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13 de novembro: os efeitos colaterais no debate político francês

Soldados franceses em vígilia diante da Torre Eiffel iluminada com as cores da bandeira nacional. ©Joel Saget/AFP

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS -Os franceses prestam homenagens neste domingo em memória das 130 vítimas dos atentados cometidos há exatamente um ano, em 13 de novembro de 2015, na capital francesa, um acontecimento cujos reflexos ainda são sentidos. Os massacres de Paris, somados aos ataques na redação do jornal “Charlie Hebdo” e na orla de Nice, provocaram um profundo trauma na sociedade francesa. A onda de choque da violência terrorista promovida pelo Estado Islâmico (EI), entre tantos efeitos colaterais, influiu também no debate político e nas perspectivas para as eleições presidenciais no país, marcadas para abril e maio de 2017.

Os temas em torno da identidade nacional e da segurança interna e externa se tornaram prioritários na agenda eleitoral, favorecendo as forças políticas representadas por um conservadorismo mais radical e pela extrema-direita. Na opinião de analistas, os atentados indiretamente aceleraram, ampliaram e reforçaram o “processo de direitização” que já vinha progredindo na França. Se as urnas decidissem hoje o próximo ocupante do Palácio do Eliseu, segundo todas as sondagens haveria uma disputa de segundo turno entre Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita Frente Nacional (FN), e o candidato vencedor das eleições primárias da direita tradicional, em que os favoritos são o ex-presidente Nicolas Sarkozy e Alain Juppé.

ARQUIVO BIOMÉTRICO

Além das costumeiras preocupações com o desemprego, os impostos e o custo de vida, ganharam em importância discussões sobre um controle mais rígido das fronteiras, a renegociação do Espaço de Schengen (a zona de livre circulação na Europa) e uma maior vigilância dos indivíduos fichados como suspeitos de radicalização islâmica. Retornaram com força as controvérsias sobres os limites do uso do véu islâmico no país, e há o temor onipresente de que terroristas potenciais se incrustem na vaga de refugiados que deserta zonas de conflito e desembarca diariamente no país. A mais recente polêmica envolve a criação de uma mega-arquivo nacional reunindo os dados pessoais e biométricos de 60 milhões de franceses, denunciada por defensores das liberdades públicas.

Pascal Boniface, diretor do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris), salienta que os três importantes atentados ocorridos em um ano e meio marcaram fortemente a sociedade francesa, mas não suscitaram “movimentos de ódio ou de acerto de contas entre as comunidades”. Mas acrescenta: “É certo que há um deslocamento à direita da sociedade francesa, e também que a extrema-direita se enraíza na paisagem do país. Uma parte da direita tentou recuperar o discurso da extrema-direita sobre o islã e os muçulmanos, e há, inclusive, tentações deste tipo no seio do Partido Socialista (PS). Mesmo se, grosso modo, a sociedade reagiu com tolerância, o sentimento anti-muçulmano cresceu. De um ponto de vista político, os atentados favoreceram a direita radical”.

Especialista no estudo dos partidos políticos e dos processos de politização, a analista Florence Haegel aponta um “paradoxo” similar. Ela cita o último relatório da Comissão Nacional Consultiva dos Direitos Humanos (CNCDH) sobre o racismo, o antissemitismo e a xenofobia, que registra um aumento da tolerância no país em 2015, consequência também do “choque emocional” deflagrado pelos atentados. “Por outro lado, se nota a importância no debate político francês das questões de identidade e de segurança. Não é algo novo, e são temas investidos há muito tempo pela FN, partido que vem crescendo nos últimos anos, mas é verdade que foi agora reforçado pelos atentados. E vemos igualmente que a esquerda tem dificuldade em propor temas alternativos, e acaba nestes mesmo debates”.

Charge do cartunista Oli, com um cinturão explosivo envolvendo a França, e o pavio representado pela chama do símbolo do partido de extrema-direita Frente Nacional (FN): “A França está pronta para o segundo turno! … Enfim, quase!”

Nada prova que o resultado da mesma pesquisa do CNCDH confirme a tendência tolerante neste ano de 2016. Se o sentimento de coesão nacional prevaleceu após os ataques a “Charlie Hebdo” e do 13 de novembro, a partir da ação terrorista de Nice, em 14 de julho passado, houve uma “politização” dos atentados, afirmam especialistas.

– É um pouco natural um primeiro momento de união nacional e, depois, a emergência de conflitos e divergências nos debates políticos – diz Haegel. – Além disso, Nice não é Paris, uma cidade dirigida por uma prefeita de esquerda (Anne Hidalgo), mas uma localidade em que o voto da FN é bastante elevado, com uma direita forte. A instrumentalização foi maior também por causa disso.

Para Bruno Cautrès, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), os atentados produziram efeitos contrastantes na aprovação do presidente François Hollande, que avançou logo após o “Charlie Hebdo”, mas despencou na sequência: “Logo após “Charlie Hebdo”, sua cota de popularidade aumentou de 20 pontos, logo perdidos nos meses seguintes. Ninguém contesta que ele faz a guerra contra o terrorismo, e se sabe que a França está engajada neste combate em vários países, mas os três atentados reforçaram o sentimento por parte de certos eleitores de que havia um problema na função executiva. E isso tudo, obviamente, joga água no moinho de Marine Le Pen”.

INFLUÊNCIA DE TRUMP

Hollande tem alcançado recordes negativos de popularidade nas pesquisas de opinião. A seis meses de um pleito presidencial, nunca um chefe da nação registrou índices tão baixos, de 4% a não mais do 15%, segundo as mais recentes sondagens. “Mas com ou sem Hollande será muito difícil para a esquerda, porque ela está dividida. No contexto atual, com uma direita muito forte, me parece improvável que a esquerda chegue no segundo turno em 2017”,  prevê Cautrès.

Os franceses têm igualmente demonstrado desconfiança com o sistema democrático. A maioria, 57%, estima que a democracia funciona mal hoje, de acordo uma sondagem encomendada pelo jornal “Le Monde” e divulgada esta semana. Segundo a mesma pesquisa, 77% dos entrevistados pensam que o sistema democrático está piorando; 29% gostariam de um governo formado por tecnocratas e experts, e outros 18% desejam um regime de maior autoridade. “Há esta demanda por autoridade um pouco por todo lado e, efetivamente, um sentimento de fratura nas democracias enraizadas”, analisa Pascal Boniface. “E como há este sentimento de insegurança, com as guerras civis no mundo e suas repercussões em termos de refugiados, e mais o terrorismo, a incerteza econômica, enfim, tudo isso leva a um desencanto dos franceses, em particular, e dos europeus, em geral, em relação à democracia, o que explica também o sucesso de Donald Trump nos Estados Unidos.

Para Florence Hagel, a vitória de Trump nos EUA poderá, lateralmente, causar consequências opostas no pleito francês: impulsionar o voto em Marine Le Pen ou estimular a mobilização de eleitores contra a extrema-direita. “Não sei em qual sentido será esta influência”, admite.

Bruno Cautrès também vê um importante déficit de credibilidade da democracia no país: “Todas as instituições, como os partidos e igualmente os políticos registram uma perda de confiança muito elevada. Isso se deve em parte ao fato de que muitos eleitores têm o sentimento de que a democracia é uma bela ideia, mas que não consegue mais garantir a segurança e a prosperidade. E os atentados têm seu papel nisso também”.

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