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Escritor Atiq Rahimi conta em livro sua experiência do exílio

Atiq Rahimi lança livro em prosa poética sobre a condição do exílio. © Fernando Eichenberg

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Quando desembarcou na França como exilado político, em 1985, fugindo da guerra em seu país, o jovem afegão Atiq Rahimi, então com 23 anos, não imaginava que um dia se tornaria escritor, nem que escreveria livros em francês, e tampouco que receberia o mais prestigiado prêmio literário da França, o Goncourt. Além de autor traduzido em vários países, Rahimi também é cineasta – seu filme “Terra e cinzas” foi premiado na mostra “Um certo olhar” do Festival de Cinema de Cannes -, e se aventura pela fotografia e o desenho.

Com quatro livros publicados no Brasil – “Maldito seja Dostoiévski”, “Terra e cinzas”, “As mil casas do sonho e do terror” e “Syngué Sabour” (todos editados pela Estação Liberdade), Rahimi estará no Rio e em São Paulo para lançar sua mais recente obra, “A balada do cálamo”, um relato íntimo em prosa poética sobre a experiência do exílio, ilustrado pelo próprio autor com suas sensuais caligrafias e “calimorfias” (um jogo entre os corpos e as letras).

Seu próximo livro, em fase de revisão, será publicado na França em janeiro, e terá como título “Le porteur d’eau”:

– São duas histórias de amor, uma em Cabul e, a outra, entre Paris e Amsterdã, que se passam em um dia, na data em que os talibãs destroem as estátuas de Buda. É erótico, com muitas reflexões sobre a religião, o mundo, eu mesmo – resume Rahimi.

A epígrafe de “A balada do cálamo” é uma frase do artista alemão Georg Baselitz: « O que você não é, é um autorretrato ». O que significa essa frase para você?

Quem somos nós? Se considerarmos que somos tecidos de mil e uma coisas, carnalmente, biologicamente e espiritualmente, não podemos nos definir conscientemente. Sou o que me vejo ou o que é visto pelos outros? Conhecer a si mesmo é muito complicado, pois é através os outros que nos descobrimos e nos revelamos. Então, sou o que não sou. A autobiografia é mergulhar em seu inconsciente. Mas desde que o fazemos, o inconsciente não existe mais, e o que digo é consciente. E nossa memória disfarça tudo. O que foi verdadeiro e falso na minha vida? O que foi sonhado e o que foi vivido? O que foi pensado e o que foi dito? Não sei mais. Um grande pensador persa dizia: « Pareça o que és ou seja o que pareces ».

E na primeira página do livro, há esta frase do poeta Ovídio, banido de Roma: « O exílio é deixar seu corpo para trás».

Somos como um tipo de borboleta. No início, sou apenas um verme na terra, e me alimento desta terra maternal. Mas, no momento em que me metamorfoseio e parto, me torno borboleta, deixo na terra o corpo daquele verme, e voo. Isso é o exílio. Tenho um corpo em carne e osso que se deslocou, mas tenho um outro que deixei para trás.

Na língua persa, corpo e alma são a mesma palavra, e você lamenta que, depois, com a chegada do islã e do idioma árabe, houve a separação.

Não existe essa dicotomia no persa. Mas depois veio o islã, inspirado do cristianismo, do judaísmo e também do platonismo… Platão contribuiu com bastante pensamento, mas estragou completamente nossa maneira de ser. Todas religiões se apropriaram desta distinção entre corpo e espírito, e veja onde chegamos. Foi ele o primeiro a criar essa dicotomia.

Por que você considera Édipo o personagem emblemático do exílio?

