FERNANDO EICHENBERG/O GLOBO
PARIS – O filósofo Bernard-Henri Lévy está bastante inquieto com o estado atual da França e do mundo. Em seu país, ele alerta para a ascensão da extrema-direita face à crise das forças da direita e da esquerda tradicionais. Em âmbito global, acredita que os Estados democráticos rumam para o populismo e o niilismo, e que as tensões atuais lembram o clima às vésperas da eclosão da Primeira Guerra Mundial. Intelectual engajado, dirigiu recentemente dois documentários em torno da luta dos combatentes curdos do Iraque, os peshmergas, contra o Estado Islâmico (EI). O último, “A batalha de Mossul”, foi exibido recentemente pelo canal franco-alemão Arte. BHL, como é conhecido, conversou com O GLOBO na biblioteca de um grande hotel parisiense, nas proximidades do Palácio do Eliseu.
Como o senhor analisa o estado atual da democracia no mundo?
Infelizmente, os Estados democráticos avançam, mas na direção errada. Avançam na direção do populismo, para o niilismo, para o que os vienenses de pré-1914 chamavam de “apocalipse alegre”. Há um romance de Hermann Broch que se chama “Os sonâmbulos”: as pessoas avançavam como sonâmbulas para a guerra de 1914. Estamos hoje em situação análoga. Muitas vezes se faz a comparação com os anos 1930. Mas a verdadeira comparação seja, talvez, com os anos anteriores a 1914. Porque o sonambulismo, este clima de hipnose coletiva, esta maneira como as grandes democracias rumam para sua destruição, estas ameaças sobre a segurança coletiva criadas por Vladimir Putin e Donald Trump, isso tudo é muito novo. E não há como não nos fazer lembrar do clima às vésperas de 1914.
As eleições presidenciais francesas integram este contexto?
Se olharmos para a França, estamos a pleno neste sonambulismo. Veja a forma como a esquerda destruiu seus dois candidatos mais críveis, (o presidente) François Hollande e (o premier) Manuel Valls. E a forma como a direita destruiu sucessivamente seus três: Nicolas Sarkozy, Alain Juppé e, agora, François Fillon. Há algo muito estranho neste jogo de massacre, dos dois lados. Se a França quisesse criar um bulevar para (a candidata de extrema-direita) Marine Le Pen, não teria como fazer melhor.
Acredita na possibilidade de vitória da direita radical de Le Pen?
Sim. Houve uma constante na História da Europa: o fascismo passa quando a direita cede, e o fascismo é vencido quando a direita se sustenta. É assim. O fascismo passou quando a direita desmoronou. A direita que é a proteção ao fascismo, não a esquerda. A esquerda dá o alerta. Ela sustenta o muro de valores. Mas o que faz, concretamente, que o fascismo não passe, é a determinação da direita liberal, a boa resistência da direita democrática. E ela está em frangalhos. Está fazendo harakiri. Com uma terrível mistura: a torpeza dos homens e a forma como isso está sendo orquestrado a poucas semanas da eleição presidencial. Estamos vendo o bastião liberal contra Marine Le Pen ameaçado de ruir.
O que o senhor pensa da candidatura de Emmanuel Macron, ex-ministro da Economia do governo Hollande, apontado hoje como um dos favoritos no pleito?
Eu o conheço muito pouco, mas é alguém extremamente bom. Será que tem a dimensão, a experiência soberana, o conhecimento real dos recursos da potência francesa? Não sei. Mas, em todo caso, é uma pessoa do bem.
E Benoît Hamon, o candidato que venceu as primárias do Partido Socialista (PS)?
Não, Hamon não! Ele não tem experiência das questões soberanas, e não possui a estatura para ser presidente de uma grande potência. E além disso, francamente: vir em 2017 com os antigos refrões da União da Esquerda, no estilo de (ex-presidente) François Mitterrand de 1981, que pobreza!
O senhor cita com frequência a frase do escritor e pensador francês Maurice Clavel: “A única forma de vencer a direita é, em primeiro lugar, quebrar a esquerda.” A sentença ainda vale para hoje?
Eu citava esta frase já nos anos 1970. E ainda estamos nisso. Na França, estamos face a uma esquerda que anda para trás, que está voltando às conquistas da batalha antitotalitária. Que batalha é esta? É parar de falar “a” esquerda como uma espécie de entidade englobando as esquerdas liberal e totalitária. É parar de fazer como se houvesse um gênero comum à esquerda, do qual a esquerda democrática e a esquerda totalitária seriam duas espécies. A modernidade, o resultado das lutas antitotalitárias do fim do século XX, é que paramos de fazer esta confusão entre Pierre Mendès France e Maurice Thorez, ou entre Manuel Valls e tal obtuso trotskista da Luta Operária. Ou ainda, na América do Sul, entre Lula e Hugo Chávez. O primeiro, Lula: voilà, para mim, a esquerda respeitável. O segundo, Chávez: um tipo de populista vagamente antissemita, adulando os baixos instintos, e que não tem nada mais a ver com a esquerda. Eu permaneço fiel à esquerda de Jean Jaurès, Léon Blum ou Lula. Não partilho nada com os agentes de Moscou, os assassinos deste ou daquele país comunista, os castristas, os cambojanos. Não são “irmãos inimigos”. É o zero grau da fraternidade. É o grande mal-entendido que Maurice Clavel pedia que fosse quebrado. E o mérito de François Mitterrand, François Hollande ou Manuel Valls terá sido o de começar a operar esta quebra.
