivos numa fossa comum, com pneus embebidos de gasolina. “Ficamos três meses pendurados no telefone – lembra Alain. Recebíamos muitos fax, chamadas do Hotel des Mille Collines, em Kigali, onde havia muitos refugiados tútsi. Muitas pessoas nos pediam socorro, mas não pudemos fazer nada de concreto, a não ser organizar manifestações, alertar a mídia, denunciar o papel da França“.
O casal viajou novamente a Ruanda em 1996 e 1997. Na segunda vez, colheram depoimentos de sobreviventes da igreja Sainte-Famille, em Kigali, para o processo do padre Wenceslas
Os nomes de possíveis genocidas lhes chegam de diferentes maneiras, inclusive por cartas anônimas depositadas em sua caixa de correio. Sua primeira vitória veio em dezembro de 2016, na condenação em segunda instância de Pascal Simbikangwa, ex-membro do serviço de inteligência do governo ruandês, alcunhado de “Torturador”, a 25 anos de prisão por genocídio e cumplicidade de crimes contra a humanidade. No último 6 de julho, Tito Barahira e Octavien Ngenzi, ex-prefeitos de Kabarondo, foram sentenciados em Paris à prisão perpétua pelas mesmas acusações, num processo de dois meses de duração que teve a audição de cerca de 70 testemunhas de Ruanda.
Apesar do veredicto favorável à sua causa, Dafroza experimenta um gosto amargo na vitória: “No dia da sentença, me digo que, enfim, essas pessoas vão para o lugar que merecem, a prisão. Mas os assassinos nunca pediram perdão. Eles mentem, negam até o fim, desprezam as vítimas. São como os negacionistas, que dizem que as câmeras de gás do Holocausto não existiram. Dá vontade de gritar, mas não se pode, pois se está num tribunal. O que mais dói é ouvir da boca deles essa negação. Que aos menos nos dissessem uma parte da verdade, para nos confortar. Nos processos populares, eles pediram perdão ao Estado ruandês, a Deus, mas não aos sobreviventes e familiares das vítimas. Por que os perdoaríamos?”.
Em cerca de 20 anos, no entanto, ocorreram apenas três condenações. O casal também sofreu reveses na Justiça. Houve três arquivamentos por falta de indícios, além de um falecimento antes do julgamento. “O surpreendente é que a Justiça francesa não esteja na iniciativa desses processos. Isso começa a ocorrer só agora. Além disso, apesar dos mandados de prisão internacional emitidos por Ruanda, os tribunais franceses sempre rejeitaram as extradições, houve 42 rejeições”, lamenta Alain. Dafroza acredita que, nos anos futuros, a tarefa será ainda mais complicada para sua associação: “O tempo faz seu caminho, e encontrar testemunhas 25 anos depois é cada vez mais difícil. E com nossa pequena estrutura, não temos meios de fazer uma investigação como se deve. Contamos, sobretudo, com nossa vontade”.
Neste ano, Alain e Dafroza contabilizarão um total de quatro viagens a Ruanda para realizar suas investigações. A cada vez, permanecem entre um e dois meses no país. O CPCR conta com a ajuda financeira de cerca de 200 membros, mas, principalmente, com doações de organismos e fundações. “Tivemos, recentemente, um dom de € 94 mil de uma fundação da Dinamarca, o que nos permitiu passar um ano tranquilo. A questão financeira resta crucial, mesmo que não paguemos nossos advogados como merecem”, revela Alain.
As dificuldades de sua cruzada não se restringem ao trabalho de campo investigativo. O casal recebe constantes ameaças pessoais, em tentativas de intimidação para que cessem sua caça aos genocidas de 1994. Segundo eles, as manifestações foram virulentas nas redes sociais durante os julgamentos deste ano. Para Alain, no entanto, isso não é o que mais incomoda: “As ameaças atenuaram, já foi pior em anos passados. Já vimos pessoas rodarem em volta de nossa casa. Mas não vivemos no medo. Mais do que as ameaças, o que mais dói são as testemunhas da defesa que vêm depor nos processos e nos insultam”.
Comparados na França ao casal Serge e Beate Klarsfeld, reconhecidos militantes contra a impunidade de ex-nazistas e aclamados como “guerrilheiros da memória”, Alain e Dafroza não arrefecem seu combate. O casal trabalha, atualmente, em novos dossiês no intento de levar outros suspeitos de genocídio a julgamento. Entre eles, estão os processos em curso de Claude Muyhayimana, ex-servidor municipal em Rouen; Sosthène Munyemana, ginecologista em Villeneuve-sur-Lot; Laurent Bucyibaruta, refugiado em Saint-André-des-Vergers, e, mais recentemente, Thomas Ntabadahiga, habitante de Mulhouse.
Da França, acusada de apoiar o regime hútu durante o genocídio e de atuar de forma controversa na chamada “Operação Turquesa”, intervenção militar lançada no final de junho de 1994 com o aval da ONU, o casal espera um mea-culpa oficial. Em 2010, o então presidente Nicolas Sarkozy admitiu “erros de apreciação e políticos”, com “consequências absolutamente dramáticas”. É pouco, dizem eles, denunciando o poder do lobby militar e de antigos políticos que se recusam a “reconhecer o verdadeiro papel da França” nos massacres de Ruanda. Dafroza conta com o 25° aniversário do genocídio, no ano que vem, e com o atual presidente Emmanuel Macron para que se repare o discurso francês: “Macron é jovem, não está misturado a nada disso. É herdeiro dessa situação. Em nome das vítimas, ele nos deve um mínimo de reconhecimento. O que custa dizer que a França falhou? Já falhou outras vezes”.
Em Ruanda, segundo o casal Gauthier, embora a “política geral seja no sentido da reconciliação”, as cicatrizes do genocídio permanecem abertas. No dia a dia, o clima é complicado, diz Dafroza: “Serão necessárias três gerações para que as coisas se apaziguem, e que não se cruze na rua com os assassinos de seus pais. Genocídio é algo extremamente destruidor, pois não acaba apenas com os homens, mas também com toda uma cultura. Reconstruir, hoje, é uma palavra muito forte”.