Ele tem todas as características de um homem exilado. Antes mesmo de nascer já está condenado ao exílio. Há o sentimento de culpabilidade que corrói todos os exilados. Me interditam e colocam na prisão, como um criminoso, porque não estou de acordo com o Estado, com tal opinião ou religião. Eu sou culpado, de certa maneira, porque penso diferente. O que faço? Devo deixar clandestinamente o país. E no meu outro país, vivo na ilegalidade, e mais uma vez sou culpado. Tanto no meu país como fora, sou culpado. E deixei meu país, minha família, na guerra, e estou aqui no exílio. É outro sentimento de culpabilidade. E quando nos integramos na nova sociedade, se é considerado como um traidor, porque você não retorna ao seu país, aprendeu outra língua, teve filhos fora. É uma culpabilidade permanente. Estou escrevendo um tratado para dar uma outra imagem de Édipo, como fiz em “A balada de cálamo” com Eva. Ela também é uma exilada, metaforicamente e religiosamente é a causa de nosso exílio, a mãe de todos os seres humanos. O primeiro exílio é o do corpo de sua mãe, onde somos concebidos. Eva, como figura feminina e maternal nos coloca em exílio. Abordo o exílio no sentido metafísico e filosófico do termo, não é apenas o exílio social e político, vai muito além disso.

Ao lado da mesa onde escreve, você colocou uma outra mesa de trabalho, com cálamos e papel. Para você, a caligrafia ajuda a respirar e a reconectar com seu corpo.

É um tipo de preparação e de concentração para algo. Antes de me sentar diante do computador e começar a escrever, é preciso que me concentre em algo, num tipo de meditação. Quando não consigo escrever, em vez de rascunhar qualquer coisa, faço cálamos, formas. E, inconscientemente, tudo o que fazia se tornava corpos femininos, porque as letras da caligrafia persa são muito sensuais, carnais, corporais, eróticas. É a palavra como corpo, e o corpo como palavra. Não sou religioso, mas leio sempre a Bíblia ou o Corão como textos metafóricos, não como dogmas. E há coisas fantásticas, por exemplo, como na Bíblia: “O verbo se fez a carne”.

Quando chegou na França, não estava em seus planos ser escritor. Como foi que aconteceu?

Não tinha nenhuma ambição de me tornar escritor. Quando cheguei, me orientei para o cinema. E, no início, queria aprender o francês pela a literatura. Me inscrevi como auditor livre na faculdade de Letras, na Normandia. Estudei Literatura Contemporânea, e também o francês antigo e o latim. Tenho um amor por todas as línguas. Nasci num país em que a poesia da língua supera a imagem. Mas, aqui na França, me orientei numa linguagem mais acessível para mim, que era a imagem. Em 1996, comecei a escrever “Terra e cinzas” em persa, para fazer o luto de meu irmão. E mais tarde pude abrir meu caminho no cinema de ficção graças à literatura.

Você começou a escrever em francês num momento particular, em que escrevia em persa porque não podia retornar ao Afeganistão.

Até 2002, não sabia como escrever. Não tinha minha própria língua no interior da língua. E, de fato, o único laço com meu país era a minha língua. O trabalho de luto e de tudo o que se pode sentir se faz na língua maternal. Mais tarde, comecei a escrever um romance em francês. Hoje, com a distância, posso dizer porque escrevi « Syngué Sabour » em francês. Neste livro, quebrei os códigos, os tabus na minha língua, minha cultura, minha história. Não poderia fazer isso com minha língua materna. De seu próprio nome, ela cria forçosamente barreiras. Quando se fala de sexo, é sempre algo escandaloso. E se falo em linguagem psicanalítica, o francês entrou na minha vida de uma maneira bastante particular. Em 1973, ano em que passei o concurso para entrar no colégio franco-afegão, meu pai (juiz da Suprema Corte) foi preso. Fui bastante repreendido na sociedade por sua prisão, por tudo que ocorria na família. Havia mudanças enormes no país, e eu estava na idade da puberdade, entrava na sociedade. O colégio francês, com os filmes, livros e revistas entrava no meu inconsciente e também nas minhas fantasias. O francês se tornou, neste momento, uma língua de fantasias para mim. E havia a ausência do pai. E no momento em que falo de sexualidade, de feminilidade, é com esta língua.

« A balada de cálamo » seria um outro livro se fosse escrito em persa?