A esquerda deve ser totalmente refeita?
Escrevi há dez anos um livro que se chamava “Ce grand cadavre à la renverse” (Este grande cadáver de pernas pro ar, em tradução livre). É onde estamos hoje. Um Partido Socialista encarnado por Monsieur Hamon é a última etapa antes da agonia. E como a direita francesa está também na agonia, a situação é muito inquietante.
Como o senhor explica o crescimento do populismo?
Há uma fadiga da democracia, um ódio das elites. Os gregos distinguiam dois povos, o povo cidadão e o povo da demagogia. Um era o demos, e o outro, o ochlos. O populismo é o fim do demos e a glória do ochlos. É o fim do populus e o triunfo da tourba.
No dia da posse de Donald Trump, em Washington, o senhor estava nos EUA, ao lado do escritor americano Philip Roth…
Presenciei o inauguration day junto com Philip Roth. E foi uma experiência muito estranha a de viver com o autor de “Complô contra a América” (2004) a concretização de seu pesadelo. Trump é um pesadelo de Philip Roth. Como estava ele? Como ficam todos os escritores quando veem sua ficção se tornar realidade: estupefato. E como todos os cidadãos decentes naquele dia: chocado.
O senhor também ficou chocado?
Sim, porque penso que Trump é uma catástrofe para os EUA e para o mundo. E também uma ameaça para o mundo. Penso que não se pode ter na liderança da primeira potência mundial este personagem instável, incerto de suas próprias convicções, pragmático, o que também quer dizer cínico. É muito inquietante. Os europeus, os sul-americanos, viviam até hoje na ideia de que o risco sistêmico para a democracia vinha do islamismo radical. Ou da Rússia. E, em outros tempos, do comunismo. E, de repente, o risco vem dos EUA. Há um risco sistêmico para o sistema político mundial que pode vir dos EUA, e essa é uma situação sem precedente.
O senhor definiu o decreto migratório de Trump como “perseguição obscena”.
Sim. Há algumas semanas, estava em Nova York para um festival de cinema com uma delegação de peshmergas, que são amigos dos EUA, foram formados em academias militares americanas e estão empenhados na mesma luta do Ocidente. Oito dias depois, eles teriam sido proibidos de entrar nos EUA, porque são iraquianos. Portanto, sim, há algo de horrível, de obsceno, neste decreto de Trump.
Como se explica a eleição de Trump?
Há muitas explicações. Mas há uma espécie de revolução mundial que está em marcha, que é a revolução das ideias simples, dos que buscam bodes expiatórios, dos racistas, das pessoas que desprezam a democracia. É um movimento de caráter mundial e que se desenvolve também nos EUA. E há razões quase técnicas: a forma como as redes sociais tratam a noção de verdade; esta história de “fatos alternativos”, que não é somente uma loucura de Trump, pois tem a ver com o regime de circulação da informação etc. Muitas pessoas votaram em Trump persuadidas que Obama era muçulmano, que Hillary Clinton era corrupta, que os EUA só dariam certo se bloqueassem a porta à América do Sul. Hoje, a mentira e a verdade têm o mesmo status, e é muito difícil distinguir uma da outra. É uma situação filosófica totalmente nova.
O senhor acusa o crescimento do sentimento antissemita na Europa, mas também nos EUA.
Os EUA foram um lugar de abrigo para os judeus do mundo, mas hoje o surto antissemita atinge o país de duas formas, nas duas bordas do tabuleiro, à direita e à esquerda. À esquerda, com um aumento do antissemitismo em sua versão antissionista e pró-palestina. Afinal, o país hoje no mundo em que o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) alcança seu apogeu são os Estados Unidos. À direita, o velho antissemitismo tradicional, racista, assimilando os judeus ao mundo do dinheiro etc, se expressou nas fileiras dos apoiadores de Trump com uma violência inesperada. Dos dois lados do espectro ideológico americano, houve um forte crescimento do antissemitismo. O slogan de Donald Trump “Estados Unidos primeiro” é um slogan fascista. Houve um movimento fascista nos EUA, em 1940, que se chamava “Estados Unidos primeiro”, do qual a figura proeminente era o célebre aviador Charles Lindbergh. Donald Trump sabia disso, e em plena consciência adotou este slogan ligado à história do fascismo americano.
Putin também é uma ameaça?
Putin é uma ameaça explícita. Sabemos que ele quer desestabilizar a Europa, acentuar a crise das democracias, e que apoia e financia todos os partidos de extrema-direita na Europa. Sabemos também que em todos os lugares em que se trava a batalha entre a barbárie e a civilização, como na Síria e na Ucrânia, ele está do lado errado, ao lado dos bárbaros. Aí está uma verdadeira e grande ameaça.
