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Chef Alain Ducasse fala de suas viagens e também do acidente aéreo em que foi o único sobrevivente e quase perdeu a vida

   Alain Ducasse se define como um “globetrotter degustador”. © Vincent Lappartient

FERNANDO EICHENBERG / UP MAGAZINE

PARIS – Conversar com o chef Alain Ducasse, um dos maiores nomes da gastronomia francesa, é viajar pelo mundo. Com um total de 18 estrelas no renomado Guia Michelin, fruto de 31 restaurantes espalhados por nove países em três continentes, ele mesmo se autodefine como um “globetrotter degustador”. Quem indagar sobre sua agenda, corre o risco de se perder pelo caminho. “No próximo sábado viajo a Portugal, vou e volto no mesmo dia, para avaliar a possibilidade de um novo projeto nos arredores de Lisboa. Na semana passada estive em Doha, no Qatar, só para um jantar, nem pernoitei em hotel, dormi no avião. Ontem, estava em Perpignan, para uma nova experiência com fermentação de chocolate e jantei no restaurante Le Clos de Lys, uma agradável surpresa do jovem chef Franck Séguret. Amanhã, vou a Barcelona, e depois parto para Manila, Macau e Hong Kong. Há quinze dias estive nos Estados Unidos e, antes, no Japão. Viajo pelo menos uma vez por semana“, diz, acomodado em uma pequena sala anexa à cozinha de seu estrelado restaurante no subsolo do Hotel Plaza Athénée, em Paris.

Antes e depois

Na adolescência, o jovem Ducasse fez suas primeiras viagens percorrendo a Itália, a então Iugoslávia, a Espanha e o Marrocos. “Conheci Veneza. Em Dubrovnik, na Iugoslávia comunista de Tito, havia ainda toque de recolher. Estive em Madri, Sevilha, Cádiz, Fez e Marrakesh. Eram viagens baratas, organizadas por padres, nos deslocávamos de ônibus e dormíamos em albergues da juventude. Desde então, a ideia de viajar nunca parou de me seduzir”, confessa.

Sua estreia em longos trajetos aéreos se deu aos 19 anos, no voo Paris-Nova York, como integrante da equipe do reputado chef Michel Guérard, para auxiliar no cardápio do novo Regine’s, prestes a ser inaugurado no Delmonico Hotel, na Park Avenue. “A companhia mais barata que fazia o trecho, em 1975, era a Pakistan Airlines. Dormia em um apartamento com mais quatro pessoas. Era pago semanalmente em espécie, escondia o dinheiro nos sapatos, com medo de ser roubado. Permaneci lá de novembro a fevereiro, lembro que foi um inverno bastante rigoroso, de muito frio e muita neve”.

Duas viagens marcaram sua trajetória pessoal. A primeira delas alterou profundamente sua maneira de encarar a vida e de saborear cada minuto de seus dias. Em 9 de agosto de 1984, aos 27 anos, com duas estrelas Michelin recém-conquistadas no restaurante La Terrasse (do Hôtel Juana, em Juan-les-Pins), o jovem chef embarcou em Saint-Tropez com mais quatro pessoas, incluindo o piloto, em um avião bimotor Piper Aztec, para uma reunião do projeto de uma filial do Byblos na estação de esqui de Courchevel. Mas as condições meteorológicas não eram as melhores e, cerca de Chambéry, a aeronave se chocou com uma montanha. Ducasse foi o único sobrevivente do acidente. Após longas horas de dor, angústia e espera, foi localizado e resgatado graças à persistência do helicóptero de salvamento. Gravemente ferido, recebeu transfusão no local e foi transferido em uma maca, sob risco de amputação e quase cego – acabou perdendo um olho. Seguiram-se cerca de um ano de hospitalização, 13 cirurgias e três anos de cadeira de rodas e muletas em um longo período de reeducação. No leito do hospital, se conscientizou de que a autonomia do indivíduo depende de suas capacidades física e intelectual, e que todo o resto são insignificantes problemas do cotidiano. “Eu vivi a ‘dessocialização’. Dessocializar é quando você pensa que a sociedade não tem mais interesse na sua existência, que você não serve para nada. A sociedade estava de um lado e eu de outro. E um dia quis voltar”. Em tempo: ele trabalhou no projeto Byblos internado no hospital, comandando uma equipe, e participou da inauguração da casa em cadeira de rodas.

Após ter passado tão próximo da morte, o sabor da vida assume outro gosto. A trágica experiência lhe serviu de ensinamento para cada momento de sua existência: “A lição é a de que um dia se precisa esquecer e continuar. Quatro anos depois, em uma manhã, decidi esquecer e seguir adiante. E foi necessário subir novamente em um avião, incluindo os de pequeno porte. Quando estive há alguns meses no Panamá, voei em uma aeronave pequena, o tempo estava ruim, chovia, havia nuvens, montanhas, e fiquei contente quando aterrissamos. Mesmo quando se esquece, a lembrança permanece intacta”. Para celebrar seus 50 anos de vida, deu um passo além em sua superação do sofrido acontecimento e foi aos céus em um caça Alpha-Jet. “Apesar de meu acidente, tinha o sonho de pilotar um avião a jato. Havia o piloto, é claro, mas estávamos em comando duplo. Pilotei um Alpha-Jet a 850 km/h em voo invertido. Com o dedo, mexendo milímetros, você vira o avião. É genial. Voei durante uma hora e meia e ao final estava exausto. Foi impressionante”.