Certamente. Quando tento traduzir meus textos em persa, reescrevo e modifico enormemente. Vira uma outra coisa. Creio que a língua influencia muito nossa estrutura de pensamento, e também da escrita, do romance. Por exemplo, em « Syngué Sabour » só tenho dois personagens, « ela » e « ele ». Na minha língua materna não poderia fazê-lo, não temos pronomes masculino e feminino. Não há gênero, com os pronomes nem com os adjetivos. Seria obrigado a dar nomes aos meus personagens. Ou então introduzir a cada vez um substantivo, o homem, a mulher, o que se tornaria cansativo.

Para você, o cinema é um exílio da língua. Por quê?

A língua, como o cinema, tem seus limites. Quando não consigo me exprimir no cinema, me refugio na literatura. E quando não consigo fazer algo na literatura, me refugio no cinema. E quando não consigo me expressar em nenhum dos dois, faço calimorfias. Agora, estou escrevendo uma peça de ópera, para a Ópera de Lyon, em 2020. Na minha cultura, há uma magnífica história de amor, mas, hoje, para fazer disso um filme ou algo na literatura, não me diz nada. Mas sei que este relato adotaria uma forma esplêndida numa cena de ópera. Todos os temas caros à ópera estão ali: a dignidade, a tragédia, o luxo, a nobreza. Me inspirei num longo poema escrito no século XII por Nizami Ganjav, “A história de Khosrow e Shirin”, uma bela história de amor, bastante erótica, entre um príncipe persa e uma princesa armênia.

Como estão seus projetos de filmar os romances “Notre-Dame do Nilo”, da escritora ruandesa Scholastique Mukasonga, e “Escalas do Levante”, do franco-libanês Amin Maalouf?

Estarei de 15 de julho até dezembro em Ruanda para filmar o romance de Mukasonga. Depois atacarei o outro filme, uma adaptação de Amin Maalouf. E depois ainda, tenho um outro projeto em Portugal, um filme bastante particular, com John Malkovich, sobre a vida de Esopo. É uma história que se passa, evidentemente, bem antes de Jesus Cristo, mas a transponho para os dias de hoje, no Oriente Médio, e vou filmá-la em Portugal (risos).

Você diz que em 1985 os afegãos eram os “queridinhos da imigração” na França. Como você vê a questão da imigração hoje?

Antes era a Guerra Fria, hoje é a “guerra quente”. Creio que a estrutura social e política do mundo mudou muito em relação àquela época. A globalização influenciou muito nossa maneira de viver. Os meios de comunicação e a internet mudaram de forma radical nossa visão do mundo e de viver no mundo. Hoje, uma criança que vive na África, no Afeganistão, não importa onde, por meio das imagens vê o paraíso que se chama Ocidente, onde não há miséria e há liberdade, o sexo, tudo com que sonham os jovens. E, por outro lado, vemos também a chegada do Islã, com os massacres etc. Mas, antes, quando havia um Estado ditador, se lutava contra ele. Hoje, se foge dele. Quando se está numa situação nefasta, se tem três escolhas: nos adaptamos a ela, a transformamos ou fugimos. Antes, lutávamos para conquistar a liberdade. Hoje, fugimos. Não há mais ideologia. A única ideologia é a religião, e como não se pode lutar contra ela, se foge. Vivemos uma outra época, outra mentalidade. Como dizia Spinoza, não acredito em Deus, mas penso nele. Que fenômeno é esse que criamos e que domina o mundo? Não podemos ignorar isso. Para combater a dominância dos dogmas é preciso conhecê-las.

Você aprecia o espírito universalista da França do século XVIII. E hoje?

Hoje, o problema é que não há mais pensamento universalista, mas sim globalizacionista. Antes, procurávamos humanidade, aquilo que era como eu nos seres humanos. Hoje, no conceito da globalização, se quer que os outros sejam como eu. Antes, era “eu sou como os outros”. E, hoje, é “os outros são como eu”.

Você assinala a distinção entre o “ser ou não ser”, da cultura ocidental, e o “dizer ou não dizer”, do seu país…

Nos países em que há ditadores, a palavra e a liberdade de dizer as coisas é um ato não somente político, mas existencial. Cada palavra nos custa a vida. Pode nos enviar à prisão ou à execução. Salman Rushdie é a palavra. A primeira coisa é a palavra.