Qual a solução para o conflito sírio?
Na Síria, há quatro anos deveria ter sido criado uma zona de exclusão aérea, no move roads, e também zonas tampão. Teriam sido necessárias, no mínimo, essas três coisas para proteger os civis: impedir os aviões de voar, os tanques de circular, e criar zonas seguras para os refugiados. Deveriam ter sido impostos limites a (ditador sírio) Bashar al-Assad, e sancioná-lo a cada vez que ele os desrespeitasse. Nada disso foi feito. Deixou-se as mãos livres a Assad e a seus aliados russos e iranianos. Enfim, teria sido preciso apoiar a oposição democrática. Hoje, estamos na situação que provavelmente queria Putin. Ou seja, um cara a cara entre o Estado Islâmico (EI) e Assad, entre a lepra e a cólera. O que se deve fazer a partir de agora? É preciso obrigar Assad a partir. É preciso ter em Damasco um regime verdadeiramente decidido a lutar contra o EI. Ora, Assad criou o EI, ele não o destruiu.
Como combater hoje o terrorismo?
Face ao EI, há duas atitudes possíveis. Há a atitude que consiste em compreender, desculpar, encontrar razões, atribuir esta violência niilista ao empobrecimento, à desesperança, tudo isso. Essa é a melhor maneira de alimentar o EI. E há a forma de responder à guerra niilista que nos é declarada com uma atitude muito mais firme. Essa é a boa atitude. Penso que a França de hoje tem a boa abordagem, não é o caso de outros países da Europa.
O senhor lamenta o fato de François Hollande não ter se candidatado a um segundo mandato?
Sim. Creio que sentiremos falta do presidente Hollande. Terá sido um bom presidente. Em relação aos temas que acabamos de abordar, a Rússia, a Síria, o terrorismo, ele foi excelente. Mas estamos numa estranha situação, talvez pré-revolucionária, em que todas as figuras decentes da política europeia estão sendo demolidas. Veja a Itália. A Espanha com o sucesso do Podemos. As “democraturas” na Europa central e oriental.
O senhor aponta um clima hoje de “desconfiança dos povos”.
Sim, há uma tal desconfiança dos povos em relação aos sábios, aos atores políticos, aos partidos, que o fato de rejeitar isso tudo se tornou um objetivo em si. Entramos em uma época em que repudiar as elites pode se tornar mais desejável para um povo do que assegurar sua prosperidade. É uma nova variante do “Discurso da Servidão Voluntária”, de Étienne de La Boétie. Uma outra forma de fazer passar sua sobrevivência e seu bem estar depois desta frenética paixão que é o ódio das elites, das mediações e das instituições.
O senhor definiu o Brexit como o “crepúsculo de um projeto de civilização”.
O Brexit é uma catástrofe para a Inglaterra, que já começa a pagar o preço. Mas é também uma catástrofe para a Europa. Fala-se sempre no motor franco-alemão. Mas há um terceiro motor, que é o inglês. O formato de Europa no qual se aposta há 60 anos foi inventado na Inglaterra. É um modelo democrata e liberal, de sociedade aberta, e nasceu na Inglaterra. O discurso de Churchill em 1946, em Zurique, é um dos discursos fundadores da Europa. Não sei o que poderá ser a Europa sem o motor britânico.
A Europa, como entidade política, tem futuro?
A Europa pode acabar se desfazendo. O grande erro dos europeus foi o de pensar que a Europa era irreversível. Na verdade, não é. A Europa se fez e se desfez várias vezes. E isso do império romano até o império austro-húngaro, passando por Carlos Magno, Carlos Quinto, Napoleão. Houve vários momentos em que a Europa estava à beira de se formar e se desconstruiu. Se isso ocorrer de novo, será um acréscimo de desordem e de miséria para os povos da Europa. Seria um empobrecimento da Europa. Mesmo o euro não sobreviverá sem uma união política. Uma moeda única só funciona quando está ligada a uma política única. O dólar levou um século a tatear nos Estados Unidos, esteve à beira de desaparecer, a coabitar com outras moedas, até a Guerra da Secessão, quando o Norte ganhou a luta política contra o Sul. Sem este passo adiante – sangrento – na direção do federalismo, o dólar não teria dado certo. As duas únicas moedas únicas na história dos dois últimos séculos que funcionaram imediatamente foram a lira italiana e o franco suíço. Porque a unidade da moeda e a unidade nacional ocorreram no mesmo momento. Não há outro exemplo de uma moeda única que funcione sem uma política comum.
O que o senhor achou do prêmio Nobel concedido a Bob Dylan?
Gostei que lhe deram o prêmio. É um escritor. Dylan, é literatura. Os textos de suas canções são literatura. Uma literatura magra, breve, rara, mas uma literatura.
O senhor mantém ainda otimismo?
Não faria o que faço, não iria prejudicar minha saúde no Iraque e em outros lugares, durante várias semanas, se não guardasse uma parte de esperança.