Ducasse sobre seu acidente: “Mesmo quando se esquece, a lembrança permanece intacta”.          © Pierre Monetta

Sem parar

Em 2003, o chef estava entre os passageiros na despedida do Concorde (para o qual já havia elaborado o cardápio de bordo), na derradeira vez em que o avião supersônico atravessou o oceano Atlântico no trajeto Paris-New York. “Quando voei no Concorde pela primeira vez, pedi para sentar na cabine do piloto. Foi incrível. E estava também no primeiro voo realizado após o grande acidente do Concorde (na retomada das atividades do avião, 15 meses depois do trágico crash de 2000)”. Mas a segunda viagem determinante de sua vida ocorreu antes disso, em 1995, em um voo normal também no trajeto Paris-New York, no qual conheceu Gwénaëlle Guegen. Foi amor à primeira vista. Como em uma trama de comédia romântica, na despedida ela lhe disse o sobrenome de sua anfitriã na cidade americana. “Era um sobrenome comum, mas procurei no anuário telefônico e liguei para vários números até achar o bom”, conta. Casaram-se em 2007, estão juntos até hoje, e ela é mãe de três de seus quatro filhos.

Além do feliz acaso amoroso, encontros degustadores não faltam em seus périplos pelo globo. O curioso chef viajou recentemente ao Panamá para avaliar o cultivo de café Geisha, uma rara e aromática variedade descoberta na Etiópia, nos anos 1930. “Se partirmos agora de Paris, levaremos 27 horas para chegar aonde estive, na região de Mil Cumbres, com um vulcão que, ao final do dia, faz sombra sobre o cafeeiro. Logo após ter descido do helicóptero, uma mulher da aldeia me fez experimentar uma panqueca de milho, como um crepe, acrescida de algumas ervas que havia colhido pelo caminho. Foi um momento mágico. Estava no meio do nada, ao lado de uma plantação de café, um clima excepcional, odores de outro planeta, a natureza, o silêncio perfeito, e aquela panqueca de milho se torna a melhor do mundo, pois é a combinação de tudo”. Para Ducasse, a necessidade de viajar corresponde a experimentar emoções em lugares de exceção, embora nem sempre esses locais sejam excepcionais: “Quando se está em uma aldeia como Pákse, no Laos, à beira do Mekong, um dos maiores rios do mundo, como um mar, é a emoção de viver uma experiência. A viagem alimenta o espírito, não somente o paladar. Enriquece os encontros, amplia as memórias visual, degustadora, olfativa e estimula a energia intelectual”, resume.

À frente de 31 restaurantes espalhados por nove países em três continentes. © Pierre Monetta

Investigar

Hoje, o chef viaja com uma divisa em sua bagagem: visualizar o global para melhor enxergar o local. Em suas próprias palavras: “Quando vou a algum lugar, vejo onde estou, o que tenho, o que sei e o que faço. Nossos clientes em Londres são ingleses, em Doha são árabes, em Hong Kong são chineses, em Tokyo são japoneses e em Las Vegas são americanos. É importante seduzir com um aporte de diferença, graças à expertise francesa, para fazer uma proposição ao gosto local. E o paladar local evolui, porque hoje o conhecimento é partilhado por todos”.

Seu menu vegetariano do Plaza Athénée, batizado “Naturalité”, surgiu das panelas graças também as suas andanças pelo planeta. Há cinco anos, em Londres, sua então assistente na capital inglesa lhe recomendou um endereço em Kyoto de cozinha shôjin, culinária dos ancestrais templos japoneses, que soubera por amigos. Dois meses depois, o chef aterrissou no Japão e, com a reserva feita, foi até o local indicado. “O táxi me deixou em frente ao endereço. Estava com o chefe do meu escritório em Tóquio, que fala perfeitamente o japonês. Ele me diz: ‘Senhor Ducasse, não parece ser o local certo, estamos diante de uma porta de garagem’. Mas decidi conferir.  Abro a porta, e é um restaurante tradicional, com uma única mesa. E eu era o derradeiro cliente, pois a casa fecharia definitivamente logo após meu almoço. Foi uma refeição maravilhosa”.

Desde 2014, o chef propõe um menu vegetariano no Plaza Athénée.              © Fernando Eichenberg

Encantado, Ducasse conseguiu convencer o cozinheiro a passar dois meses em sua escola parisiense, na rua Ranelagh, para junto com seus chefs compreender a sabedoria de uma cozinha vegetariana radicalmente diferente. “Isso ajudou a nos dizermos que, sim, era possível fazer algo muito bom só com vegetais. Dez por cento de nossa filosofia aqui vem da cozinha shôjin. Importamos, inclusive, pilões japoneses, pois esmagam as plantas de uma maneira diferente. Todo o interesse das viagens está nos encontros, no fato de que não poderíamos imaginar, um dia antes, que iríamos conhecer tal pessoa. Viajar é se beneficiar do intangível, da emoção que você vai sentir dos encontros. É extraordinário”, conclui, antes de partir para mais um de seus destinos pelo planeta. Não por acaso, costuma dizer que se não fosse cozinheiro seria um viajante. Há 15 anos, prepara refeições de voos espaciais para a Nasa, chineses e russos. Para quem diz ser estimulado por “coisas inacessíveis que deseja tornar possíveis”, seu sonho irrealizável é abrir um restaurante vegetariano em Marte.

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