O tempo também é diferente aqui e no Oriente. Como?

O tempo no Oriente é muito cíclico, e, aqui no Ocidente, é extremamente linear, a cronologia, a História. Quando se lê a Bíblia, é a História, uma narrativa. E a narrativa só existe no tempo. Mas, no Corão, o tempo não existe. E há uma outra civilização, hindu, onde o tempo também não existe. Entre os muçulmanos existe, mas é um tempo celeste. No hinduísmo, o tempo nem existe. O tempo é uma invenção humana, pois tudo é impermanente. A noção de permanência, de duração, não existe no pensamento hindu. Não se pode nem mesmo dizer que se trata de um tempo cíclico, como na cultura muçulmana.

Você que nasceu na Índia, encarnou no Afeganistão, e reencarnou na França.

Quando tinha 16 anos, parti para a Índia, e lá, de uma certa maneira, me reencontrei. Foi um tipo de nascimento para mim. E a civilização e cultura afegãos são muito arraigadas na civilização indiana. Antes de se tornar muçulmano, o Afeganistão era um país budista, zoroástrico. Meu segundo nascimento foi no Afeganistão. E o terceiro, quando descobri a civilização ocidental por meio da cultura francesa. Cada etapa foi, para mim, um nascimento e um renascimento.

Por que você separa as artes em estáticas (cinema, fotografia, escultura) e dinâmicas (literatura, música, teatro, amor, culinária)?

Por causa da recepção destas artes. Em música, arte sublime, Mozart ou Beethoven tocados hoje, se tornam obras. No teatro, a cada vez que um diretor monta uma peça, se torna uma obra. A cada vez há uma “atualização” destas artes, que são bastante dinâmicas. O mesmo para a arte culinária, que existe há milênios numa cultura, mas se torna diferente num prato que você faz em casa. Da mesma forma fazer amor, um ato primitivo que cada casal reinventa a sua maneira. Mas repintar um Van Gogh não tem valor. É neste sentido que digo que que há artes dinâmicas e artes estáticas.

É uma necessidade para você criar e se expressar por diferentes meios, como a literatura, o cinema ou a fotografia?

É porque não controlo realmente nenhuma destas artes, busco meu caminho. Não me questiono sobre isso. Sei que há histórias a contar em um romance. E se eu adapto para o cinema, terei de mudar tudo, pois revela uma outra dimensão. Cada realidade, acontecimento, pensamento contado por diferentes meios se torna uma outra coisa. Procuro compreender que outra dimensão possui uma narrativa. Quando se escreve, é a inconsciência que supera tudo. E retrabalhando o mesmo tema sob um outro medium, encontro dimensões escondidas. Uma outra dimensão que a literatura não me permitiu explorar. A criação de um personagem, por exemplo, é algo muito misterioso. E para que o personagem se torne um ser humano, é preciso que mantenha a inconsciência, o segredo, o mistério, que mesmo eu, como autor, não tenho acesso. Se aceder, quer dizer que meu personagem não é humano, porque o construí com minha consciência.  E quando faço outra coisa com a mesma história no cinema, tento analisar meu personagem e descobrir uma outra dimensão de ser. Com a calimorfia é o mesmo com a língua, o corpo. Busco sempre a dimensão escondida das coisas.

Por que Marguerite Duras e Maupassant foram seus guias para a língua francesa?

Havia lido Maupassant em persa no Afeganistão. Gostava muito da forma como contava as coisas, de uma forma muito visual, impressionista. Duras é por sua linguagem, seu jeito de ser, e sua maneira de falar de si mesma. O sonho, a realidade, seu pensamento se misturam. Não se sabe se ela realmente viveu o que conta. Não creio. Isso me impressiona. E é verdade que em sua escrita cada palavra tem seu lugar, isso adoro.

Você sofre de insônia, mas quando dorme, sonha em que língua?

Sou incapaz de dizer. Por vezes me pergunto, inclusive, em que língua penso. E quando esqueço em que língua pensava, me esqueço também no que pensava. É normal. Mas é bastante complicado também.

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